O aquecimento global e o acordo de Paris II
23 de outubro de 2021, 13h24
Em 26/12/2020 trouxemos uma breve explanação sobre as causas do aquecimento global, o reconhecimento de sua existência na Eco-92 e na Convenção-Quadro sobre a Mudança Climática de 1994 e a disciplina da redução dos gases de efeito estufa (GEE) no Protocolo de Kyoto de 1997, que, em acréscimo aos mecanismos usuais e necessários (lei, fiscalização, sanção), criou mecanismos flexíveis para permitir a redução de emissões dos países desenvolvidos e financiar a preservação nos países pobres, baseados no comércio de emissões. Em 23/1/2021 descrevemos os três mecanismos criados pelo Protocolo: o Comércio Internacional de Emissões e a Implantação Conjunta, destinados aos países Anexo I e II, e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo[1]. Em 20/2/2021 descrevemos o MDL, o único aplicável ao Brasil, em maior detalhe.
A COP-26 será realizada em Glasgow, Escócia, Reino Unido, de 31 de outubro a 12 de novembro. É admitido que o planeta está aquecendo e que o aumento da temperatura acima de 2ºC trará consequências trágicas para os países, as pessoas, a economia e para o ambiente como o conhecemos. A COP-26 discutirá o cumprimento da contribuição nacional dos vários países, o estágio atual da redução dos gases de efeito estufa e os passos a serem dados para o objetivo já definido: a redução e absorção de todo o carbono emitido (também chamado de ‘balanço zero’) até 2050 e, prosseguindo, a emissão cada vez menor até a ‘emissão zero’ de carbono: cessar totalmente a emissão de carbono na atmosfera, refreando o aquecimento global a não mais de 1,5ºC até o final do século. Há a sensação de que o tempo está esgotando, a evolução tem sido lenta e a COP-26 precisa definir e adotar passos decisivos nesse caminho.
O que podemos esperar da COP-26, em termos jurídicos? O direito internacional tem como fontes principais os tratados, os princípios gerais e os costumes aceitos pela nações; os tratados e as convenções são obrigatórios para os Estados que os subscrevem, daí derivando sua legitimidade, e o descumprimento pode ser remediado por arbitragem, pedido à Corte Internacional de Justiça ou outro mecanismo institucional para a solução de litígios. Os tratados e convenções são chamados ‘hard law’, pois podem ser feitos cumprir pelos organismos internacionais. Ao seu lado e de importância crescente estão declarações, códigos de conduta, diretrizes e outras promulgações de órgãos políticos do sistema das Nações Unidas, diretrizes de instituições multilaterais, resoluções e declarações de organização não governamentais, também chamados de ‘soft law’, algo que ainda não é lei, mas que pode assumir um peso normativo significativo.[3]
Os tratados e convenções, ao lado das diretrizes e recomendações (a ‘soft law’), refletem de um modo relevante na legislação dos países membros, em sua conduta e na necessidade de manutenção de uma posição de respeito no conjunto das nações. Assim, em decorrência do Protocolo de Kyoto foram promulgadas a LE-SP nº 13.798/09 de 9-11-2009, que institui a Política Estadual de Mudanças Climáticas – PEMC no Estado de São Paulo[4], e logo depois a LF nº 12.187/09 de 29-12-2009 que institui a Política Nacional sobre a Mudança do Clima – PNMC visando à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático, à redução das emissões antrópicas de gases de efeito estufa em relação às suas diferentes fontes, ao fortalecimento das remoções antrópicas por sumidouros de GEE no território nacional, à implementação de medidas para promover a adaptação à mudança do clima pelas três esferas da Federação, à preservação, conservação e recuperação dos recursos ambientais, à consolidação e à expansão das áreas legalmente protegidas e ao estímulo ao desenvolvimento do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (art. 4º), tendo como diretriz, entre outras, os compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (art. 5º, inciso I). A lei prevê que o Brasil adote, como compromisso nacional voluntário ações de mitigação visando à redução entre 36,1% e 38,9% as nossas emissões projetadas até 2020.[5]
Após a ratificação do Acordo de Paris, o Brasil apresentou a sua contribuição nacionalmente determinada, a NDC brasileira, de redução das emissões globais de GEE em 37% (sobre o ano-base 2005) até 2025 e, conforme comunicação feita em 8-12-2020, assumiu oficialmente o compromisso de reduzir em 43% as emissões brasileiras até 2030 e atingir a neutralidade climática (emissões líquidas nulas) em 2060.[6]
As metas são obrigações? Podem ser exigidas? São apenas intenções? A primeira resposta parece simples: as metas são obrigações voluntariamente assumidas pelo Brasil, previstas em tratado internacional e passíveis de cobrança pelos demais países pelas formas e meios previstos no regulamento do tratado e no Direito Internacional. O descumprimento não justificado gera consequências no âmbito internacional, portanto.
