Território Aduaneiro

Entre Tiradentes e OCDE: valor aduaneiro e preços de transferência

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

19 de abril de 2022, 8h00

Uma lembrança necessária nesta quinta-feira, 21 de abril, são os 230 anos da "efeméride comemorativa do holocausto" [1] do patrono da Nação brasileira; José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes. Considerado um dos líderes da Inconfidência Mineira, maior propagandista do movimento contra os escorchantes tributos exigidos pela Coroa Portuguesa e defensor da independência do Brasil para se tornar uma república.

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Os tempos são outros, com desafios distintos. A defesa contra as potestades, no entanto, permanecem imanentes e são valores latentes da Constituição de 1988 que rege a todos. Longe e afastadas do texto constitucional e de seus princípios, toda e qualquer pretensão arrecadatória é órfão, ilegítima e execrável.

Não há tributo, aduaneiro ou interno, que se mantenha senão se aprovado no teste de validade frente aos princípios constitucionais da estrita legalidade, da tipicidade cerrada ou especificidade conceitual, da capacidade contributiva e da irretroatividade, entre outros. Assim o dizemos para trazer à baila tema que muito tem repercutido nas últimas semanas, com a publicação do Acórdão nº 3201-009.605 do Carf [2]. O crédito tributário em litígio decorreu de trabalho da fiscalização, em revisão aduaneira, que não acatando os valores declarados pelo importador, US$ 101.149.640,84, em 2.236 das 8.503 DIs registradas entre 2010 e 2013, realizou lançamento de ofício, definindo o valor aduaneiro para tais operações. Apurou diferenças de II, IPI, PIS/Cofins – importação, aplicou-lhes multa de ofício e, sobre o valor aduaneiro, multa isolada de 1% (artigo 711, III, RA/09).

Uma observação, desde já, eloquente e pesarosa: o tempo entre os fatos geradores e a publicação do acórdão; mais de dez anos! Durante esses longos anos o contribuinte, como Dâmocles, certamente, deve ter se sentido sob o risco de pesada espada; a da incerteza. O tempo prolongado de discussão, obrigou-lhe, por certo, a inúmeros reports e avaliações de risco. Pode ter lhe exigido o provisionamento de valores em face do risco de perda do processo. A incerteza e a insegurança da decisão futura têm outra e mais deletéria nuance. Necessariamente, os custos tributários da nacionalização de produtos estrangeiros, insumos para industrialização ou produtos destinados à revenda, são transferidos à etapa seguinte. E os tributos, frutos dessa autuação? Tantos anos após a ocorrência dos seus fatos geradores, acrescidos de juros e multas, como fazê-los repercutir ? Não serão, como é sabido. São prejuízos a contabilizar.

No espírito da semana de Tiradentes, não podemos deixar de nos indignarmos e registrar o quão prejudicial é a demora na solução dos processos. Sejam eles administrativos ou judiciais, precisam ser muito mais céleres. A bandeira da celeridade não deve ser hasteada contra um, ou alguns, mas deve tremular em favor de toda a sociedade [3]. A morosidade excessiva é sanção por si só [4].

Volvendo ao julgado, no relatório do acórdão, constata-se que a empresa autuada não deixou de se declarar vinculada à exportadora, porém indicou no preenchimento de suas declarações de importação que essa condição não influenciou o preço, adotando, portanto, o primeiro método de valoração aduaneira; o valor de transação [5], para estabelecer a base para apuração e recolhimento dos tributos.

A fiscalização, com base nas DIs e nas DIPJs da importadora, identificou indícios de que a vinculação influenciou o preço declarado e, por isso, afastou o uso do primeiro método. Em observância à legislação aduaneira aplicável, passou a verificar a possibilidade de utilização dos demais métodos de valoração aduaneira. Como descreveu a colega Liziane Meira, em seu artigo sobre esse tema [6], testou-se o segundo método (mercadorias idênticas), terceiro (mercadorias similares), quarto (dedutivo) e o quinto (computado), sem êxito. Restou o sexto e derradeiro método — método fall back ou do último recurso. No uso do mesmo, a fiscalização valeu-se das informações e preços de transferência calculados pela empresa para atendimento do artigo 18, da Lei 9.430/96.

Preços de transferência e valoração aduaneira são institutos distintos, de origens diferentes [7]. Os preços de transferência têm suas origens mais remotas no início do século 20, mas a primeira orientação internacional, com diretrizes relevantes sobre o tema, é de 1979, publicada pela OCDE [8]. Valoração aduaneira tem origem no Artigo VII, do Gatt, com as suas alterações e aperfeiçoamentos, desde sua primeira versão, em 1947, até o texto da Rodada Uruguai e um dos seus anexos, o Acordo de Valoração Aduaneira, responsável pela implementação do artigo VII do Gatt-94.

