Opinião

A improbidade administrativa por descumprimento de princípios à la carte

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

3 de agosto de 2021, 9h12

Conforme devidamente noticiado [1], o relator do projeto da nova Lei de Improbidade, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), concluiu o texto da proposta em fevereiro deste ano e o foco da discussão em torno da proposta gira em torno da nova redação do artigo 11. A nova redação proposta rejeita, acertadamente, ao nosso ver, que uma conduta seja caracterizada como improbidade caso não "implique em enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, nos termos dos artigos 9º e 10º desta lei, indo de encontro a jurisprudência do STJ, que tem entendimento firmado de que, para a configuração dos atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração (artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa), não se exige a comprovação de enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário" (AREsp 818.503).

O Brasil vive um tipo de polarização perniciosa que inviabiliza, muitas vezes, o necessário debate democrático (Abranches, 2020). A corrupção é, sem dúvidas, um mal que assola o Brasil. O aperfeiçoamento ao combate à corrupção no serviço público foi uma grande preocupação do legislador constituinte ao estabelecer, basicamente no artigo 37 da Constituição Federal, verdadeiros códigos de conduta à Administração Pública e seus agentes, prevendo, inclusive, a possibilidade de responsabilização e aplicação de graves sanções pela prática de improbidade administrativa (artigo 37, §4º, da CF). Não obstante, a busca pela eficiência não deve acontecer sob o atropelo das garantias processuais.

Discursos e atitudes punitivistas vêm sendo usados, desde à época da operação "lava jato", para justificar eventuais excessos dos órgãos de controle, tudo em nome do suposto combate à corrupção. Nietzsche nos ensina, em seu aforismo 146, no clássico "Além do bem e do mal", que "aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha de volta para você." (Nietzsche, 2017, p. 85).

Nesse sentido, tem-se que, conforme leciona Georges Abboud, esses conceitos são trazidos no afã de proteger o direito da contaminação política, como se dá, por exemplo, com a utilização do eficientismo e do combate à corrupção como fundamentos que têm produzido um não Direito Penal, dentro do Direito Penal vigente, mediante desrespeito a prazo de prisões, cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, transformações de indícios em provas, espetacularização de busca e apreensões, e criminalização do exercício do direito de defesa ou ainda um sentimento de repúdio às decisões judiciais concessivas de Habeas Corpus (Abboud, 2021, p.111).

Lenio Streck, entre tantos outros, inclusive estes autores que vos escrevem [2], em artigo próprio na ConJur, vem, há muito, alertando para o perigo de dar total "carta branca" para combater seja qual for o inimigo. Isso, pois, em um Estado democrático de Direito, o alerta é claro: os meios servem para legitimar o fim, e jamais o contrário.

A Lei de Improbidade, portanto, não pune a mera ilegalidade, mas, sim, a conduta ilegal ou imoral do agente público, e de todo aquele que o auxilie, voltada para a corrupção [3]. Em seu artigo 11, a Lei 8.429/1992 dispõe constituir ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão que violando os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições atentem contra os princípios da Administração Pública.

Dessa forma, atualmente, para a tipificação de uma das condutas previstas no artigo 11, há a necessidade dos seguintes requisitos: 1) conduta dolosa do agente: para a tipificação de um ato de improbidade descrito no artigo 11 exige-se a existência da vontade livre e consciente do agente em realizar qualquer das condutas nele descritas; 2) conduta comissiva ou omissiva ilícita que, em regra, não gere enriquecimento ilícito ou não cause lesão ao patrimônio público: a ratio legal para a existência do artigo 11 é a necessidade da existência de um tipo subsidiário, para que possa haver a responsabilização do agente cuja conduta ilícita e em afronta aos princípios da Administração Pública, mesmo que não haja o enriquecimento ilícito, exigido no artigo 9º da lei, ou lesão ao patrimônio público, cuja exigência é feita pelo artigo 10; 3) violação dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições; 4) atentado contra os princípios da Administração: não se refere a lei somente aos princípios constitucionais da Administração Pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição Federal, mas a todos os princípios da Administração Pública, em especial aos princípios da legalidade; impessoalidade; moralidade; publicidade; eficiência; supremacia do interesse público; razoabilidade e proporcionalidade; presunção de legitimidade e de veracidade; especialidade; controle administrativo ou tutela; autotutela administrativa; hierarquia; motivação; continuidade do serviço público; 5) existência de nexo causal entre o exercício funcional e o desrespeito aos princípios da administração [4].

