Limite penal

A prova de reconhecimento de pessoas não será mais a mesma

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

30 de outubro de 2020, 8h46

“De todo urgente, portanto, que se adote um novo rumo na compreensão dos Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas; não se pode mais referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças”. (HC n. 598.886-SC, Rel. Ministro Rogério Schietti, 6a T. 27/10/2020)

“A teor dos julgados desta Corte Superior, não é obrigatória a repetição das formalidades do art. 226 do CPP em Juízo, na conformação do reconhecimento de pessoas realizado na fase inquisitorial. Prevalece o entendimento de que as formalidades configuram mera recomendação e podem ser realizadas de forma diversa desde que não comprometida a finalidade da prova” (ArRg, no AREsp n. 1.175.175/AM, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, 6a. T. 15/12/2017)

ConJur

Pouco menos de três anos separam as duas decisões trazidas em epígrafe. Por ocasião do julgamento do HC n. 598.886-SC, na última terça-feira, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça (a partir de agora, STJ) decidiu conferir nova interpretação ao art. 226 do CPP. O cumprimento das formalidades para se realizar o ato de reconhecimento, que até então era compreendido como mera recomendação, finalmente teve confirmado seu status de condição necessária, ainda que não suficiente, para que um reconhecimento possa contar como prova: necessária porque sem as formalidades não se pode, sequer de longe, confiar em seu resultado; insuficiente porque, mesmo quando observadas todas as formalidades, não se pode perder de vista a falibilidade que acomete a memória humana em seu regular funcionamento. Sendo o reconhecimento uma prova dependente da memória, impõe-se análise sempre crítica e realista acerca de suas inerentes limitações. A decisão, de relatoria do Min. Rogerio Schietti, é divisora de águas na proteção de inocentes bem como do direito de defesa, por algumas razões que apontaremos neste artigo. Antes delas, no entanto, cabe dizer algo sobre o caso cujo exame oportunizou este mais que bem-vindo ajuste interpretativo.

Ao caso, então. Trata-se de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina em favor de dois pacientes, ambos com condenação em primeira instância por suposta prática de roubo (art. 157, § 2o, II, do CP) mantida pelo Tribunal de Justiça daquele estado. A condenação se fundamentou única e exclusivamente na definição da autoria dos réus I e V por meio do reconhecimento realizado em sede policial. Sem observância das formalidades do art. 226 do CPP, exibiu-se a fotografia dos pacientes às vítimas que, por sua vez, ainda que os reconhecendo, não deixaram de mencionar circunstâncias importantes:

i) que os dois assaltantes estavam “de capuz”, “com a cara coberta”, “encapuzados”;

ii) que um dos assaltantes mediria cerca de 1,70m;

E, finalmente, de acordo com reconstrução da narrativa das vítimas feita pelo próprio Juiz sentenciante,

iii) que “as vítimas foram abordadas e surpreendidas dentro do restaurante enquanto jantavam, sendo ameaçadas para que não olhassem para os acusados”.

O efeito da visão de túnel1 assegurou que nem mesmo a gritante diferença de estatura de 1,70m mencionado pelas vítimas e testemunhas a 1,95m do paciente foi bastante para, racionalmente, assentar o erro daquela condenação.

Ao contrário, a combinação de múltiplas variáveis debilitadoras da memória só revela a manifesta falta de justificação da condenação: como amplamente já indicado em estudos da psicologia do testemunho, o alto grau de estresse, o uso de disfarces (capuz), a exibição de fotos de modo sugestivo (como o álbum de fotos inerentemente é), a falta de instruções do responsável pelo reconhecimento à vítima testemunha (no sentido de que é possível que o culpado não esteja presente no reconhecimento) reduzem a pó a fiabilidade do reconhecimento realizado. Felizmente, o convalidado até então, foi recebido criticamente pela sexta turma do STJ:

“O primeiro paciente foi reconhecido por fotografia, sem nenhuma observância do procedimento legal, e não houve nenhuma prova produzida em seu desfavor. Ademais, as falhas e inconsistências do suposto reconhecimento sua altura é de 1,95m e todos disseram que ele teria por volta de 1,70m; estavam os assaltantes de rosto parcialmente coberto; nada relacionado ao crime foi encontrado em seu poder e a autoridade policial nem sequer explicou como teria chegado à suspeita de que poderia ser ele um dos autores do roubo ‒ ficam mais evidentes com as declarações das três vítimas em juízo, ao negarem a possibilidade de reconhecimento do acusado. Sob tais condições, o ato de reconhecimento do primeiro paciente deve ser declarado absolutamente nulo, com sua consequente absolvição, ante a inexistência, como se deflui da sentença, de qualquer outra prova independente e idônea a formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime de roubo que lhe foi imputado”.