Os preços de transferências estão relacionados a operações entre empresas vinculadas (multinational enterprise group, MNE, definidas, no glossário dos Guidelines da OCDE, como empresas estabelecidas em duas, ou mais, jurisdições). A valoração aduaneira segue os métodos de valoração estabelecidos no AVA-Gatt, aplicando-se a pessoas vinculadas, ou não. Os preços de transferência abrangem bens, serviços e direitos; a valoração aduaneira, mercadorias. Diferença essencial e mais relevante entre eles: o objetivo de analisar os preços de transferência praticados entre as empresas relacionadas, situadas em países distintos, é que não sejam manipulados, ou abusivos, e não reduzam, artificialmente, as bases para tributação da renda [9]. É natural que a condição de empresas relacionadas afaste o "fator de mercado" das negociações entre tais partes. Coíbe-se a evasão e o planejamento tributário internacional lesivo, em que as empresas multinacionais escolham as jurisdições com menor pressão fiscal para submeterem suas rendas à tributação.

A valoração aduaneira, lado outro, pretende assegurar que a base tributável nas importações reflita a livre negociação entre partes não vinculadas, adotando a noção positiva do valor aduaneiro [10], ou que, se vinculadas, essa condição não afete o valor transacionado e evite discriminação e fixação de bases arbitrárias ou fictícias. Com os métodos sucessivos ao primeiro, busca-se atingir esse mesmo objetivo através de outros instrumentos e informações.

Não obstante os distanciamentos, Juan Martin Jovanovich, destaca relevante intersecção no princípio arm's length [11] [12]. Enrique Barreira, no entanto, destaca os diferentes objetivos perseguidos na valoração aduaneira e nos preços de transferência. A primeira; apurar os valores reais da importação. Já no uso dos preços de transferência, quanto menor forem, maior a renda a ser tributada, afirmando: "resulta paradójico que dos organismos del mismo Estado utilicen sus poderes de fiscalización sobre los operadores del comércio exterior em búsqueda de intereses tan contrapuestos" [13].

A temática, até o referido acórdão, não vinha despertando grande atenção na doutrina pátria [14]. No entanto, o tema já vem sendo objeto de estudos por parte de autores estrangeiros [15] e debates em organismos internacionais como a OCDE e a OMA; que promoveram, em 2006 e 2007, eventos conjuntos sobre a matéria [16].

No nosso território aduaneiro, no entanto, é preciso destacar que imposto de importação e de renda possuem fatos geradores e base de cálculos distintos, regidos por legislações próprias. A legislação do imposto de renda comporta ajustes, deduções e apropriações muito específicas para se chegar ao conceito de renda tributável, ao longo de um período determinado. A aplicação dos preços de transferência visa definir ajustes necessários para que o valor dedutível com os insumos importados não reduza de forma artificial a sua base de cálculo.

No caso do imposto de importação, busca-se o valor pago, ou a pagar, por operação e de forma que o mesmo incida sobre o valor transacionado, real. Podemos assumir que os preços de transferência sejam elemento informativo, com rebus e modus, para auxiliar na definição do valor aduaneiro. Na linha do Comentário 23.1, do Comitê Técnico sobre Valoração Aduaneira (CTVA) da OMA, que adota a possibilidade de um estudo sobre transfer pricing ser utilizado nas transações entre partes relacionadas para efeito de definição do valor aduaneiro, on a case by case basis.

No uso do sexto método, ou último recurso, que deve se basear na utilização de critérios razoáveis condizentes com os princípios e disposições gerais do AVA-Gatt, os preços parâmetros apurados pelo contribuinte para os ajustes legais dos insumos dedutíveis para apuração do IRPJ e da CSLL, são fonte de informação relevante. Para o importador, fonte de análise prévia e corretiva, a fim de evitar passivos tributários. Para a fiscalização, fonte de informação para revisões aduaneiras. O que não significa que possamos admitir, à luz dos limites constitucionais tributários que preconizam a rigidez na definição da hipótese de incidência dos tributos, que para o imposto de importação, tomemos um preço de transferência como elemento básico e suficiente para ser transmutado a valor aduaneiro. De tudo, cabem as cautelas dos importadores em avaliarem suas práticas, revendo procedimentos e, eventualmente, submetendo-os à consulta perante à Receita Federal para não serem surpreendidos.

O tema toma ainda mais relevância na medida em que o Brasil avança no processo de acessão à OCDE [17] e adoção dos seus guidelines sobre os preços de transferência. Nessa jornada, na terça-feira passada, o governo apresentou resultado de trabalho dos últimos anos, em conjunto com os técnicos da OCDE. Foram informados os pilares da futura legislação sobre os preços de transferência, em sintonia com as melhores práticas internacionais [18]. Nessa linha, é importante que também os estudos e paradigmas já discutidos entre a OMA e a OCDE, sobre a valoração aduaneira e os preços de transferência, desenvolvam-se por aqui, sempre à luz da Constituição e do princípio da legalidade. Melhor homenagem à memória de Tiradentes não há!


