Opinião

Lawfare e (im)parcialidade judicial: precisamos salvar o Direito!

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

16 de março de 2021, 19h05

Piero Calamandrei, ao publicar a obra "Processo e Democrazia" [1], no longínquo ano de 1954, fruto de sua participação como palestrante em um curso de inverno na Cidade do México dois anos antes, já nos lecionava sobre a importância do processo para a verdadeira práxis democrática, configuradora de um autêntico Estado de Direito, cujo fim residiria, principalmente, na efetiva concretização dos direitos e das garantias fundamentais. Em outras palavras, na efetiva e hoje consagrada força normativa da Constituição.

Nesse sentido, entendendo o processo como drama, dever-se-ia dar especial atenção ao protagonista deste: o juiz. Assim, sendo o mais importante dos personagens do processo, sua qualidade essencial é (ou deveria ser) a imparcialidade. Dessa forma, em tese, o juiz deveria ser um terceiro estranho à controvérsia, não compartilhando dos interesses e paixões, suas ou da parte. É, em essência, a eficácia prática da teoria dos dois corpos do rei, mencionada e trabalhada diversas vezes, seja em obras jurídicas [2], seja nesta revista, por Lênio Streck [3] e Marcelo Catonni [4], entre tantos outros.

A dúvida é: o que acontece quando o juiz, protagonista do drama processual, não possui essa qualidade da imparcialidade? Bem, nesse caso, temos o já batido problema da discricionariedade nos sistemas jurídicos contemporâneos e o consequente ativismo judicial [5], bem como eventual degeneração da democracia em juristocracia (HIRSCHL, 2004) ou, como parece ser nosso caso, ministrocracia (GOMES NETO et al, 2018). Em outras palavras, temos tudo, menos Estado democrático de Direito.

Nesse sentido, a doutrina constitucional brasileira vem, há muito, buscando meios de se obter um mínimo padrão decisório na jurisprudência, à luz de uma resposta constitucionalmente adequada. A tarefa é árdua e, ainda que tenha sido feito quase que diariamente o necessário constrangimento epistemológico [6], buscando delimitar formas e meios de se decidir racionalmente, com fim de manter a integridade e coerência do sistema, parece que o Direito tem falhado gravemente. Tristemente, fora tomado pelo canto das sereias.

Recentemente, Streck [7] nos advertiu, novamente, que transformamos o Direito em uma questão politica e aparentemente aceitamos (e institucionalizamos?!) o lawfare, vez que apenas isso justificaria que um juiz condene um ex-presidente e tantas outras pessoas depois de forçar uma competência que nunca teve.

O problema, contudo, não está nesta decisão em especial. Esse é apenas um sintoma de uma doença maior. O problema está na aparente tomada, tragicamente, do Direito pela política. É a antítese de todos os ideais daqueles que lutam por coerência e integridade sistêmica, bem como, em última análise, é uma derrota daqueles que lutam pela democracia. É o uso desmedido, escancarado e sistematizado do lawfare.

Nesse ensejo, é de extrema necessidade conceituarmos o que seria, então, lawfare. O lawfare seria, portanto, um neologismo advindo da junção do termo law (direito) e warfare (estado de guerra), caracterizando-se, em síntese, pela utilização das instituições jurídicas, juntamente com a influência midiática, tendo como fim concretizar, de forma implícita, uma intervenção ilegítima na disputa política no âmbito das democracias liberais-representativas.

O lawfare, que, segundo Alexandre Morais da Rosa, "é o uso do Direito e suas diversas possibilidades como estratégia para aniquilamento do inimigo, em geral com fins políticos" (MORAIS DA ROSA, 2018, p.1), surge em um contexto excepcional de seleção de inimigos, uma vez que é nele que encontram-se os subsídios para a legitimação de suas várias práticas. O ponto de ebulição destas práticas dar-se-ia com a polarização extremada (ABRANCHES, 2020).

Mantém-se, portanto, uma ideia de normalidade, legalidade e legitimidade na atuação das instituições e da própria democracia formal, ao tempo em que são perpetradas violações no cenário da disputa política, concretizando-se estratégias implícitas para a perseguição política de inimigos.

O lawfare, nesse aspecto, vai muito além da perseguição ao opositor político, agora eleito como inimigo. Esse instituto põe em risco os fundamentos mínimos da política, constituída e consolidada no âmbito da ordem democrática estabelecida. Qualquer semelhança com o que vivemos nos últimos anos, conforme podemos deduzir da chamada operação "spoofing", infelizmente, não é mera coincidência.

Observa-se, nesse sentido, o perigo representado pela adoção das práticas caracterizadoras do lawfare, que, ao estabelecer a perseguição ao opositor, interferindo diretamente no rumo da disputa política, deixa clara a existência de uma dicotomia entre o plano democrático formal, marcado pela concepção liberal, procedimental; e um plano excepcional implícito, em que se desenvolve um cenário marcado por perseguições aos opositores políticos, tendo nas próprias instituições (no presente caso, destaca-se o Judiciário) como agentes da exceção dentro da democracia.

Esse fenômeno manifesta, portanto, uma situação de exceção, pois mantêm-se uma aparência de normalidade democrática quando, na realidade, inúmeras violações formais e materiais ocorrem. Por ser uma forma excepcional de utilização das instituições jurídicas como meio de perseguição aos adversários políticos, esse fenômeno utiliza-se de uma aparência de legalidade democrática justamente para perpetuar-se. Ele constitui, nesse sentido, uma manobra que finca suas bases nessa aparência de normalidade democrática, quando na verdade há toda uma desvirtuação material desse sistema.

