Público X Privado

O discurso do ódio e a liberdade de expressão II: o caso do deputado Daniel Silvei

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22 de fevereiro de 2021, 19h09

Spacca
Já tive a oportunidade de falar aqui sobre o discurso do ódio e a proteção constitucional à liberdade de expressão quando comentei o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e o de João Pedro Mattos no Brasil. Recentemente, o caso do deputado Federal Daniel Silveira gerou grande controvérsia no meio jurídico e na sociedade brasileira, não só em relação à garantia da liberdade de expressão, mas também em relação à imunidade parlamentar.

Estabelece o art. 53 da Constituição Federal que "os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos", e o respectivo § 2º em que  "os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável". A situação fica mais controversa considerando que a decisão foi tomada de ofício pelo ministro Alexandre de Moraes em um inquérito aberto sem requisição dos agentes responsáveis pela investigação criminal (Ministério Público e Polícia Federal).

A omissão do Ministério Público na execução de sua missão constitucional, que tem a obrigação e não a faculdade de investigar crimes, representa um dos grandes desafios atuais do nosso sistema institucional, pois sugere uma seletividade política contra quem se investiga.

No caso em discussão, os pontos de controvérsia são muitos e o debate no meio jurídico foi intenso quanto aos prós e contras da decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, que acabou confirmada pela unanimidade do Plenário do Supremo Tribunal Federal e pela ampla maioria da Câmara do Deputados e com apoio de múltiplos partidos.

No meu entender, as considerações em relação ao ocorrido com o deputado Daniel Silveira devem examinar alguns pontos que entendo relevantes e que passo a pontuar.

O primeiro ponto é entender o alcance da proteção constitucional à liberdade de expressão. Não é qualquer expressão protegida, como já alertou o  juiz Oliver Wendell Holmes Jr., em 1919, no caso Schenck v. United States (249 U.S. 47, 52), e relembrado pelo ministro Celso de Mello no julgamento do Habeas Corpus 82.424-2/RS, já que "A mais rígida proteção da liberdade de palavra não protegeria um homem que falsamente gritasse fogo num teatro e, assim, causasse pânico". E avança o ministro Celso de Mello em seu voto, ainda citando o juiz Holmes, "a questão em cada caso é saber se as palavras foram usadas em tais circunstâncias e são de tal natureza que envolvem perigo evidente e atual ('clear and present danger') de se produzirem os males gravíssimos que o Congresso tem o direito de prevenir. É uma questão de proximidade e grau".

Neste ponto, pergunta-se: existe alguma ideia subjacente às declarações feitas e veiculadas nas mídias sociais ou ela apenas se traduz em uma manifestação de ódio e desacato às autoridades por ele referidas? Basta ler as declarações por ele feitas () para responder esta pergunta.

O chamado "hate speech" ou discurso do ódio não merece a proteção constitucional. Diga-se que o discurso de ódio é aquele que não veicula uma ideia subjacente além do próprio ódio. Ele pode traduzir-se, dependendo do conteúdo, da forma e do momento em que foi veiculado, no desacato, na injúria, na difamação ou na calúnia: todos crimes associados ao discurso do ódio.

Nesse passo, vale lembrar o que já escrevi nesta coluna: "O objeto do ódio pode mudar, mas na essência é o mesmo: tudo e todos que representam o oposto ao desejo de determinados grupos, sejam judeus, negros, militantes de correntes políticas, até ministros do Supremo Tribunal Federal ou membros do Congresso Nacional. É o puro exercício do ressentimento e do ódio.".

O segundo ponto, portanto, é sabermos se existe um perigo evidente e atual com a declaração emitida pelo deputado Daniel Silveira. E, para responder esta pergunta, faço um paralelismo com os fatos recentes da invasão do Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos da  América. No referido episódio, ficou claro que a invasão do Congresso, momento da confirmação do resultado da eleição presidencial, decorreu do incentivo dado pelo Presidente Donald Trump, fato reconhecido pela maioria da Câmara do Deputados, que admitiu o processo de impeachment, e pela maioria do Senado (com sete votos do Partido Republicano), ainda que nesse último caso não com a maioria suficiente para condená-lo.

Ou seja, a declaração do deputado Daniel Silveira tem o real e permanente impacto de motivar seguidores a realizarem a barbárie que ele prega, atacando os ministros que ele citou. O fato de ele não o fazer explicitamente, com também não o fez Trump, não desnatura o impacto e a indução ao ódio e violência contida na declaração por ele proferida. Ou seja, o discurso do ódio, mesmo não clamando por uma ação específica, é elemento indutor do ato de violência.

E aqui, para reforçar o que indica o perigo real e imediato da manifestação do deputado Daniel Silveira, é importante registrar o alerta do ex-ministro da Defesa do governo do Presidente Michel Temer, Raul Jungmann, de que é "inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para 'a defesa da liberdade' evoca o terrível flagelo da guerra civil e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto". Ou seja, o  armamento da população em geral deve promover mais violência no Brasil.

Aqui não estou afirmando que o ato do presidente e o do deputado Daniel Silveira estejam diretamente conectados, mas que a permissividade à violência decorrente da declaração do deputado ganha terreno fértil com a autorização ampla do armamento da população em geral. Violência gera violência, diz o ditado popular.

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