Anuário da Justiça

Volume de pedidos de HC aumenta no STJ e dificulta definição de teses

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29 de fevereiro de 2020, 8h14

STJ
STJ recebeu, em 2019, número recorde de Habeas Corpus

O Superior Tribunal de Justiça encerrou 2019 com o recorde histórico de 69.228 habeas corpus julgados e a preocupação de que a ampliação do seu uso inviabilize o trabalho nas turmas que julgam matéria criminal. Levantamento feito pelo Anuário da Justiça Brasil 2020, que tem lançamento previsto para maio, mostra que nos últimos cinco anos o julgamento de HCs na corte mais que dobrou, apresentando uma variação de 112,7% e dificultando a definição de teses qualificadas pelos ministros.

É fato que não foram só os HCs que aumentaram o volume de trabalho na 3ª Seção e nas 5ª e 6ª Turmas. Nos últimos cinco anos, dentre os principais ramos do Direito julgados pelo STJ, o penal foi o que mais cresceu quanto ao recebimento de recursos: foi de 57.398 em 2013 para 120.326 em 2019, mais que o dobro. Apenas o Direito Civil traz mais casos à corte — ao todo, foram 146.229 no último ano.

As peculiaridades do Habeas Corpus, no entanto, têm elevado as críticas dos ministros e a preocupação com a produtividade. Embora possam ser distribuídos a todos os ministros, sua incidência é majoritária nos colegiados que julgam matéria criminal. Dados do STJ provam a evolução da incidência de HCs na corte. A série histórica da década mostra que o número de feitos distribuídos cresceu 90% desde 2010, enquanto o de decisões subiu 145%.

Fonte: STJ
  Distribuídos Variação Julgados Variação
2019 68.059 +22,7% 69.228 +19,1%
2018 55.450 +16,9% 58.111 +16,1%
2017 47.415 +25,8% 50.048 +21,5%
2016 37.667 +14,2% 41.185 +26,5%
2015 32.972 +21,3% 32.547 +19,9%
2014 27.169 +16,8% 27.131 -12,5%
2013 23.252 -28,2% 31.032 -16,8%
2012 32.427 -10,2% 37.336 +6,5%
2011 36.125 +0,8% 35.057 +24,1%
2010 35.820 28.229

Isso fez com que as 5ª e 6ª Turmas, historicamente as de menor distribuição, tenham tomado a dianteira em relação às demais: desde novembro, são as que mais recebem casos. Em dezembro, cada uma recebeu 22% da distribuição total da corte. Ministros consultados pelo Anuário da Justiça afirmam que, em alguns momentos de 2019, receberam distribuição diária de mais de 40 HCs.

"Na prática, torna-se quase que inviável o trabalho. Você passa o dia só despachando Habeas Corpus", diz o ministro Sebastião Reis Júnior. "Poucas questões são discutidas por recurso especial. O objetivo do Tribunal é esse: usar o recurso especial para uniformizar a jurisprudência. Mas o Habeas Corpus tomou espaço. De 70% a 80% dos processos são Habeas Corpus", complementa.

"O grande número de Habeas Corpus muitas vezes não permite que a Seção forme precedentes qualificados a partir de recurso especial. Como temos mais de 60% de nossos gabinetes formado por HCs, não conseguimos, muitas vezes, discutir teses que geram o precedente vinculativo", lamenta o ministro Joel Ilan Paciornik.

Gustavo Lima
Para ministra Laurita Vaz, aparelhamento das Defensorias levou a aumento de HCs

Causa e consequência
O último ano que a corte terminou com número menor de HCs apreciados em relação ao ano anterior foi 2014. Segundo o ministro Rogério Schietti, houve uma "migração" por parte dos advogados, que deixaram o recurso especial de lado e passaram a interpor Habeas Corpus cada vez mais cedo durante a marcha processual.

A ministra Laurita Vaz credita esse aumento a dois fatores: o aparelhamento das Defensorias Públicas, o que considera positivo, e à resistência de desembargadores e juízes em seguir precedentes das cortes superiores. "Muitas vezes, advogados não encontram outro remédio que não o Habeas Corpus contra decisões de tribunais de apelação que não observam muito as orientações das cortes superiores", concorda o ministro Joel Ilan Paciornik.

"Todos nós temos uma parcela de culpa. O Judiciário, quando não fundamenta idoneamente as decisões; os advogados, quando sobrecarregam impetrando sucessivos HCs discutindo a mesma questão; o Ministério Público, por sua vez, quando manifesta, em algumas situações, uma vontade de recorrer em casos nos quais não há uma perspectiva de um ganho real com recurso", exemplifica o ministro Rogério Schietti.

O maior salto no julgamento de Habeas Corpus pelo STJ aconteceu em 2016: aumento de 26,6%. Em fevereiro daquele ano, o STF mudou a jurisprudência para permitir a execução da pena após condenação em segundo grau, considerando que não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência. Mesmo sem força vinculante, o precedente foi adotado em todo o país e depois confirmado pelo Supremo em outubro, desta vez sob a ótica do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP). No ano seguinte, a distribuição de HCs no STJ cresceu 25,8%.

Esse cenário, revertido em novembro de 2019, fez com que advogados e partes não pudessem mais esperar o trânsito em julgado das decisões para apresentar o HC, já que havia possibilidade de prisão iminente de seus clientes. Esse fator é apontado por ministros como uma das principais causas do incremento de HCs na corte. Com a mudança da jurisprudência no STF, a expectativa é de diminuição da incidência de HCs. Além disso, os ministros estudam saídas para racionalizar seu uso processual.

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Ministro Joel Ilan Paciornik crê que excesso de HCs prejudique formação de teses

Soluções 
Uma das soluções possíveis já está em andamento no STJ: a 3ª Seção discute os limites do HC quando ele é interposto ao mesmo tempo em que tramita uma apelação. A proposta é analisar se, nessas hipóteses, pedidos que não tenham a ver com a liberdade de locomoção do réu devem ser conhecidos. Ministros defendem que a discussão sobre o tema seja ampliada.

"O Habeas Corpus está tomando uma abrangência que a gente não pode deixar de considerar. É um instrumento democrático, mas deveria, talvez, ter uma limitação de incidência exatamente para que a gente pudesse se dedicar com mais atenção a esse remédio jurídico que é tão importante. O receio é que ele venha a ser banalizado e isso prejudique o instituto", afirma o ministro Antonio Saldanha Palheiro.

O ministro Joel Ilan Paciornik cogita a instituição de mecanismos dentro do processo penal que se mostrem mais efetivos para determinadas hipóteses hoje tratadas via Habeas Corpus. "Se tivéssemos algo semelhante, digamos, ao agravo no processo civil — é um feito praticamente dentro do mesmo processo e decidido de forma mais rápida, sem que se tenha que distribuir outro processo", explica.

Em 2019, 24% dos Habeas Corpus recebidos pelo STJ não foram conhecidos, 50,2% foram negados e 1,6% se encaixaram na categoria "outros". Mas 24,3% tiveram pedidos concedidos, o que indica que quase uma em cada quatro vezes que o Judiciário é chamado a analisar alguma irregularidade ou ilegalidade, ela é procedente.

"Vejo necessidade de mudar a mentalidade das pessoas, ou seja: usar mais as cautelares. Tem que reestruturar o Judiciário, porque várias questões que são discutidas por meio de Habeas Corpus são falhas do Judiciário", aponta o ministro Sebastião Reis Júnior.

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