Opinião

Acordo de não persecução penal e reparação do dano nos crimes tributários

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12 de maio de 2020, 22h02

A Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019) representa um marco nas esferas do Direito Penal e do Processual Penal, pois alterou 17 diplomas legais com temas dos mais diversos e complexos. Entre as principiais alterações, vale destacar a introdução do acordo de não persecução penal (ANPP) por meio do artigo 28-A do Código de Processo Penal, ampliando-se a Justiça Penal negociada no país, ao lado de transação penal, suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95), acordo de leniência (Lei 12.846/2013) e colaboração premiada (Lei 12.850/13). Com efeito, o acordo de não persecução penal é tema já conhecido no cenário jurídico nacional, tendo em vista que o Conselho Nacional do Ministério Público, a partir das resoluções nº 181/2017 e 183/2018, já havia regulamentado o tema. No entanto, a falta de lei gerava uma série de discussões a respeito da obrigatoriedade do instituto [1] e, por sua vez, certa resistência de adoção na prática forense pelos sujeitos processuais.

Superada a questão da criação da lei, o acordo passa a ser norma cogente, instituindo-se no ordenamento jurídico mais um benefício ao investigado que terá a possibilidade de aceitação e, assim, cumprimento de condições fixadas em lei, como contrapartida pelo não oferecimento da peça acusatória, com o objetivo de, ao final, obter a extinção da punibilidade, sem a geração de qualquer antecedente criminal.

O artigo 28-A, caput, fixou requisitos que devem ser atendidos para que o Ministério Público elabore a proposta de acordo ao investigado: I) pena mínima inferior a quatro anos; II) confissão formal e circunstanciada; III) crime não cometido com grave ameaça e violência; e IV) necessário e suficiente para reprovação do crime. Além disso, no artigo 28-A, §2º, foram apresentadas vedações: I) se for cabível transação penal; II) o agente tiver sido agraciado com acordo de não persecução, transação penal ou suspensão condicional do processo nos últimos cinco anos; III) ser reincidente ou na presença de elementos probatórios que apontem conduta habitual, reiterada e profissional; e IV) crimes praticados no contexto de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher em razão do sexo feminino.

Por fim, desde que exista a aceitação do acordo pelo investigado, serão cumpridas, cumulativa ou alternativamente, as seguintes condições à luz do que prevê o artigo 28-A, I: I) reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo; II) prestar serviços à comunidade com pena reduzida; III) realizar prestação pecuniária; e IV) cumprir outra condição a ser estipulada de acordo com o Ministério Público.

Feitas as considerações acima, observa-se a existência de problemática a ser enfrentada em relação ao acordo de não persecução penal e os crimes de natureza tributária.

Nesse contexto, examinando-se os artigos 1º da Lei 8.137/90 (crime contra a ordem tributária) e 168-A e 337-A do Código Penal (crimes de apropriação indébita tributária e sonegação de contribuição previdenciária), denota-se que essas infrações penais atendem aos requisitos para que haja o oferecimento da proposta de acordo pelo Ministério Público, podendo variar, a depender do caso concreto, somente em relação às vedações previstas na novel legislação para obstar sua concretização.

No entanto, a questão que merece ser examinada reside especificamente na condição de reparação do dano (artigo 28-A, inciso I, do Código de Processo Penal) fixada para elaboração do acordo de não persecução penal. Isso porque, há alguns anos, a política criminal relativa aos crimes de natureza tributária redundou em diversas normas autorizando-se o pagamento do tributo pelo devedor/acusado como fundamento para extinção da punibilidade [2], revelando o intuito de utilização do Direito Penal como mero reforço na arrecadação tributária.

Cite-se, a título de exemplo, a orientação do artigo 83, § 4º, da Lei 9.430/96 [3], que assegura a extinção da punibilidade a qualquer tempo pelo pagamento do tributo, existindo, inclusive, decisões dos tribunais superiores [4] em que se reconhece a benesse até mesmo após a condenação com trânsito em julgado.

