Alinhamento probatório de vestígios pode minimizar riscos de perícias enviesadas
25 de junho de 2021, 17h33
No início deste mês, a 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) absolveu Matheus Augusto de Morais, acusado de roubo, em razão da inobservância do procedimento probatório previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) — as vítimas reconheceram o réu por meio de uma fotografia que lhes foi apresentada na delegacia. O voto do desembargador seguiu o precedente da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de outubro do ano passado.
Na coluna desta semana, pretendemos ampliar a discussão acima para sugerir que o alinhamento probatório pode ser incorporado como um procedimento útil para minimizar os erros que decorrem do viés de confirmação em alguns tipos de exame pericial. As pessoas em geral — e os peritos não se excepcionam — tendem a buscar, perceber e interpretar evidências de modo a confirmar suas crenças ou expectativas anteriores. É importante frisar que o tipo de erro aqui tratado é considerado um "erro honesto", não intencional, decorrente de características do funcionamento do cérebro humano, a despeito da honestidade, competência, treino e capacitação dos profissionais forenses. Para dar conta desse viés cognitivo no contexto do processo judicial, Saul Kassin, Etiel Dror e Jeff Kukucka propuseram o termo viés confirmatório forense:
"(U)samos o termo viés de confirmação forense para resumir a classe de efeitos através dos quais as crenças preexistentes de um indivíduo, expectativas, motivos e contexto situacional influenciam a coleta, percepção e interpretação das evidências durante o curso de um caso criminal".
Uma ideia que vem sendo proposta por diversos autores no campo das ciências forenses é a seguinte: quando possível, o exame pericial deveria ser realizado de acordo com um procedimento semelhante àquele previsto no artigo 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas. Assim como o reconhecimento da pessoa suspeita deve ser feito alinhando-a com outras pessoas não suspeitas, a determinação da compatibilidade entre a amostra do suspeito e o vestígio encontrado na cena do crime deve ser feita alinhando-a com outras amostras de não suspeitos. O perito, assim, deve ser capaz de determinar qual das amostras analisadas apresenta (maior) correspondência com o vestígio encontrado na cena do crime. Tal procedimento seria aplicável aos exames periciais comparativos, nos quais se busca esclarecer se um material ou uma marca encontrada na cena de crime foi deixada pelo suspeito ou por um instrumento por ele utilizado. Os exames de DNA e de impressões digitais, a grafoscopia e o confronto microbalístico estão entre os exemplos mais conhecidos.
Para que possamos entender como o alinhamento probatório poderia funcionar na prática pericial, tomemos como exemplo o exame de impressões digitais.
Os peritos atualmente contam com o auxílio de bancos de dados para a realização dos exames comparativos. Um dos bancos de dados com uso mais difundido no mundo e utilizado no Brasil é o Automated Fingerprint Identification System (Afis). Esse sistema permite comparações entre as dez impressões digitais de um suspeito com conjuntos de dez impressões do banco de dados de referência (com o objetivo de identificá-lo). O Afis permite também comparações entre um fragmento de impressão digital encontrado em um objeto ou na cena de crime e as impressões presentes no banco de dados de referência.
Nesse segundo caso, a comparação automática feita pelo sistema depende de uma etapa subjetiva prévia, na qual o perito deve marcar as minúcias presentes no fragmento de impressão digital — uma tarefa que exige atenção e acuidade visual, e que envolve decisões do tipo "este ponto é realmente uma minúcia da impressão ou é um defeito provocado pela irregularidade da superfície?". Essa etapa prévia, que conta com o perito como principal instrumento, é necessária porque os vestígios de impressões digitais frequentemente apresentam baixa qualidade e impedem que o sistema identifique as minúcias automaticamente.
Uma vez realizada a comparação entre o fragmento recém inserido e as impressões digitais do banco de dados de referência, o Afis apresenta ao perito uma lista de candidatos, geralmente ordenados por ordem decrescente de similaridade. Tipicamente, nessa fase o perito realiza a comparação manual, começando pela impressão de maior similaridade e avançando pela lista de candidatos até obter um "hit", ou seja, determinar que o vestígio e a impressão de referência têm a mesma origem. O sucesso desse processo como um todo, como se disse acima, é crucialmente dependente da qualidade do fragmento de impressão recuperado na cena de crime e da capacidade de o perito marcar corretamente as minúcias no momento de inserção no banco de dados [1].
