Opinião

O acordo de não persecução penal e a cisão do concurso de crimes

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31 de outubro de 2021, 15h14

Desde a introdução do acordo de não persecução penal (ANPP) no Código de Processo Penal, por meio da Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais foram estabelecidas em torno do novo instituto [1], especialmente em razão da repercussão do instrumento que possibilita a perspectiva de justiça negocial em grande parcela dos crimes vigentes no ordenamento jurídico [2]. Apesar do transcurso de mais de um ano de vigência da lei, ainda existem pontos não solucionados [3] e que merecem discussão pelos operadores do Direito.

Nesse contexto, o artigo 28-A da legislação processual penal fixa os seguintes requisitos para a concretização do ajuste: 1) confissão formal e circunstanciada; 2) infração penal sem violência ou grave ameaça; 3) pena mínima não superior a quatro anos; e 4) suficiência para reprovação e prevenção do crime.

Nos limites do presente ensaio, cabe abordar especificamente o primeiro e o segundo requisito acima, eis que subsistem situações ainda mal resolvidas na prática forense, as quais merecem atenção para que se possa alcançar segurança jurídica.

Primeiramente, observa-se que a natureza jurídica da infração penal é relevante para se identificar a viabilidade do ANPP, ou seja, tratando-se de crime que envolve violência ou grave ameaça, não é possível a oferta do instituto ao investigado. Por exemplo, crimes de lesão corporal grave ou gravíssima (artigo 129, §§1º e 2º, CP) estariam automaticamente excluídos da possibilidade de formalização do ANPP.

Em seguida, examina-se a questão da pena mínima não superior a quatro anos. Nesse caso, o crime, por si só, poderá inviabilizar a oferta do ANPP, como é a situação do crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (artigo 273, CP), que possui pena mínima de dez anos, o que já afasta a incidência do benefício processual.

Além disso, deve ser considerado o concurso de crimes, pois, nessa hipótese, o somatório das penas mínimas também será levado em consideração para fins de cálculo dos requisitos. Trata-se, inclusive, de aproximação quanto ao instituto da suspensão condicional do processo, no qual, por meio das Súmulas 273 [4] do STJ e 723 do STF [5], entendeu-se que o concurso de infrações penais seria relevante para verificação acerca do cabimento do instituto. Diante disso, na hipótese de um crime com pena mínima de dois anos (corrupção passiva, artigo 317, CP) em concurso com um crime de pena mínima de três anos (organização criminosa, artigo 2º, da Lei 12.850/2013), será inviável o ANPP diante do cúmulo entre ambas as sanções [6].

Com efeito, Marcos Paulo Dutra Santos já alertava que o STJ e o STF sempre levaram em consideração "o acréscimo oriundo do concurso de infrações para definir a incidência, ou não, de um instituto, quando condicionada a sua aplicabilidade à quantidade de pena mínima ou máxima em abstrato", o que, de fato, tem ocorrido em relação ao ANPP.

As considerações acima são relevantes porque é possível que no concurso de delitos se identifique a presença de crimes com e sem violência ou grave ameaça (por exemplo: ameaça, resistência, desacato e embriaguez ao volante, artigos 147, 329, 331 e artigo 306 da Lei 9.503/1997). Desse modo, a pergunta que deve ser feita é se seria possível a cisão das infrações penais para que se ofereça ANPP na parcela que não se verifique a apontada violência ou grave ameaça.

A reposta é positiva, desde que sejam observados alguns parâmetros. O primeiro deles diz respeito, naturalmente, à quantidade de pena. Para que se possa autorizar o ANPP, a soma das penas não pode ultrapassar o quantum de quatro anos, estando, assim, cumprida a primeira exigência. O segundo está vinculado à separação dos crimes, porque somente será possível o ANPP em relação à infração penal que não contenha violência ou grave ameaça, tendo em vista que quanto à infração penal com a presença da referida circunstância o processo prosseguirá normalmente perante a justiça penal.

Em situação semelhante, mas aludindo ao requisito da confissão, Rômulo de Andrade Moreira salienta que sendo o agente investigado pela prática de dois delitos, com a realização de confissão apenas em relação a uma delas será viável o acordo quando a uma das infrações, com o consequente oferecimento da ação penal em relação a outra [7].

Diante disso, considerando o propósito do novo instituto, consistente na ampliação de medidas despenalizadoras, com benefícios tanto à acusação quanto à defesa em razão do processo, autoriza a separação dos crimes sem violência ou grave ameaça, a fim de que seja superado o óbice disposto na lei para fins de celebração do ANPP.