A aprovação e ratificação do Acordo de Paris no plano interno pelo DF nº 9.073/17 de 5/6/2017 internaliza a norma internacional; mas pode-se perguntar se a obrigação assumida pelo país perante outros países, a ser discutida no foro internacional, atribui um direito subjetivo ao cidadão brasileiro de exigir seu cumprimento no foro nacional. A resposta à maioria dos acordos e tratados internacionais seria não; são obrigações e compromissos que se situam em outra órbita, envolvem políticas públicas de largo espectro e não conferem direito pessoal aos cidadãos.
Diferente é a situação ora analisada. O Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris estão internalizados, refletem em leis nacionais e estaduais e cuidam do direito ao meio ambiente sadio, previsto no art. 225 da Constituição Federal; o compromisso assumido e, em especial, as metas propostas, deixam de ser [nunca foram, na verdade] uma simples intenção para ser um objetivo, uma expectativa de cada cidadão brasileiro com fundamento na Constituição Federal, em várias Constituições Estaduais e na lei interna e podem, ao menos em tese, ser cobradas em juízo.
Não são ações comuns nem ações simples. As ações ambientais usuais têm por objeto a preservação ou a recomposição de áreas localizadas, identificadas no tempo, no espaço, na caracterização do dano e com claro vínculo da degradação e do degradador. A litigância climática se insere em outro patamar, em que exige da administração o estabelecimento, a implantação e o cumprimento das metas de redução de carbono para evitar o dano futuro; não há como interferir nas metas em si [veja, em outra direção, o caso Urgenda a seguir], que emanam da soberania da administração, nem como desconsiderar o custo e a complexidade da criação da economia sustentável. Tais ações estão sendo propostas em vários países com diferente resposta dos tribunais, como anota Gabriel Wedy em relevante obra[7]; e trago dois casos, apenas para ilustração.