Algumas situações retiram essa teoria do plano teórico e apresentam desdobramentos fáticos capazes de demonstrar o perigo desse processo, caracterizado pela diluição das funções institucionais e da própria principiologia democrática.

Nesse sentido, destacam-se como indícios dessa prática: a instrumentalização política das "delações premiadas", com a cumplicidade majoritária da mídia, para dar direcionamento e seletividade ao vazamento de informações; conduções coercitivas de caráter nitidamente político, desnecessárias e ao arrepio dos dispositivos processuais, com a finalidade visível de os investigados, que sequer foram intimadas formalmente a depor; prisões preventivas de longo curso; manifestação pública de juízes, desembargadores e ministros do Supremo Tribunal Federal, interferindo no contexto político e, muitas vezes, adiantando seus posicionamentos e votos sobre processos que estão sob sua jurisdição; humilhação, por parte da mídia, de réus e investigados, criando um ambiente de julgamento antecipado, promovendo à condição de heróis, os integrantes do Ministério Público e do Judiciário.

Imperioso destacar que o lawfare coloca-se em um campo de intersecção entre o Direito e a política. O seu conteúdo encontra justificação no meio jurídico e finda por legitimar a perseguição (implícita) no âmbito político. Dessa forma, o lawfare constitui uma contradição jurídico-política e sempre se apresenta sob um caráter negativo, um fenômeno do qual não se pode retirar aspectos positivos. O perigo do lawfare apresenta-se ao estabelecer a perseguição ao opositor, interferindo diretamente no rumo da disputa política e deixando clara a existência de uma dicotomia entre o plano democrático formal, marcado pela concepção liberal, procedimental e representativa; e um plano excepcional implícito, em que se desenvolvem as perseguições contra os representantes dos segmentos excluídos da sociedade, tendo nas próprias instituições agentes da exceção dentro da democracia

O fenômeno manifesta, portanto, uma situação de exceção, pois mantém-se uma aparência de formalidade e legalidade quando, na realidade, inúmeras violações formais e materiais seguem ocorrendo. Por ser uma forma excepcional de utilização das instituições jurídicas como meio de perseguição aos adversários políticos, o lawfare utiliza-se justamente dessa aparência de legalidade democrática para constituir as suas estratégias e manobras.

Uma dessas consequências danosas pode ser observada quando se verifica que o lawfare busca, dentre seus objetivos, "fazer uma limpeza na política" (ROMANO, 2019, p. 29), o que vai diretamente de encontro a um dos pressupostos básicos da disputa política que é a possibilidade de competição e oposição. Há, nesse contexto, a constituição de um "inimigo interno", que, segundo Zaffaroni, é sempre aquele que deve ser alvo de exclusão da sociedade, através do medo ou ódio ao diferente. O autor aposta, em síntese que, ao se permitir a constituição de "inimigos internos" dentro da sociedade, impõem a necessidade de se admitir limitações e restrições aos direitos e garantias desses sujeitos, o que pode abrir precedentes para se admitir limitações e restrições a qualquer cidadão.

Assim, o sistema democrático é corroído e atacado justamente em pontos essenciais para a concepção de uma democracia liberal, quais sejam, o processo de eleições competitivas e o aspecto da concorrência política.

Nesse sentido, ressaltamos o pensamento de que estamos vivendo, nitidamente, o uso do lawfare de forma explícita, tendo isto, novamente, ficado claro com a "spoofing", conforme já demonstrado amiúde por Lênio Streck, em vários artigos aqui mesmo na ConJur.

Por fim, entendemos que para viver um regime democrático, precisamos de mais do que uma Constituição democrática. É necessário que ocorra a sempre vigilante e operosa presença do costume democrático e que, especialmente, as instituições responsáveis pela preservação desse regime estejam comprometidas em transformar este ensejo em realidade. Caso contrário, estar-se-ia apenas falando de mais um caso semelhante ao da metáfora do jogo de cricket nas ilhas Trobriand [8]. Infelizmente, em nosso caso, não se trata de uma metáfora, realmente aconteceu na terra dos tupiniquins.

 

Referências bibliográficas
ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

GOMES NETO, José Mário Wanderley; LIMA, Flávia Danielle Santiago. Das 11 ilhas ao centro do arquipélago: os superpoderes do Presidente do STF durante o recesso judicial e férias. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 741–756, 2018.

HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy. The origins and consequences of the constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2004

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Se você não sabe o que é soft law e lawfare, pior para você. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/limite-penal-vocenaosabeo-softlaw- lawfare-pior-voce. Acesso em: 24 nov. 2018.

ROMANO, Silvina M. (comp.). Lawfare: guerra judicial y neoliberalismo en América

Latina. Mormol/Izquierddo Editores. 2019. ISBN España 978-84-936041-9-6

ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael.

Lawfare: introdução – São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. ISBN: 978-85-6922-62-6

 


[1] Processo e Democrazia, Padova: Cedam, 1954.

[2] STRECK, Lenio Luiz. A discricionariedade nos sistemas jurídicos contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2019, 2 ed.

[3] ConJur – E respondi a Moro: 'Bah, com juízes como você, prefiro o originalismo'.        

[5] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites de atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

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