Limite penal

No processo penal, a verdade dos fatos é garantia

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

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  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

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  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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19 de junho de 2020, 8h29

Spacca
Antônio Cláudio Barbosa de Castro teve sua inocência confirmada por revisão criminal julgada em 29 de julho de 2019, depois de chegar a cumprir cinco anos de prisão. Ele havia sido condenado injustamente por crimes sexuais atribuídos ao “maníaco da moto” — um homem que, em meados de 2014, circulando com uma moto vermelha, estuprou mulheres na cidade de Fortaleza. De acordo com os relatos, o maníaco agia com capacete tapando a parte superior do rosto. O artifício usado pelo real culpado, contudo, não foi bastante para livrar Antônio Cláudio do injusto castigo. Num certo dia, Antônio Cláudio vai a um salão de beleza e, ao cumprimentar a dona do salão, tem a sua voz reconhecida por uma vítima de apenas 11 anos. A mãe da vítima a pedir que a dona do salão lhe consiga uma foto dele. A foto enviada por Whatsapp dá ensejo ao reconhecimento e, na sequência, mais oito vítimas o reconhecem. Durante a investigação, cinco delas se retrataram. Com três processos contra si instaurados, Antônio Cláudio teve duas absolvições — exatamente porque as vítimas não mantiveram o reconhecimento em juízo, sobrando-lhe apenas o processo da vítima de 11 anos que havia reconhecido sua voz no salão. Antônio Cláudio é condenado, e a decisão transita em julgado1.

Em 2018, dada a sua insistência em afirmar que era inocente, somada à constatação de que os ataques continuavam a ocorrer, Antônio Cláudio consegue a atenção do Innocence Project Brasil. Por meio de uma atenta investigação defensiva em parceria com a Defensoria Pública do Ceará, foram produzidas provas capazes de debilitar a hipótese acusatória. De um lado, mostrou-se que o reconhecimento da voz de Antônio Cláudio foi feito por uma criança de 11 anos e estava sujeito a todos os riscos de contaminação da memória; de outro, a diferença de mais de 20 centímetros entre as estaturas de Antonio Cláudio (1,58m) e do real culpado (1,85m) — a qual fora certificada a partir de dois laudos periciais de um vídeo com a imagem do maníaco. Além disso, o conjunto probatório também continha os testemunhos de ex-namoradas de Antônio Cláudio, todas no sentido de que o então condenado seria incapaz de cometer estupros. Em suma, o cuidadoso exame de todos os elementos probatórios resultou na declaração de inocência de Antônio Cláudio2.

O caso de Antônio Cláudio retrata muito bem a relação entre processo penal e verdade. Deve o processo penal perseguir a verdade? A resposta é afirmativa. A busca pela verdade pode ser resumida como a tentativa de fazer corresponder a premissa fática do raciocínio judicial com os fatos como efetivamente ocorreram. Não se quer apenas que a decisão seja válida do ponto de vista jurídico, mas também que ela seja justa – isto é, que atribua penalidade somente àqueles que as fazem por merecer. Logo, a preocupação com a relação entre processo penal e verdade consiste na preocupação com os erros judiciais que devemos evitar. As ferramentas do direito probatório foram pensadas justamente para evitar a condenação de inocentes e a absolvição de culpados — ou seja, a administração da justiça com base em fatos reais.

Essa preocupação com a verdade explica, por exemplo, os recentes esforços de aproximar o direito probatório das pesquisas realizadas pela psicologia cognitiva experimental. Nossa luta pela reforma das regras probatórias relativas às provas dependentes da memória só se explica com base numa preocupação epistêmica com a verdade. Ora, se as pesquisas científicas indicam que a memória não funciona como um filme que se preserva intacto até que se queira acessá-lo, inexiste justificativa para a manutenção de regras cujo fundamento assente nesta equivocada premissa. E pesquisas científicas, vale dizer, pretendem ser verdadeiras. Se conservamos o reconhecimento de pessoas na forma validada pelo Superior Tribunal de Justiça3, se não modificamos a forma como as vítimas e testemunhas ainda na fase investigatória começam a relatar os fatos, é ilusão esperar que nossos tribunais condenem apenas culpados e absolvam apenas inocentes. Não há como satisfazer o objetivo de condenar apenas culpados sem que se leve a sério a relação entre processo penal e verdade dos fatos. O processo penal deve ser poroso para absorver a verdade. Ser poroso à verdade é, em outras palavras, estar capacitado para filtrar falsidades.