Não serão possíveis hipóteses em que o Ministério Público ou qualquer outro dos colegitimados apontem genericamente condutas de agente público sem o necessário elemento subjetivo do tipo e sem qualquer indicação que mostrasse a intenção de praticar ato de corrupção, caracterizando a acusação tão somente em responsabilidade objetiva do réu, por exercer determinado cargo ou função pública, como recentemente reiterou o STJ, afirmando a "imprescindibilidade do elemento subjetivo para a configuração do ato de improbidade administrativa. As duas Turmas da 1ª Seção, já se pronunciaram no sentido de que o elemento subjetivo é essencial à configuração da improbidade: exige-se dolo para que se configurem as hipóteses típicas dos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos a culpa, nas hipóteses do artigo 10" [5].

Nesse sentido, em hipóteses em que a conduta imputada ao agente é realizada de maneira objetiva, sem comprovação de mera participação do agente público, ou mesmo de parcela de sua responsabilidade — impedindo-se, dessa maneira, inclusive a possibilidade do exercício da ampla defesa — resultando patente a ausência do elemento subjetivo do tipo (dolo), não se poderá afirmar que a conduta do agente público foi direcionada para a corrupção, ou ausente o elemento normativo (culpa), quando possível (artigo 10 da LIA), estará descaracterizado o ato de improbidade administrativa, e, consequentemente, a aplicação das sanções estabelecidas na Lei 8.429/1992.

Não obstante, tem-se que as sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa, embora não possam ser consideradas precisamente como de tipo penal, constituem mais do que simples punição civil, é uma sanção política, o que justifica a especial cautela para o recebimento da ação de improbidade, bem como a cautela para proferir uma sentença condenatória por ato de improbidade administrativa [6].

A Lei nº 8.429/92 veicula inegáveis efeitos sancionatórios, alguns deles, como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, somente impingíveis por ato de jurisdição penal, o que faz legítima, ao que entendo, a aplicação da mesma lógica sistêmica que se usa nessa forma jurisdicional especializada (penal), onde não se duvida da plena fruição do foro especial por prerrogativa de função.

Não há dúvida de que as ações de improbidade administrativa possuem, sobretudo, natureza penal, tendo em vista a existência de sanções como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, bem como a proibição de contratar com a Administração Pública, ou seja, as penalidades da ação de improbidade administrativa extrapolam a esfera cível, até porque não possuem apenas função ressarcitória.

Dessa forma, o magistrado somente está autorizado a proferir uma sentença condenatória por ato de improbidade administrativa se existir um conjunto probatório robusto acerca da prática do ato improbo, visto que, em caso de dúvida, devem os pedidos formulados serem julgados improcedentes, ou seja, o requerido deve ser beneficiado pelo princípio do in dubio pro reo, devendo prevalecer a presunção de inocência do agente público nos casos de fragilidade do conjunto probatório.

Sendo assim, a presunção de inocência do agente público somente pode ser elidida quando houver provas robustas acerca da prática ato de improbidade administrativa, pois não são permitidas condenações baseadas em alegações sem lastro probatório.

Com tudo isso dito, voltamos ao objeto deste artigo. Isto, pois, atualmente, a violação a princípios pode ocorrer sem que propósitos escusos estejam presentes, e de maneira claramente discricionária. Mais que isso, não é difícil reconhecer situações em que se possa sustentar violação a dado princípio, embora a conduta esteja apoiada em outros. Vira, em verdade, um verdadeiro jogo de retórica, especialmente, à luz do panprinciologismo, muito já criticado por Lenio Streck, há praticamente uma década [7].