[1]Referência feita na Lei Federal no 4.897, de 9/12/1965 que declarou Tiradentes, como Patrono Cível da Nação Brasileira, rendendo homenagem à sua memória, declarando-o "nosso maior compatriota de todos os tempos". Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4897.htm. Acesso em 8/4/2022.

[3]E, ainda, se o contribuinte não se conformar com a decisão irrecorrível na via administrativa e for exercer a garantia constitucional (artigo 5º, XXXV, CF/88) de judicializar a questão, enfrentará prazo semelhante, ou pior, àquele aguardado na via administrativa.

[4]Vale invocar a CF/88 de 1988, em artigo 5º, inciso LXXVIII: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

[5]A autorização do AVA–Gatt para que empresas vinculadas possam utilizar o primeiro método de valoração aduaneira — valor de transação —, independente do vínculo, pode ser encontrada nos seguintes dispositivos: artigo 1º, seu parágrafo 1 (d) e seu parágrafo 2, letras (a) e (b).

[7]Sobre esse tema, vale a leitura do artigo publicado na Coluna pelo colega Leonardo Branco https://www.conjur.com.br/2022-mar-08/territorio-aduaneiro-valoracao-aduaneira-precos-transferencia

[8] Os Guidelines da OCDE têm sido atualizados, periodicamente, desde sua primeira versão. A mais recente foi publicada esse ano e está disponível para leitura, 2022 Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations: https://read.oecd-ilibrary.org/taxation/oecd-transfer-pricing-guidelines-for-multinational-enterprises-and-tax-administrations-2022_0e655865-en#page1

[10] Em contraposição à noção teórica do valor aduaneiro adotada, inicialmente, no Gatt-47. Sobre o tema escrevemos o artigo Valoración em Aduana y Ordenamiento Jurídico Brasileño, publicado na obra coletiva: COTTER, Juan Patrício, coord. Estudios de Derecho Aduanero. Homenaje a los 30 años del Código Aduanero. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2011.

[11] "…tanto el Acuerdo como las Directrices se basan em un principio común: el principio arm’s length. En otras palavras, tanto las Directrices como el artículo 1.2(a) del Acuerdo perseguen lo mismo: verificar si la vinculación entre comprador y vendedor ha influído em el precio". JOVANOVICH, Juan Martin. Precios de Transferencia y valor em aduana. Convergencia entre las normas de valoración em materia impositiva y aduanera en caso de transaciones entre empresas vinculadas. In Memorias Tercer Encuentro Iberoamericano. México: Instituto Interamericano de Fronteras y Aduanas, A. C. (IIFA). 2008, p. 335 – 366.

[12] Sobre o princípio arm's length, base conceitual dos preços de transferência, o Guia da OMA, em seu item 3.4.1, esclarece: "The arm’s length principle requires that the conditions (prices, profit margins etc.) in transactions between related parties should be the same as those that would have prevailed between two independent parties in a similar transaction under similar conditions. (…)". Disponível em: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/es/pdf/topics/key-issues/revenue-package/guÍa-de-la-oma-sobre-valoraciÓn-en-aduana-y-precios-de-transferencia.pdf?db=web. Acesso em 8/4/2022.

[13] BARREIRA, Enrique C. "El 'Valor en Aduana' y los 'Precios de Transferencia' en las transaciones internacionales entre empresas vinculadas: dos enfoques ante un mismo fenómeno". Disponível em: http://www.iaea.org.ar/global/img/2010/09/Barreira3.pdf

[14] Destaque para a obra de VITA, Jonathan Barros. Relações entre Valoração Aduaneira e Preços de Transferência. São Paulo: Fiscosoft, 2014.

[15] Referências e obras sobre o tema, recomenda-se o voto do Conselheiro Rosaldo Trevisan, no Processo 11080.724128/201521, Resolução 3401001.799. Íntegra acessível: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarInformacoesProcessuais/exibirProcesso.jsf

[17] Recomendamos o artigo da colega Fernanda Kotzias publicado na Coluna (https://www.conjur.com.br/2022-fev-15/territorio-aduaneiro-acessao-brasil-ocde-otica-aduaneira) e o encontro do Comitê de Facilitação Comercial da Abead, sobre o tema, com Constanza Negri, da CNI (https://www.youtube.com/watch?v=TlGawlbvpMc).

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    é sócio-fundador da HLL Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, multiplicador do Programa OEA da RFB, presidente da Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (Abead), fundador e ex-presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, acadêmico da International Customs Law Academy (Icla) e professor de pós-graduação na PUC-MG, Enap, IBDT, Ibmec e Cedin.

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