Esse foi o ponto principal do artigo que estreou nossa participação nesta coluna: “A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica”.

De mais a mais, também é isso o que os autores da epistemologia jurídica querem dizer quando afirmam a verdade como um objetivo institucional do processo4. Do ponto de vista da construção de nossas instituições, importa que as regras para determinação dos fatos sejam desenhadas para captar a verdade dos fatos de modo racional e, com isso, abra-se caminho para a construção de uma decisão judicial que seja justa.

Mas, é claro, a busca pela verdade encontra limites. Afinal, este não é o único objetivo do processo. No processo penal, com mais razão ainda, há que se olhar para outros valores a serem protegidos institucionalmente. A verdade importa, mas não a qualquer custo. Nenhum epistemólogo está disposto a rasgar direitos e garantias em nome da verdade. Logo, uma agenda preocupada com a porosidade à verdade de modo algum endossa abusos cometidos sob a escusa de que “é preciso encontrar a verdade real”5. O fato de que, ao longo da história, direitos foram violados sob o pretexto de se buscar a verdade real não é razão para abdicarmos da verdade. Nem por isso se justifica uma posição cética em relação ao papel da verdade. Uma analogia ilustra bem o argumento: se atrocidades foram cometidas em nome da ciência no passado, isto também não é razão para abdicarmos da ciência ou adotarmos uma posição negacionista.

A concepção racional da prova assumida pela epistemologia jurídica – em contraposição à concepção psicologista, segundo a qual uma hipótese está provada quando o juiz atinge a convicção íntima – funciona precisamente como limite aos detentores do poder. O controle das decisões judiciais e o combate às arbitrariedades que ameaçam as liberdades e os valores democráticos demandam a compreensão de que a busca pela verdade está a serviço do direito de defesa, em toda a sua amplitude. Essa parece ser a constatação a que chegaram muitas das mentes às quais frequentemente recorremos quando o tema é controle do poder punitivo:

“Pretendo sustentar que apenas através de uma concepção racionalista da prova (que rechace a vinculação entre prova e convencimento puramente psicológico do juiz) é possível fazer efetivo o direito à prova em todo o seu alcance e, por conseguinte, também o direito de defesa” (Jordi Ferrer Beltrán)6.

“Um grau de adesão concreta ao princípio da verdade parece, com efeito, um índice eficaz do grau de democracia efetivamente existente em um regime político. Se, nessa perspectiva, pensar-se na multiplicidade de casos, na Itália, em anos recentes, os fatos relevantes foram escondidos e manipulados (e, portanto, a verdade foi escondida), vêm à tona sérias dúvidas acerca da natureza democrática do sistema político italiano. De resto, se quem detém o poder pretende impor a todos ‘verdades’ estabelecidas a priori, de modo dogmático e autoritário, o que se verifica é exatamente o contrário da democracia: não é certamente a verdade que é antidemocrática, mas sim a pretensão de impor a todos a ‘verdade’ de alguém. É essa pretensa ‘verdade’, que via de regra não é verdadeira de fato, que tem uma efetiva ‘força antidemocrática’” (Michelle Taruffo)7.

“Este livro surge como uma declaração de amor à liberdade e à verdade. Parte, portanto, da crença de que o Sistema de Justiça ainda pode funcionar como um instrumento de contenção do arbítrio e da opressão. […] A verdade é não só uma condição inegociável à justiça da decisão como também um limite ao arbítrio estatal” (Juarez Tavares, Rubens Casara)8.

“A oposição até agora conhecida entre garantismo e autoritarismo no direito penal corresponde, pois, a uma alternativa entre duas epistemologias judiciais distintas: entre cognoscitivismo e decisionismo, entre comprovação e avaliação, entre prova e inquisição, entre razão e vontade, entre verdade e potestade. Se uma justiça penal completamente ‘com verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal completamente sem verdade equivale a um sistema de arbitrariedade” (Luigi Ferrajoli)9.

“Faz-se ostensiva a necessidade de que o processo penal, enquanto instrumento complexo, que implica exercício de ‘poder’ que se concretiza em um tipo de atividade orientada a um ‘saber’ acerca de determinados acontecimentos da experiência, resulte simultaneamente funcional a dois valores: liberdade e verdade”. (Perfecto Andrés Ibáñez)10.