A questão acima tem sido enfrentada no âmbito da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná [8], sendo possível identificar ao menos duas situações em que o órgão superior do Ministério Público paranaense manifestou-se de forma favorável à separação dos crimes [9]. Os casos são importantes porque demonstram a política-criminal adotada pelo Parquet, priorizando-se a persecução penal de casos mais graves, com a possibilidade de solução de processos penais de forma diversa, em especial sem a declaração de culpa do sujeito envolvido na persecução penal.

No mesmo caminho, preocupado com situações referentes à postura da acusação nos acordos penais, Vinicius Vasconcellos aduz que "é necessário estabelecer normativas internas mais detalhadas para a atuação de representantes do Ministério Público, de modo a assentar critérios e parâmetros sobre admissibilidade dos acordos" [10].

Portanto, examinando-se de forma sistemática os requisitos do ANPP, nada impede que se realize a separação de infrações penais — com ou sem violência ou grave ameaça — cometidas em concurso de crimes, com o escopo de se possibilitar a celebração do ajuste entre Ministério Público e investigado, valorizando-se a nova realidade de justiça negocial buscada pelo legislador por meio da Lei Anticrime.


[1] Não se pode olvidar dos riscos inerentes à justiça negocial, mormente porque quando se busca a aplicação imediata da pena por mecanismos consensuais "a imposição da pena não é fruto de uma prévia verificação dos fatos, mas de um acordo" (BADARÓ, Gustavo. Epistemologia Judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019. p. 62), daí decorrendo os riscos da imposição do cumprimento de penas a inocentes que aceitem a entabulação de acordos com forma de evitar a submissão às penas processuais (comparecimento a atos processuais, publicidade opressiva dos atos processuais e etc) ou mesmo a imposição de uma pena mais elevada ao final do processo.

[2] Segundo a doutrina, somente 45 crimes previstos no Código Penal não admitirão o acordo de não persecução penal, o que evidencia a importância do instituto no ordenamento jurídico brasileiro. MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei anticrime: reforma penal e a aproximação de um sistema acusatório [livro eletrônico]. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 55.

[3] A questão da natureza jurídica da norma e sua retroatividade; obrigatoriedade da confissão; reparação do dano nos crimes tributários etc. Ver: https://www.conjur.com.br/2020-set-02/soares-daguer-necessidade-confissao-anpp; https://www.conjur.com.br/2021-set-05/opiniao-momento-confissao-acordo-nao-persecucao-penal; https://www.conjur.com.br/2020-mai-12/daguer-soares-acordo-nao-persecucao-penal. Acesso em: 26 out. 2021.

[4] O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um um ano.

[5] Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.

[6] "Nada obstante a possibilidade temporal de aplicação do instituto, verificou-se que o paciente não preenche o requisito objetivo para aplicação do benefício legal, uma vez que a pena mínima cominada aos crimes imputados em concurso material não é inferior a 4 anos. De fato, a pena mínima na hipótese totaliza 4 anos, motivo pelo qual não há se falar em preenchimento dos requisitos legais." AgRg no HC 656.789/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 20/04/2021, DJe 26/04/2021; AgRg no RHC 152.756/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021.

[7] O acordo de não persecução penal. In: BEM, Leonardo Schmitt de; MARTINELLI, João Paulo [Orgs]. Acordo de não persecução penal. 2ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido. 2021, p. 208. No mesmo sentido: MENDONÇA, Andrey Borges de. Acordo de não persecução penal e o Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) In: GONÇALVES, Antonio Baptista. Lei Anticrime — Um olhar criminológico, político-criminal, penitenciário e judicial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 288.

[8] Em situação semelhante, Rodrigo Leite Ferreira Cabral defendeu a possibilidade de cisão do concurso de crimes na hipótese de um dos delitos ter sido cometido no contexto de violência doméstica ou familiar (vedação trazida no art. 28-A, IV, CPP). CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. 2 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 115-116.

[9] Autos nº. 0008843-27.2019.8.16.0014, 3ª Vara Criminal de Londrina-PR; Autos nº. 0026914-80.2019.8.160013.

[10] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Justiça criminal negocial e direito de defesa: os acordos no processo penal e seus limites necessários. Boletim do IBCCRIM, ano 29, n. 344, julho de 2021, p. 07-09.

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