Nesse sentido, o artigo 11 é comumente citado nas iniciais das ações de improbidade quer como fundamento único da acusação, quer associado a um dos dois outros dispositivos, aplicado de forma subsidiária. Algo do tipo: "Caso Vossa Excelência não entenda pela aplicação do artigo 09 e/ou 10, coloque no 11". Afinal, nele, tudo cabe.

Assim, segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Direito Público (IDP), essa modalidade concentra cerca de metade de todos os casos de improbidade administrativa que chegam ao STJ [8]. Não se trata, pois, de negar o desacerto e nem afastar, se for o caso, a responsabilização do agente, mas de removê-la para que ocorra em outras searas. O que não se pode pretender é que qualquer ato atentatório a princípio da administração se sujeite às gravidades da Lei de Improbidade, cujo escopo principal é a punição de atos deliberadamente desonestos e eivados de má-fé [9].

O dia a dia do agir administrativo, as circunstâncias, limites financeiros, problemas ligados aos recursos humanos, entre outros fatores, levam o agente público a determinados caminhos e a certas condutas. Nesse sentido, conforme artigo 22 da LINDB:

"Artigo 22  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados".

Deve-se levar em conta a noção de deferência, traduzindo-se no reconhecimento de que o ordenamento jurídico reserva espaços decisórios ao administrador dada a incapacidade do legislador de antever sempre soluções que melhor enderecem o interesse público [10]. O Judiciário não pode desconsiderar a realidade administrativa nem descurar dos espaços reservados pelo Direito ao gestor.

Assim, não raras vezes, tem-se que o órgão acusador age em desconformidade de seu ônus funcional, ao fazer alegações genéricas e abstratas, impossibilitando, pois, o exercício de defesa, uma vez que utiliza-se de uma verdadeira fábrica de princípios para, subsidiariamente, imputar qualquer tipo de conduta ao contestante, ainda que inexista comprovação de enriquecimento ilícito, dano ao erário ou, ainda, que o suposto descumprimento de um princípio significa o feito necessário para o cumprimento de outro.

Lenio Streck, com a acidez crítica que lhe é peculiar, chama essas situações, em que alega-se genericamente "violações a princípios" como forma de resolver o "problema", de fator Groucho Marx [11]. Dessa forma, assim como ironizava o humorista, são oferecidos ao juiz vários princípios. Mas, caso o magistrado não goste, tem-se outros, sem problema. O cardápio é generoso, e a promessa é de que o cliente sempre encontrará algo que o agrade.

 

Referências bibliográficas
Abboud, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021).

ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Mauro Campbell Marques… [et al.]. Improbidade administrativa: temas atuais e controvertidos /  coordenação Ministro Mauro Campbell Marques; colaboração André de Azevedo Machado, Fabiano da Rosa Tesolin — Rio de Janeiro: Forense, 2016.

 


[3] Improbidade administrativa: temas atuais e controvertidos / Mauro Campbell Marques… [et al.]; coordenação Ministro Mauro Campbell Marques; colaboração André de Azevedo Machado, Fabiano da Rosa Tesolin — Rio de Janeiro: Forense, 2016 .p. 22

[4] Improbidade administrativa: temas atuais e controvertidos / Mauro Campbell Marques… [et al.]; coordenação Ministro Mauro Campbell Marques; colaboração André de Azevedo Machado, Fabiano da Rosa Tesolin — Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 26

[5] STJ, 1ª T., AgRg no REsp 1.122.474/PR, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 02.02.2011

[6] Trechos do voto do Relator, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, ao julgar o AgRg no AREsp 27.704/RO.

[9] NEISSER, Fernando Gaspar. Dolo e culpa na corrupção política: improbidade e imputação subjetiva. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

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