Nesse caso, há verdadeiro paradoxo em relação à condição de reparação do dano no acordo de não persecução penal e a própria extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, visto que o adimplemento figurará como causa de extinção da punibilidade a qualquer tempo da persecução penal. Trata-se, na verdade, de caminho até mais benéfico, pois não exigiria do investigado o cumprimento das demais condições eventualmente acordadas entre as partes (artigo 28-A, II a V) e muito menos a incidência da vedação de novo benefício nos próximos cinco anos ou não oferecimento em razão da conduta habitual, profissional ou reiterada (artigo 28-A, § 2º, II e III). Acrescente-se, ainda, que o acordo de não persecução penal exige a confissão formal e circunstanciada do fato criminoso, o que também não se verifica na norma extintiva da punibilidade.

A própria doutrina apresentou ressalva quanto à peculiaridade da condição de reparação do dano no acordo envolvendo crimes de natureza tributária [5] e, mais recentemente, proferiu-se decisão questionando a postura do Ministério Público de não oferecimento da benesse em relação à mesma infração penal [6].

Em outras palavras, tratando-se de instituto que visa a beneficiar o investigado, uma vez que cria mais uma hipótese de não oferecimento da peça acusatória no sistema jurídico relativizando-se o princípio da obrigatoriedade com a posterior extinção da punibilidade, não faz sentido que seja imposto o pagamento do tributo como condição obrigatória para fins de acordo de não persecução penal, especialmente se houve indicativo da impossibilidade de adimplemento, como dito expressamente na legislação em comento. Ademais, deve-se destacar que o mero parcelamento do tributo, realizado antes do oferecimento da peça acusatória (artigo 83, § 2º, Lei 9.430/96), já é causa suspensiva da pretensão punitiva, tratando-se, assim, de norma também mais benéfica.

Nos casos envolvendo crimes de natureza fiscal, soa desarrazoado fixar o pagamento do tributo como condição inexorável à consecução do acordo de não persecução penal, inclusive porque poderá o Ministério Público ajustar "outras condições" que se revelem necessárias ao caso concreto, a partir da discricionariedade para fins de prevenção e reprovação da infração penal. Além disso, deve ser facultada ao investigado a possibilidade de manifestação a respeito das condições, como forma de alcançar o melhor pacto com base nas peculiaridades do agente e do fato.

Portanto, considerando a possibilidade de recebimento do tributo inadimplido pela via administrativa ou por meio do ajuizamento de execução fiscal pelo Estado, em se tratando dos crimes de natureza tributária, a reparação do dano como condição deve ser excluída quando da formulação do acordo de não persecução penal pelo Ministério Público, uma vez que as normas vigentes de suspensão da pretensão punitiva ou de extinção da punibilidade daquele que busca adimplir sua dívida pelo parcelamento ou pagamento são mais benéficas.

 


[1] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Não-obrigatoriedade e acordo penal na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, ano 25, nº. 299, outubro 2017, 7-9.

[2] BITTAR, Walter Barbosa. O encerramento do procedimento administrativo e a questão da punibilidade da tentativa nos crimes contra a ordem tributária. Jornal de ciências criminais, São Paulo, vol. 1, n. 1, p. 59-70, jul-dez.2018. Disponível em: <http://www.jcc.org.br/ojs2/index.php/JCC/issue/view/1/showToc>. Acesso em: 28/4/2020.

[3] Artigo 83 (…) § 4º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.  

[4] HC 362.478/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2017, DJe 20/09/2017; RHC 98.508/SP, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/10/2018, DJe 13/11/2018.

[5] LIMA, José Luis Oliveira; DALL´ACQUA, Rodrigo. Crimes tributários e o novo acordo de não persecução penal. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-07/opiniao-crimes-tributarios-acordo-nao-persecucao-penal>. Acesso em: 28/4/2020.

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