Um, o chamado Caso Urgenda, considerado o primeiro dessa natureza no mundo, em que a Fundação Urgenda, representando 886 cidadãos holandeses, aciou o Governo da Holanda alegando o direito de cada um a uma urgente e mais significativa redução de GEE, com base na defesa de seus direitos humanos. Em 24-6-2015 a ação foi julgada procedente em primeiro grau no Tribunal de Haia, com a condenação do Governo a reduzir tais emissões em pelo menos 25% [comparado a 1990] até o final de 2020. A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Apelação em 9-10-2018 e pela Corte Suprema Holandesa em 20-12-2019, afirmando que a administração era obrigada a reduzir as emissões, com urgência e significativamente, com base em obrigações decorrentes dos direitos humanos. Após, o Alto Comissariado para Direitos Humanos das Nações Unidas publicou uma nota dizendo que “a decisão confirma que o Governo da Holanda e, por implicação, outros governos têm obrigações legais cogentes, baseadas na lei internacional de direitos humanos, de promover forte redução na emissão de gases de efeito estufa”. Essa decisão inspirou ações judiciais na Bélgica, Canada, Colombia, Irlanda, Alemanha, França, Nova Zelândia, Noruega, Reino Unido, Suíça e contra a União Europeia.[8]
Outro, no ano de 2018, quatro organizações sem fins lucrativos (Fondation pour la Nature et l'Homme, Greenpeace France, Notre Affaire à Tous e Oxfam France) enviaram uma carta de notificação formal ao primeiro ministro e 12 membros do governo francês, iniciando a primeira etapa de um procedimento legal contra o governo por ação inadequada em relação a mudança climática: a falha do governo francês em implementar medidas adequadas para enfrentar a mudança climática implicava em violação de um dever legal de agir decorrente da Carta Francesa para o Meio Ambiente, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e do direito de cada pessoa de viver em um sistema climático preservado, saudável e ecologicamente equilibrado. Em 3-2-2021 o Tribunal Administrativo de Paris reconheceu que a omissão da França causou dano ecológico e concedeu aos demandantes a indenização pedida (1 euro), e após analisar a legislação nacional e internacional e as medidas tomadas pelo governo para redução de emissões, condenou o Estado francês a cumprir suas próprias metas, ou seja, 40% de redução nas emissões até 2030 e neutralidade de carbono em 2050. [9]
A premência da questão climática, a próxima realização da COP-26 e seus reflexos não vida do planeta, o reconhecimento de que tais metas são de observância obrigatória (o dever de agir, como mencionado no caso holandês e no caso francês) e a admissão do interesse processual de cidadãos e entidades para exigir seu cumprimento, refletirão no direito e nos tribunais. Aguardemos.
[2] O Acordo de Paris foi aprovado pelo DL nº 140/16 de 16-8-2016 e entrou em vigor no Brasil, após o depósito do instrumento de ratificação junto ao Secretário Geral das Nações Unidas, em 4-11-2016; e foi promulgado no plano interno pelo DF nº 9.073/17 de 5-6-2017. O texto do Acordo está anexo ao decreto.
[3] ConJur – Hard law e soft law: a formação do direito internacional ambiental, 17-2-2019, acessado em 22-10-2019
[4] A LE-SP nº 13.798/09, entre outros dispositivos, institui a Avaliação Ambiental Estratégica, com periodicidade quinquenal e análise das consequências ambientais de políticas, planos e programas públicos e privados, e o Zoneamento Ecológico-Econômico, revisto a cada dez anos, para disciplina da utilização racional de recursos naturais e o uso e ocupação do solo paulista (art. 8º e inciso I). Institui também o Registro Público de Emissões, com acompanhamento mensurável e transparente das medidas de mitigação e absorção de GEE (art. 9º).
[5] A evolução para uma economia limpa, livre de carbono, implica em elevado investimento, preocupação do Protocolo de Kyoto e do Acordo de Paris. A LF nº 14.119/21 de 13-1-2021 institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, que visa à remuneração direta ou indireta ao provedor de serviços ecossistêmicos e que tem entre seus objetivos, pelo incentivo à preservação e recomposição ambiental, ‘contribuir para a regulação do clima e a redução de emissões advindas do desmatamento e degradação florestal’ (art. 4º, inciso VI). É uma nova modalidade de financiamento, ao lado de outras previstas no Protocolo e no Acordo.
[6] Apresentação da Contribuição Nacionalmente Determinada do Brasil perante o Acordo de Paris — Português (Brasil) (www.gov.br)
[7] GABRIEL WEDY, Litígios Climáticos, Ed. Jus Podivm, Salvador-BA, 2019.
[8] Climate Case – Urgenda, acesso em 22-10-2021.
[9] ConJur – Litígio climático na França: é preciso mais! Acesso em 22-10-2021. Trata-se de artigo publicado nesta coluna por GABRIEL WEDY, INGO WOLFGAND SARLET e TIAGO FENSTEISEIFER com uma descrição completa da ação, a que remeto os interessados.
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