Por que Bruce Ackerman quer uma nova Constituição para o Brasil?
22 de agosto de 2020, 8h00
Em sua obra Social Justice in the Liberal State, Bruce Ackerman, Professor da Universidade de Yale, sugere imaginarmos como viajantes espaciais, ao chegar em outro planeta, estruturariam, através do diálogo, uma nova sociedade, que obedecesse a critérios racionais de Justiça1. Por meio dessa estratégia, o autor busca estabelecer um debate hipotético entre pessoas que, ao mesmo tempo em que possuem conhecimento das mazelas da sociedade contemporânea, estão distantes o bastante para reestruturá-la de maneira neutra e desinteressada, já que não há status quo a ser mantido.
Recentemente, Ackerman fez um exercício semelhante com relação à Constituição Federal de 1988: como um dos mais importantes constitucionalistas do mundo e profundo conhecedor da história brasileira, procurou analisar, a partir da perspectiva desinteressada de um estrangeiro, o que esperar de nossa Constituição no futuro. Sua conclusão é avassaladora: à presença dos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, no dia 26 de junho de 2020, em painel promovido pelo IDP, dentro do projeto “Direito em Tempos de Covid-19”, Ackerman concluiu que o Brasil precisa de uma nova Constituição2. Seu pensamento foi posteriormente publicado em português no Correio Braziliense3 e em inglês no prestigiado blog de direito constitucional comparado I-CONnect4, desencadeando uma série de reflexões e respostas por parte de acadêmicos5 e políticos6.
Este artigo não tem a pretensão de entrar no debate iniciado por Ackerman e que já conta com várias manifestações de renomados autores. O escopo é mais singelo: ajudar a desvendar por que Ackerman, dentro de seu arcabouço teórico, entende que o país necessita de uma nova Constituição. Para tanto, faremos, no próximo tópico, um resumo do argumento dele para o Brasil. Em seguida, buscaremos inseri-lo dentro do contexto mais amplo de sua teoria constitucional. Ao final, faremos algumas considerações sobre o tema.
II.
De acordo com Ackerman, o Brasil enfrenta diversas crises graves e concomitantes: a epidemia do coronavírus e a crise econômica resultante, e as crises políticas causadas pela corrupção. Mas esses problemas são distinguidos do que ele chama de problema de longo prazo – a desilusão da população com a Constituição. Tal desilusão significaria que, independentemente de filiação política, os cidadãos brasileiros enxergariam o atual sistema político-constitucional como incapaz de fornecer uma estrutura aceitável para o funcionamento da democracia.
Em linha condizente com seu pensamento político-constitucional, Ackerman sugere que é preciso analisar o processo de criação da Constituição de 1988 para compreender a crise que ela atravessa hoje. Ao embarcar em uma narrativa do processo constituinte de 1987-1988, o Professor destaca dois aspectos do documento resultante: institucionalmente, a manutenção de um presidencialismo com poderes intactos, e portanto continuamente forte, em razão da pressão política exercida à época pelo então Presidente José Sarney, com o apoio dos militares; e politicamente, a manutenção dessa divisão de poderes por apenas cinco anos, até o plebiscito de 1993, no qual o presidencialismo poderia ser substituído pelo parlamentarismo, que era a opção preferida dos políticos mais progressistas à época da Constituinte, como Fernando Henrique Cardoso.
A narrativa de adoção do presidencialismo construída por Ackerman engloba ainda o impeachment de Collor, e seu papel na posterior derrota do parlamentarismo no plebiscito de 1993, bem como os governos bem-sucedidos de Fernando Henrique Cardoso e Lula, que teriam reforçado a sabedoria da manutenção do presidencialismo como forma de governo no Brasil. Até mesmo a eleição de Dilma Rousseff como a primeira mulher Presidente da República – um marco importante de representatividade que muitos países ainda não atingiram – teria servido ao propósito de fortalecer o sucesso do modelo presidencialista brasileiro.
No entanto, Ackerman conclui que a eleição de Dilma foi o prólogo das crises políticas que se seguiram e resultaram em uma profunda crise econômica, um novo impeachment, e eventualmente na eleição de um outsider político para o cargo de presidente. A profundidade dessas crises é, na percepção dele, irreversível: incapaz de resgatar o país da alienação e desilusão política, diz ele, a Constituição de 1988 deve ser substituída em 2023, por meio do uma Assembleia Constituinte composta por cidadãos sem mandato político. A esperança é que o parlamentarismo seja, por fim, adotado no Brasil, evitando-se, assim, que governantes extremistas, com apoio de apenas 20/25% da população, consigam assumir o posto de Chefe do Poder Executivo federal.
III.