A lista de candidatos apresentada pelo Afis já poderia ser vista como um lineup — mas apenas se o perito fosse obrigado a comparar o fragmento questionado com todos os candidatos, o que não costuma ocorrer na prática. Alguns autores sugerem que o próprio ranking da lista de candidatos pode enviesar o perito, pois ele tenderia a acreditar que o primeiro candidato da lista possui maior chance de ser a origem do fragmento examinado. Uma solução, neste caso, seria randomizar as posições dos candidatos apresentados. A combinação do lineup e a randomização da lista de candidatos poderia servir para minimizar a chance de ocorrência de viés, mas há um risco de custo em termos de tempo adicional de exame.
Mas não é só isso. É possível que na lista de candidatos gerada pelo Afis não se encontre uma impressão que tenha a mesma origem do vestígio; contudo, informações irrelevantes podem induzir o perito a achar que sim. Logo, outros fatores, para além da falta de alinhamento dos vestígios, também podem produzir o viés confirmatório no perito. Na verificação da compatibilidade entre a amostra do suspeito e o vestígio encontrado na cena do crime, o perito não deveria ser influenciado por informações irrelevantes para a execução da atividade pericial em si. A informação de que o suspeito confessou ou de que a vítima era uma criança indefesa são irrelevantes e podem enviesar o seu julgamento. "Conhecer a natureza e os detalhes do crime; ser pressionado por investigadores; trabalhar dentro — e como parte da — polícia; fazer uso de listas geradas por computador que apresentam alguns suspeitos à frente de outros; comparecer em tribunal" — são fatores contextuais que podem conduzir ao viés confirmatório forense.
O risco associado às informações de contexto irrelevantes não é uma ideia nova. Já em 1894, o livro "Um tratado sobre manuscritos questionados e a diferenciação entre assinaturas genuínas e forjadas" (tradução livre), de William E. Hagan, trazia o alerta de que:
"O perito deve se apoiar inteiramente no que é observável, deixando fora de sua avaliação todas as sugestões ou dicas vindas das partes interessadas; e, se possível, o que melhor propicia as condições para um exame equilibrado é o perito não conhecer o interesse que o solicitante tem nos resultados" [2].
Segundo relatório do Federal Bureau of Investigation (FBI) dos Estados Unidos, o viés confirmatório foi um dos fatores que deu causa à prisão errônea de Brandon Mayfield, em 2004 — um caso que se tornou célebre por questionar a fiabilidade da papiloscopia. Fragmentos de uma impressão digital foram encontrados em um saco plástico contendo detonadores em um local próximo ao ataque terrorista que, naquele ano, matou centenas de pessoas nos trens de Madri. Com a ajuda da Interpol, a polícia espanhola circulou o vestígio para todas as polícias do mundo. O FBI comparou o vestígio com as impressões digitais que se encontravam em sua base de dados e chegou à conclusão, sustentada por mais de um perito, de que a fonte da impressão digital era "definitivamente" o advogado de Oregon Brandon Mayfield.
A impressão digital de Mayfield encontrava-se na base de dados do FBI porque ele havia integrado o serviço militar. Mayfield não tinha registro de viagem à Espanha — ele sequer tinha passaporte válido ou saído do país nos últimos dez anos. Contudo, havia se convertido à religião islâmica para se casar com uma muçulmana; e também representado um cliente condenado por terrorismo numa ação de custódia. A polícia espanhola não concordou com a opinião do FBI, e pouco tempo depois indicou outra pessoa como a verdadeira fonte da impressão digital. Nesse meio tempo, Mayfield ficou preso por duas semanas, sem contato com a sua família, que permaneceu o tempo todo sem saber o local de sua detenção; e teve acesso limitado a um advogado de defesa. No desfecho do caso, Mayfield recebeu um pedido formal de desculpas por parte do governo norte-americano e uma indenização de US$ 2 milhões.
No caso Mayfield, é provável que informações sobre o atentado terrorista e a urgência de solução do caso possam ter influenciado as interpretações dos peritos do FBI. Alguns autores chegam a mencionar o fato de Mayfield ter se convertido à religião islâmica como um fator adicional na produção de viés confirmatório nos peritos. Nesse caso, o alinhamento da impressão digital de Mayfield com a de outros suspeitos poderia ter sido útil, pois outras impressões candidatas poderiam ter sido até mais similares com o vestígio.