Ou seja: não basta repetir como “mantra” que os réus foram reconhecidos pelas vítimas e testemunhas; é preciso se perguntar em que condições o reconhecimento se deu. Exatamente esse o passo decisivo que foi dado no julgamento do writ.

A partir de agora, destacaremos três pilares desenvolvidos na decisão que, por sua vez, servem a assegurar ao nosso sistema de justiça contornos mais atrativos no que toca à redução do risco de se condenar inocentes.

1. Argumento da ciência
A decisão se constrói a partir de fartas referências aos estudos do que ali nomeou-se de “psicologia moderna”. Pesquisas oriundas da psicologia do testemunho foram amplamente consultadas de modo a dar conta de importantes aspectos da memória humana. Na decisão, a falibilidade da memória é compreendida como ponto central para a análise do que se discutiu em sede de habeas corpus. Considerando o caso em questão, a decisão aborda o risco de formação de falsas memórias, posto que se trata de matéria flexível, maleável, degradável. “Memory malleability: constructivist and fuzzy-trace explanations” (Loftus), “Make believe memories” (Loftus), “Creating false memories” (Loftus), “Criando falsas memórias em adultos por meio de palavras associadas” (Stein; Pergher) são apenas alguns dos artigos citados para prover tratamento adequado a uma das principais matérias-primas do processo penal: a memória. Acertadamente, dado que ela não funciona como uma máquina fotográfica (algo que já ressaltado pelos autores desta coluna, em outros escritos)2. A descoberta da memória como ela é, em contraste a como gostaríamos que ela fosse (mas não é), impõe mudança de tratamento jurídico quanto ao que dela se pode esperar.

A atenção ao risco de relatos confiantes porém falsos, bem como com a sugestionabilidade que a repetição do procedimento apresenta são, sem dúvidas, pontos fortes da argumentação desenvolvida. Por representativa de justificada atitude de deferência epistêmica aos especialistas das áreas que efetivamente dedicam-se ao estudo da memória, reproduzimos um trecho, relativo aos nocivos efeitos da repetição do reconhecimento:

“Neste contexto, vale mencionar a interessante conclusão de pesquisa realizada nos Estados Unidos, conduzida pelo professor Brandon Garret, a qual apontou que a repetição de procedimentos de identificação não confere maior grau de confiabilidade a um reconhecimento. Há, no entanto, correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva. Em amostra com 161 condenações de inocentes revertidas após a realização de exame de DNA, 57% dos casos contaram com mais de um procedimento de identificação: a testemunha admitiu em juízo que, inicialmente, não tinha certeza quanto à autoria do delito e que passou a reconhecer o acusado somente depois do primeiro reconhecimento (Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo, 1ed., jun. 2020, p. 13).3

Na sequência, são citadas as pesquisas de Steblay e Dysart, e, finalmente Arocena; todas corroborando a necessidade de se olhar com cautela à repetição do reconhecimento. Passagens como essa, recheadas de dados empíricos e estudos realizados por profissionais cujas credenciais são reconhecidas por seus pares, compuseram a estratégia argumentativa da presente decisão. É da ciência que se conclui urgência de mudança das práticas e efeitos conferidos à prova de reconhecimento em nosso sistema de justiça.

2. Argumento da forma
Além da devida referência à ciência, a decisão reforça a necessidade de se respeitar a forma. Como amplamente dito por aqui, forma é garantia. Se o nosso sistema jurídico oferece o art. 226 do CPP, sua observância é condição necessária a todo e qualquer reconhecimento a que se pretenda efeitos jurídicos. Recuperando a distinção de Nuvolone, entre provas ilícitas e provas ilegítimas, o Min. Relator explica que o destino das provas produzidas com violação a normas procedimentais só pode ser o da nulidade. Aplicando ao reconhecimento do caso em tela, a decisão do STJ faz notar que, no caso concreto, inobservância dos procedimentos previstos em lei faz com que o reconhecimento formal do primeiro paciente seja nulo e, dessa feita, imprestável a amparar juízo de condenação.

A continuação, a menção a casos emblemáticos de erros judiciários na decisão expressa a sensibilidade da sexta turma diante da debilidade probatória dos reconhecimentos irregularmente produzidos. Outra vez, correta a postura, pois não há mesmo como se confiar em resultados obtidos com desprezo a etapas imprescindíveis à minimização do risco de que um inocente seja selecionado. Vale o alerta de que a correção dos métodos de investigação guarda sintonia com a própria ideia de preservação de garantias de todo e qualquer acusado.