Para compreender a crítica de Ackerman, é importante destacar o contexto em que sua teoria foi desenvolvida. No início da década de 80, os principais autores estavam preocupados em estudar o direito constitucional a partir da perspectiva do magistrado que decide casos difíceis7. Dito de outra forma, a principal questão a ser respondida pela academia estadunidense era como a Constituição deveria ser corretamente interpretada, tendo em vista o período de intenso ativismo judicial das décadas de 50, 60 e 70. É nesse ambiente acadêmico que o direito constitucional se aproxima da filosofia e da hermenêutica, transformando a questão de legitimidade democrática em uma questão de correção da interpretação judicial.
Bruce Ackerman trilha um caminho completamente diferente, buscando relacionar o direito constitucional à política norte-americana e aos estudos de ciência política, o que torna a sua perspectiva única. Para ele, a legitimidade do regime constitucional baseia-se na noção de soberania popular, consubstanciada no exercício político decisório pelo próprio povo. Assim, estabelece um regime dualista, em que o exercício do poder político pode ser dividido em política ordinária, na qual os políticos profissionais tomam as decisões cotidianas em representação ao povo; e a política extraordinária, momentos políticos únicos de grande comoção nacional, em que povo toma as rédeas de seu destino e faz escolhas políticas fundamentais. Esses momentos únicos de política extraordinária são o que Ackerman vai denominar de momentos constitucionais.
Em seus primeiros escritos de teoria constitucional, Ackerman destaca que os Estados Unidos teriam passado por três momentos constitucionais8. O primeiro, seria a Fundação, na qual a Constituição de 1787 foi editada e ratificada, estabelecendo um novo regime político, único e inovador, para as ex-colônias britânicas que haviam se emancipado. O segundo, seria o período de Reconstrução, no qual emendas constitucionais foram aprovadas após a Guerra de Secessão da década de 1860, instituindo-se o fim da escravidão. Já o terceiro momento seria o New Deal, momento em que houve uma releitura dos compromissos constitucionais estabelecidos por parte do povo e das autoridades, o que desencadeou uma mudança de orientação da Suprema Corte sem que tenha havido mudança do texto constitucional. Todos esses momentos constitucionais seriam marcados por forte engajamento político da sociedade, a liderança de um político carismático (Washington, Lincoln e Roosevelt, respectivamente) e o apoio de um partido político relevante (federalista, republicano e democrata, respectivamente)9.
A partir de tal reflexão, Ackerman retira o protagonismo dos juízes dá ao povo a missão de estabelecer e atualizar o conteúdo dos compromissos constitucionais estabelecidos. Às cortes caberia apenas monitorar se, durante o período de política ordinária, os políticos profissionais estariam respeitando as decisões fundamentais do povo, mas não desencadear uma mudança constitucional em nome dele. É por isso que a crença do povo na Constituição é tão importante para o pensamento ackermaniano. Constituição é sinônimo de soberania. Se o sistema político passa a tomar decisões fundamentais que não encontram esteio no próprio povo, estaríamos diante de um quadro de ilegitimidade constitucional e democrática.
Recentemente, em obra destinada ao estudo do direito constitucional comparado, Ackerman destaca que quanto mais forte for o vínculo do povo com os fatos que desencadeiam o momento de fundação, maior tende a ser a legitimidade da Constituição, e mais fácil é manter essa legitimidade ao longo do tempo. Assim, Constituições que são promulgadas após movimentos de cunho revolucionário costumam ter menos problemas de legitimação do que aquelas que são editadas (i) a partir de concessões feitas pelos políticos a movimentos populares insurgentes ou (ii) por meio de acordos entre as lideranças das elites políticas, sem a participação popular10.
No prefácio à edição brasileira de seu livro “Nós, o Povo Soberano”, lançado em 2006, Ackerman chega a conceder que “a Constituição brasileira atual é o produto de um ato de soberania popular”, mas, já naquela época, colocava em dúvida a sua capacidade de sustentar uma cultura constitucional legítima:
Por diversas razões, eu tenho particularmente algumas dúvidas. A primeira é por pura falta de sorte: nunca saberemos se Tancredo Neves teria atuado da mesma maneira que Nehru ou Mandela, ou mesmo De Gaulle. Sua morte prematura culminou na falta de um líder que substituísse o seu carisma. Em vez disso, o povo brasileiro teve um Presidente que estava mais interessado na duração do seu mandato do que na legitimação do processo constitucional. (…)
Além disso, em decorrência da substituição de Tancredo Neves por José Sarney, em um momento constitucional crucial, houve um problema estrutural no processo brasileiro. Diferentemente da Constituição da Quinta República Francesa, por exemplo, a Constituição não foi colocada à disposição do povo para a sua aprovação por meio de referendo. Esse fato não somente privou a Lei Maior de preciosa legitimidade como também estimulou interesses específicos para o lobby agressivo, visando à proteção constitucional, sem o temor da rejeição popular no processo eleitoral.