“O ponto de partida é garantista. A existência de uma liga entre verdade, prova e processo penal configura condição de possibilidade de um processo penal conformado aos mandamentos do Estado de Direito e, nestes termos, a presunção de inocência constitui o princípio reitor do processo penal” (Geraldo Prado)11.

Não se deve vislumbrar contradição entre as garantias do acusado e a ideia de que o processo deva estar interessado na busca da verdade; tampouco que reconhecer isto implique um anseio de flexibilização e relativização das regras do devido processo. A epistemologia jurídica de nenhuma forma é conivente com a ideia de que os fins possam justificar os meios no âmbito do processo. Ao contrário, coaduna-se com um modelo de processo penal democrático no qual somente os meios legitimam os fins12.

A verdade dos fatos funciona como ancoragem à decisão judicial; é limite ao arbítrio; antídoto contra a enfermidade do convencimento íntimo. Isso explica a proximidade entre epistemologia jurídica e garantismo penal, não sendo simples coincidência o fato de que um dos grandes responsáveis pela tradução dos escritos de Luigi Ferrajoli ao espanhol tenha sido Perfecto Andrés Ibáñez, hoje professor do Master de Razonamiento Probatorio da Universitat de Girona. É antes a cercania de agendas de ambas o que justifica tantas citações de epistemólogos a garantistas, de garantistas a epistemólogos.

Definitivamente, a ideia de que existe uma verdade a ser descoberta não significa acreditar, de maneira ingênua, nas capacidades humanas. A pressuposição de que alegações fáticas possuem valor de verdade é perfeitamente compatível com o reconhecimento de que erramos e que, portanto, precisamos ser controlados. A consciência da dificuldade de se alcançar o conhecimento objetivo por meio das hodiernas técnicas e instrumentos de investigação disponíveis não deve levar à abdicação do intuito de buscá-lo. Neste sentido, a tradição da investigação científica muito diz a esse respeito: muitas verdades científicas estabelecidas foram contestadas a partir de novas experiências. Essa constatação de modo algum foi capaz de afastar matemáticos, físicos, químicos, biólogos e historiadores do inalcançável fim de se aproximar da verdade por meio dos instrumentos e técnicas disponíveis, sendo os mesmos constantemente aperfeiçoados. Há boas razões para que no direito, e em particular, no processo penal também seja assim. Antônio Cláudio, Heberson Lima de Oliveira, Atercino Ferreira, no Brasil13, e os mais de 370 casos de revisões criminais já conseguidas pelo braço norteamericano do Innocence Project14 são as boas razões para defender a verdade no processo penal.


1 O caso de Antônio Cláudio pode ser acessado por: https://www.innocencebrasil.org/casos

2 Esses e mais detalhes do caso de Antônio Cláudio podem ser encontrados no ep. 19 do Improvável podcast, no qual Janaina Matida recebeu Flávia Rahal, co-fundadora do Innocence Project Brasil. Acesso por: https://open.spotify.com/episode/1jbAu9yUvjwosGdXWabwzo?si=EX0DktXfRS–7Pc_RJW7Aw

3 “As disposições previstas [no art. 226] são meras recomendações, cuja inobservância não causa, por si só, a nulidade do ato”. (STJ, HC 427051, 2017/0311185-5, Min Felix Fisher, 2018). Este entendimento sedimentado em nossos tribunais é dissonante dos avanços alcançados a partir dos estudos da psicologia cognitiva. Uma crítica às decisões condenatórias com base neste argumento pode ser vista em MATIDA, J. “Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção”. In Arquivos da Resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP, Florianópolis: Tirant lo blanch, 2019.

4 FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 29; TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, p 140.

5 Uma análise cuidadosa dos abusos cometidos sob a escusa de que é preciso encontrar a verdade real pode ser encontrada em GLOECKNER, Ricardo Jaconsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. 1ed. Florianópolis: Tirant lo blanch, 2018.

6 op.cit., p. 54, trad. livre.

7 op.cit., p. 120

8 Tavares, Juarez; Casara, Rubens. Prova e Verdade. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 15.

9 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2014, p. 45, trad. livre.10 A

NDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. La función de las garantías en la actividad probatoria, In La restricción de los derechos fundamentales de la persona en el proceso penal. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 1993, p. 219, trad. Livre.

11 PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 31.

12 MALAN, Diogo. Processo Penal do Inimigo. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 59, mar-abr 2006, p. 13.

13 https://www.innocencebrasil.org/casos.

14 https://www.innocenceproject.org/all-cases/.

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj e professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

  • é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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