Uma série de reformas vêm sendo discutidas para minimizar erros decorrentes do viés de confirmação forense — algumas focadas nos laboratórios onde se executam as perícias, outras nos tribunais onde as provas são valoradas. Fala-se, por exemplo, na submissão das conclusões periciais a uma revisão cega (blind peer review), na qual o exame realizado por um perito é revisado por um segundo perito, sem que este tenha conhecimento dos resultados e interpretações produzidos pelo primeiro. Pesquisa publicada recentemente sugere que a própria identidade do perito que realizou o exame deve ser mantida oculta do perito revisor, a fim de evitar que sentimentos de amizade ou relações hierárquicas influenciem o trabalho de revisão. O gerenciamento de informações de contexto é outra prática proposta e já adotada em alguns institutos de perícia: o perito não teria acesso a informações contextuais irrelevantes que poderiam produzir "contaminação cognitiva" e enviesar sua interpretação.
A ideia de privar o perito de informações de contexto, contudo, não é aceita sem críticas. Para Christophe Champod, pesquisador e professor de Ciência Forense na Universidade de Lausanne, "a interpretação dos achados periciais é condicionada às circunstâncias do caso", como explicamos em outro texto nesta coluna. Um exemplo [3] muito simples pode ajudar a esclarecer o ponto de Champod. Após um furto a residência onde houve a quebra de uma janela, um suspeito com fragmentos de vidro na jaqueta foi preso com base na descrição fornecida pela vítima. O perito é chamado para interpretar se o fragmento oferece suporte à proposição da acusação ou da defesa. Contudo, a "força" da evidência dos fragmentos de vidro na jaqueta dependerá da explicação que o suspeito poderá oferecer sobre a sua origem: se ele disser que não teve nenhum contato recente com vidro, a força da evidência contra ele é forte; mas se ele disser que trabalha em uma vidraçaria (e isso for verdade), a força da evidência se torna mais fraca. Portanto, a interpretação da evidência dependerá de informações contextuais relevantes. Para Champod, o foco exagerado no viés pode privar o perito de informações, prejudicando o próprio suspeito ou acusado.
Em estudo recente, um grupo de pesquisadores, liderado pelos psicólogos Jeff Kukucka e Itiel Dror, investigaram especificamente de que forma o alinhamento probatório afeta a tomada de decisão em exames de impressões digitais. O estudo é inédito — pois as pesquisas sobre a relação entre alinhamento probatório e vieses forenses até então realizadas não envolviam peritos profissionais, mas contavam com a participação de estudantes treinados nas técnicas da papiloscopia com objetivo de participarem na pesquisa. Entre os resultados discutidos pelos pesquisadores, destaca-se o fato de que o alinhamento probatório resultou mais em respostas inconclusivas (32%) do que o procedimento padrão de showup (13%). Isso indica que os peritos foram mais conservadores em suas respostas quando o exame comparativo envolvia a análise de uma série de amostras alinhadas. Nas palavras dos autores, "na medida em que promovem decisões conservadoras, (o alinhamento) pode oferecer aos examinadores uma camada extra de proteção contra os erros que mais temem".
Psicólogos e cientistas cognitivos têm contribuído cada vez mais para a investigação dos vieses que afetam os processos de tomada de decisão dos diferentes atores jurídicos — vítimas, testemunhas, investigadores, juízes, jurados, peritos, entre outros. É importante não só a divulgação de tais estudos científicos, mas também a sua replicação no contexto brasileiro. O objetivo da coluna desta semana foi somente levantar uma discussão atual e que precisa ser enfrentada quando nos preocupamos em minimizar erros judiciais, sobretudo aqueles que levam à condenação de inocentes. A importância do procedimento do alinhamento para a fiabilidade da prova de reconhecimento pessoal foi admitida pelos tribunais brasileiros só recentemente; mas é preciso ir além — o procedimento do lineup possui vantagens também para exames periciais comparativos.
[1] Loll, A. "Automated Fingerprint Identification Systems (Afis)". In: Houck, M. (ed.) Forensic Fingerprints. Academic Press, 2016; American Association for the Advancement of Science. Forensic Fingerprint Examination Report, 2017.
[2] Hagan, W.E. A treatise on disputed handwriting and the determination of genuine from forged signatures, 1894.
[3] Exemplo adaptado de Buckleton, J.S.; Walsh, K.A.J.; Evett, I.W. "Who is ‘random man’?". Journal of the Forensic Science Society, Volume 31, Issue 4, 1991, pp. 463-468.
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