Receio que a combinação da figura de Sarney com os interesses específicos tenha privado a Constituição do caráter simbólico especial, observado em outros cenários políticos mais triunfais e bem-sucedidos11.
Vê-se, assim, que as preocupações de Ackerman eram antigas quanto à legitimidade do regime constitucional brasileiro. O fato de que o Brasil não figurou entre os países analisados no primeiro volume da sua nova coleção – dedicado às transições constitucionais impulsionadas por revoluções populares12 – reforça a evidência de que os anos, e as crises políticas, convenceram Ackerman de que a transição brasileira carece dos marcadores necessários para configurar uma revolução popular legítima.
Os fatos políticos ocorridos a partir das manifestações de 2013 reforçaram a sua visão de que um novo recomeço, com maior engajamento popular, seria necessário para lidar com a desilusão na relação do povo com a Constituição. Acrescenta isso ao fato de que o sistema presidencialista possibilita a ascensão ao poder de políticos extremistas, que conseguem ganhar eleições polarizadas, mas não angariam a simpatia da maior parte da população, nem possuem apoio político majoritário, o que parece ser germe de grande parte das crises vivenciadas pelo Brasil nos últimos anos (impeachment, mensalão, petrolão, etc)13.
IV.
A sugestão de uma nova Constituinte para o Brasil não é nova. Relembre-se que, no auge das manifestações da 2013, a então Presidente Dilma Rousseff propôs a convocação de um plebiscito que autorizasse uma Constituinte exclusiva para fazer a reforma política14. Ocorre que, na perspectiva de Ackerman, um de ato de tamanha envergadura demandaria alto grau de engajamento do povo com o processo. Os brasileiros estão dispostos a se engajar nesse momento?
Ainda que resposta seja positiva, não precisaríamos necessariamente de uma nova Constituição. Mudanças de paradigma constitucional podem ocorrer sem a substituição do texto, como o próprio Ackerman nos ensinou com o New Deal e, mais recentemente com o Civil Rights Revolution. Se realmente a saída para atual crise for a mudança da forma de governo, os ensinamentos de Ackerman sobre as adaptações parciais criativas que revolucionaram o constitucionalismo americano no século XX podem ser mais valiosos do que a sua solução de convocação de uma Assembleia Constituinte para recomeçar a nossa história do zero.
1 ACKERMAN, Social Justice in the Liberal State, 1980.
2 https://www.youtube.com/watch?v=tKgqjgKBao0&t=2853s
3 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/07/13/internas_opiniao,871622/o-brasil-precisa-de-nova-constituicao.shtml
4 http://www.iconnectblog.com/2020/07/brazils-constitutional-dilemma-in-comparative-perspective-do-chile-and-spain-cast-light-on-the-bolsonaro-crisis/
5 Cf., a título ilustrativo, os seguintes artigos: http://www.iconnectblog.com/2020/07/why-replacing-the-brazilian-constitution-is-not-a-good-idea-a-response-to-professor-bruce-ackerman/, dos Professores Thomas Bustamante, Emilio Neder Meyer, Marcelo Cattoni, Jane Pereira, Juliano Zaiden e Cristiano Paixão; e https://verfassungsblog.de/no-need-for-a-new-constitution-in-brazil/, dos Professores Wallace Corbo e João Gabriel Madeira Pontes.
6 Cf, o webinário com Fernando Henrique Cardoso, Gilmar Mendes, Nelson Jobim e Bruno Araújo. Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=1G8wpjaXQzw.
7 ELY, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, 1981; DWORKIN, Taking Rights Seriously, 1977; SCALIA, Originalism: The Lesser Evil, 1988-1989.
8 Ackerman depois passou a identificar mais de três momentos constitucionais, incluindo no rol a Civil Rights Revolution. Cf. The Living Constitution, 2007.
9 Ver ACKERMAN, We the People, volume 1: Foundations, 1993; e We the People, volume 2: Transformations, 1998.
10 ACKERMAN, Revolutionary Constitutions: Charismatic Leadership and the Rule of Law, 2019, p. 7-21.
11 ACKERMAN, Nós o Povo Soberano: Fundamentos do Direito Constitucional, 2006, p. xl-xli.
12 Ackerman revela na introdução de Revolutionary Constitutions que o livro integra uma coleção com pelo menos dois volumes. O primeiro foi dedicado a países que, na concepção do autor, passaram por transições revolucionárias. O Segundo volume se debruçará sobre países que experimentaram transições negociadas (Revolutionary Constitutions, p. 7-21). Ackerman já afirmou que o Brasil será um dos países analisados na coleção.
13 Esse tema é amplamente explorado pelo autor em ACKERMAN, A Nova Separação dos Poderes, 2009.
14 Cf. https://www.conjur.com.br/2013-jun-24/dilma-rousseff-propoe-constituinte-exclusiva-reforma-politica
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!