Opinião

Ainda sobre o inquérito judicial e o sistema acusatório

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5 de junho de 2020, 8h29

É importante retomarmos o debate sobre a possibilidade do inquérito judicial atípico e sua inserção no sistema acusatório. Falemos, de novo, então, do IP n. 4.781, objeto de muitas polêmicas.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal autoriza a realização de investigação, presidida pelo Presidente ou por outro Ministro por ele designado, de infrações penais nas hipóteses de envolvimento de autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, assim como para eventual infração penal cometida na sede do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 43, RISTF.

Vale mencionar que o Regime Interno do Supremo Tribunal Federal tem força de lei, isto é, suas disposições normativas constituem lei no sentido material, daí que há uma autorização legislativa expressa para a existência do Inquérito do STF no ordenamento jurídico. E é vigente e válida, até que esta seja retirada.

A questão é a compatibilização do referido instituto com a adoção constitucional do sistema acusatório. Para tanto, é importante lembrarmos que, regra geral, o Ministério Público tem a iniciativa da ação penal, mas o órgão acusatório não tem sua exclusividade, basta ver a existência de ações penais privadas. É o que se vê, também, em torno da investigação preliminar, cuja condução pelo MP foi constitucionalmente autorizada, podendo inclusive ser assumida por outros órgãos, inclusive a própria defesa. Não esqueçamos que o próprio MP investiga seus membros, e o faz por Inquérito (PAD) aberto pelo próprio procurador-geral.

Importante aspecto, então, surge quando há uma eventual alegação de que o próprio órgão investigador poderia ser o órgão julgador. Efetivamente, a condução do Inquérito pelo Ministro Alexandre de Moraes de n. 4.781 deve ser lida de acordo com as garantias constitucionais.

Essa sistemática, contudo, não é desconhecida de nosso sistema processual penal. O Ministro Alexandre de Moraes, caso a denúncia seja promovida no âmbito da competência originária do STF, deveria seguir o princípio acusatório segundo o qual quem toma contato com os elementos de prova no âmbito da investigação preliminar deve dar-se por impedido para julgar, nos termos do art. 277 do RISTF.

É bem verdade que o próprio RISTF prevê hipóteses em que o Tribunal informará eventual delito ao procurador-geral da República, para eventual propositura de denúncia, quando a vítima for o próprio STF, tal como previsto no art. 46, assim redigido:

Art. 46. Sempre que tiver conhecimento de desobediência a ordem emanada do Tribunal ou de seus Ministros, no exercício da função, ou de desacato ao Tribunal ou a seus Ministros, o Presidente comunicará o fato ao órgão competente do Ministério Público, provendo-o dos elementos de que dispuser para a propositura da ação penal.

A questão é interpretar esse artigo à luz de sua sistematização. Em questão, o delito seria de desobediência ou desacato e, regra geral, seria cometido por conduta ou omissão exposta de plano em documentos no exercício da jurisdição, o que prescindiria da existência de investigação preliminar.

Na sequência, o art. 47 do RITSF prevê a hipótese em que o órgão acusatório permanece inerte, ocasião em que a Corte realizará sessão secreta para as “providências necessárias”.

Por providências necessárias deve-se entender que o Supremo Tribunal Federal poderá requerer a responsabilização política do procurador-geral da República, nos termos do art. 52, inc. II da Constituição.

No caso do Inquérito 4.781, como parte no processo penal, cabe ao procurador-geral da República aguardar o término das investigações para, de posse dos elementos informativos, propor a denúncia ou o arquivamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal, conforme o art. 1º, da Lei 8.038/90.

Estaríamos violando a Constituição se defendêssemos que, no caso de eventual arquivamento das investigações por parte do PGR, isso autorizasse uma ação subsidiária da pública, coisa que somente seria possível no caso de inércia do MP. Se ele decidir arquivar, nada haverá a ser feito. Carregará, é claro, o ônus político. Mas não podemos sair da legalidade-constitucionalidade.

De qualquer sorte, é bom lembrar — e isso parece que está sendo esquecido na discussão — que a atribuição da presidência dos inquéritos aos ministros do STF permite, inclusive, que os relatores determinem até mesmo o arquivamento de inquérito em curso, mesmo sem requerimento da Procuradoria-Geral da República. Essa possibilidade decorre de previsão expressa do art. 231, § 4º, do Regimento Interno da Corte (emenda de 2011), que tem, como dito, status de lei. Norma processual, portanto. Válida e vigente. Que nunca teve contrariedade do fiscal da lei, o procurador-geral da República. Assim como os demais dispositivos que sustentam o Inquérito, todos vigentes, até agora, válidos. Logo, a legalidade-constitucionalidade está mantida.

Numa palavra: parece adequado, nessas circunstâncias, buscar exemplos na história. Na Prússia, em meados do século XIX, discutiu-se qual seria a solução para o impasse sobre o orçamento, quando a Câmara Baixa recusou aprovar o projeto de lei apresentado por Bismarck. O Kaiser, quem outorgara a Constituição, teria dito: "A Constituição sou eu! Isso que vocês chamam de Constituição é uma mera folha de papel", despertando a crítica irônica de Lassalle. Pois, a solução jurídica, contudo, veio de Paul Laband: execute-se a lei orçamentária do ano anterior, já vigente, enquanto não for aprovada uma nova lei.

Isto é: a situação que ensejou o Inquérito 4.781 não pode fazer com que nada aconteça a quem praticou Contemp of Court (ataques à Corte). Dodge e Aras nada fizeram (no ano passado, Aras concordou com o Inquérito). Logo, execute-se o orçamento do ano anterior, é dizer, o Direito reclama a sua própria integridade. Existe farta legislação em vigor, como o CPP e RISTF. Usemo-la.

E fiquemos na legalidade.

P.S. Necessário: Aras e os militares!

Tomamos conhecimento que o procurador-geral da República, em entrevista a Pedro Bial, concorda(va) com a tese antirrepublicana e inconstitucional de que o artigo 142 da Constituição atribuiria o papel de “poder moderador” aos militares. Ele disse: “Quando o artigo 142 estabelece que as Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza”.

Horas depois, percebendo o perigoso equívoco que cometeu, desdisse-se. Não teria sido bem interpretado ou não teria sido feliz. De nossa parte, a pergunta que deve ser feita é: O que dizer quando o procurador-geral da República desconsidera a própria Constituição e a Lei Complementar n. 97 — que regulamenta a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas —, em favor de um verdadeiro haraquiri institucional? OK. Ele se retratou. Mas o simbólico disso é, e que ficará gravado nas páginas da histórias é: de que modo um procurador-geral da República chega ao ponto de dizer o que disse? A manchete poderia ser: “O dia em que o procurador-geral da República rasgou a Constituição e depois tentou juntar os cacos”. Nada mais a se dizer.

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo

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