Sobre a específica importância de se observar as formalidades do 226 do CPP, o voto defende urgência em se adotar nova interpretação. Após citar julgados passados em que se fizera presente o tal caráter de “mera recomendação” (de cumprimento das formalidades), a relatoria se posiciona de maneira corajosa:

“(…) Proponho que sejamos capazes de rever essa interpretação, mercê da qual se convalida, de algum modo, o reconhecimento ‒ tanto pessoal quanto fotográfico ‒ feito em desacordo com o modelo legal, ainda que sem valor probante pleno, e que pode estar dando lastro a condenações temerárias. Em verdade, o entendimento que se tem sufragado é o de que, havendo alguma prova que ‘dê validade’ ao reconhecimento irregularmente produzido na fase inquisitorial, este meio de prova acaba por compor o conjunto de provas a ser avaliada pelo juiz ao sentenciar. O problema de tal interpretação é que, não sendo raro, a vítima confirmar em juízo reconhecimento irregular, esse meio de prova assume importância ímpar no destino do acusado, porque ‘amparado’ por mera ratificação em juízo de algo que foge dos mínimos standards ou padrões epistemológicos para ser válido’”.

Em síntese, coloca-se sobre a mesa os deletérios efeitos da pressa em se imputar autoria; quando as regras do jogo são manipuladas e, com isso as chances de falsos positivos são incrementadas. Neste ponto, por um lado, a decisão apresenta rechaço ao entendimento anterior que desconsiderava formalidades constantes no art. 226; por outro, um aceno à necessidade de que os diversos operadores jurídicos comprometam-se com adequada capacitação; tudo com vistas à produção de elementos informativos/probatórias cujos resultados sejam, enfim, epistemicamente confiáveis.

3. Argumento institucional
Finalmente, ao lado do destaque às contribuições da ciência e do respeito à forma prevista, importa realçar o alerta do Relator claramente direcionado às instituições encarregadas da persecução penal no sentido de assumirem responsabilidade pela regularidade dos atos de investigação praticados e, com isso, tornarem efetivos os dois eixos anteriores. Em outras palavras, incumbe a esses atores — “desde o policial que atua no flagrante até os membros das mais altas cortes do Poder Judiciário” — a apropriação de técnicas pautadas nos avanços científicos e o zelo quanto à observância e emprego das formas adequadas de realização dos reconhecimentos para que o ato deixe de protagonizar as estatísticas de condenação de inocentes.

Afinal, como bem afirmado, “De nada, porém, servirá esta decisão se continuarem os órgãos de persecução penal — e o próprio Poder Judiciário — a coonestarem essa prática investigatória dissociada do modelo legal e constitucional de um processo penal minimamente ético em seu proceder e cientificamente exercitado por seus protagonistas.”

Fica claro, portanto, que os destinatários do preceito são os órgãos públicos e eles, todos eles, devem preservar a higidez do preceito. Quanto aos julgadores, importa ainda salientar, a função decisiva de advertir — na motivação de suas decisões absolutórias — que tal providência é a solução impositiva sempre e quando os procedimentos de reconhecimento não respeitarem as condições adequadas, sinalizando que os agentes não lograram observar suas respectivas obrigações legais. Nestas situações, há que se sublinhar que foi a displicência quanto à forma o que acabou por evitar a legítima determinação de culpa. A cooperação institucional com vistas à produção de reconhecimentos confiáveis representa um novo rumo ao nosso sistema de justiça: a prova de reconhecimento de pessoas, felizmente, não será mais a mesma.


Os subscritores da Limite Penal celebram todos os pesquisadores, professores, operadores jurídicos e instituições que, de algum modo, centram seus esforços na luta pelo direito de defesa e, de modo especial, dedicam-se às debilidades do reconhecimento de pessoas.


1 Findley, Keith; Scott, Michael. “The Multiple Dimensions of Tunnel Vision in Criminal Cases”. Wisconsin Law Review. n. 1023, pp. 291-393, jun/2006.

2Matida, Janaina. “O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal”, Limite Penal, Conjur. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal; Lopes Jr., Aury; Morais da Rosa, Alexandre. “Memória não é Polaroid: precisamos falar sobre reconhecimentos criminais”. Limite Penal, Conjur. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2014-nov-07/limite-penal-memoria-nao-polarid-precisamos-falar-reconhecimentos-criminais; Matida, Janaina; Nardelli, Mascarenhas Nardelli e Herdy, Rachel. “No processo penal, a verdade dos fatos é garantia”. Limite Penal, Conjur. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-jun-19/limite-penal-processo-penal-verdade-fatos-garantia.

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Autores

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    é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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    é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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    é doutora em Direito Processual pela Uerj e professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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    é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.

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    é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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