Opinião

Na antessala do autoritarismo, militares recebem os membros das cortes

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27 de outubro de 2018, 7h09

O mundo nos enxerga bestializado. Jornais das mais variadas posições editoriais parecem não se cansar de simular o velho “não diga que não avisei” à beira do final do processo eleitoral que decidirá o próximo presidente da República.[1] O motivo? Mais do que uma ameaça singular, o que enfrentamos parece fazer parte do mesmo refluxo da terceira onda democrática imaginada por Samuel Huntington.[2]

Este “fazer parte” encontra, claro, variantes contextuais muito importantes. Enquanto Trump tripudia de instituições judiciais nos Estados Unidos ao tempo em que abandona o Conselho de Direitos Humanos da ONU, Orban, na Hungria, força o “exílio” da Central European University para a Áustria e é repreendido pelo Parlamento Europeu pelas constantes agressões ao Estado de Direito. Erdogan, na Turquia, reage a uma tentativa de golpe clássica[3] expandindo as competências do Poder Executivo via emenda constitucional e promovendo uma limpeza no serviço público, com cerca de 178 mil acusados sendo exonerados. Duterte leva adiante uma guerra às drogas nas Filipinas com execuções extra-legais que alcançam a assustadora cifra de 4.500 mortos. A Corte Europeia de Justiça viu-se obrigada a reconhecer a ilegitimidade da “Lei da Suprema Corte” polonesa, um fruto do predomínio do PiS (o partido Prawo i Sprawiedliwość, ou partido do Direito e da Justiça, nome “bastante apropriado”) que objetivou aposentar diversos juízes daquele tribunal contrários às políticas da agremiação.

Não se pode dizer que esses casos sejam isolados. Não traduzem uma conspiração em nível internacional, obviamente, mas refletem um movimento de aceitação do autoritarismo digno de nota. E o que se pode chamar de autoritarismo? Jonathan Haidt e Karen Stenner classificam os tipos de conservadorismo em três linhas: conservadorismo laissez faire, conservadorismo status quo e autoritarismo.[4]

Não há maiores problemas com os dois tipos primeiros de conservadorismo: a questão é que o autoritarismo exige a imposição via uma autoridade específica (oneness) a terceiros de valores que devam obrigatoriamente ser compartilhados (sameness). O autoritarismo é o contrário de temas muito caros à democracia: pluralismo e diversidade.

Stenner e Haidt também verificaram o crescimento do autoritarismo por meio de uma pesquisa empírica feita através da plataforma Europulse em três situações de recentes decisões autoritárias: nos Estados Unidos, com a eleição de Trump; no Reino Unido, com o Brexit; e, na França, com a ascensão de Le Pen. Antes, porém, foi possível atestar a presença de autoritários em vinte e nove países europeus mais os Estados Unidos. Essa presença remeteria a cerca de 30% dos entrevistados. Tal número corresponderia à chamada latência autoritária, algo de difícil dissipação. O problema aparece quando tal latência aflora em momentos de ameaça normativa: perda de legitimidade dos representados, descrença nas instituições, entre outros fatores. De latência passamos a uma prevalência. Quando, assim, candidatos manifestam-se dizendo que irão mandar à prisão ou ao exílio opositores de esquerda, essas falas podem encontrar nos latentes autoritários aquilo que eles gostariam de ouvir.

É claro que a sociedade brasileira, de forte base escravocrata e por ela contaminada, oferece um berço importante para a transformação do latente em dominante. E aí, quando um soldado ou um cabo parecem poder fechar o Supremo Tribunal Federal, nós temos sempre quem possa dizer: “Ele diz isto da boca para fora”[5] ou “é isto mesmo que deve acontecer”.

Claro que os autoritários não serão uma massa homogênea. Muitas pessoas que acham que “tem que mudar isso daí”, têm razões econômicas, sociais ou mesmo patrimoniais para não querer enxergar o problema no solapamento total das instituições. É aí que entra em cena um tipo de responsabilidade jurídica que é derivado da consolidação das instituições que nós mesmos criamos e devemos manter.

Vivemos sob a mais longeva ditadura da América Latina: 1964 a 1985. Nesse período, duas elites exerceram diferentes papéis e com graus diversos de destaque, quais sejam, os militares (por óbvio) e os juízes (não tão obviamente). Mais do que diferenciar o protagonismo de cada uma, talvez seja interessante refletir sobre suas relações. E aí, nada mais importante do que uma conformação jurídica.

Diferentemente do Chile e da Argentina, que precisaram apelar mais fortemente para métodos extralegais de eliminação da oposição política, o Poder Judiciário brasileiro canalizou boa parte da repressão em processos perante a Justiça Militar.[6] Isto não tornou nossa ditadura uma “ditabranda”:[7] pelo contrário, permitiu maior consolidação à base de uma legitimação forçada e uma maior duração. Nossa elite jurídica tomou parte nesse papel “envernizador”.

Com o advento da Constituição de 1988, pouco se avançou em uma mudança efetiva do Poder Judiciário.[8] Reformas aconteceram tanto naquele momento como posteriormente, como a advinda da Emenda Constitucional 45/2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça. Mas daí a dizer que houve mudanças de mentalidade, capacidade e organização que pudessem dar vazão ao importante sistema de direitos humanos instituído pode soar exagerado.

O importante, contudo, é que críticas aos tribunais foram feitas respeitando-se a preservação da institucionalidade, principalmente quando elas partiram de uma academia muito mais preocupada com o papel do Supremo Tribunal Federal.[9] Limitações no campo da reforma institucional também permitiram que não houvesse uma adequada relação entre poder civil e militares no pós-1988: nem mesmo a criação do Ministério da Defesa deu espaço para uma maior subserviência das Forças Armadas que, agora, voltam com toda a força à política.[10]

Na aproximação dessas elites, não podemos nos esquecer da chancela do STF à inconstitucional proclamada auto-anistia instituída em 1979 e que, até hoje, impede a responsabilização criminal de agentes da ditadura, assim como da nomeação de um general para um cargo de assessoria do Presidente da mais alta corte que não cora em chamar o golpe de 1964 de movimento.[11]

Essa soma de ingredientes tem toda a característica de resultar em uma efetiva consolidação do autoritarismo. E então, quando Tribunais Regionais Eleitorais determinam a retirada de bandeiras proclamando que as universidades são contra o fascismo e pela democracia, duas questões merecem ser levadas em conta.

Em primeiro lugar, tais decisões judiciais estão escancarando a preferência de um dos candidatos por aquilo que as universidades estão criticando. Em segundo lugar, elas trazem consigo a tradução do casamento entre instituições e sociedade naquilo que pode ser a melhor tradução do fascismo: a promessa cumprida da violência contra o dissenso político.

A antessala, já ocupada por diversos militares em cargos políticos no governo Temer, recebe os ilustres convidados das cortes. Seja qual for o resultado do pleito eleitoral presidencial, essa semente está plantada. O que é fundamental é que as mesmas instituições e direitos criados 30 anos atrás vão precisar ser usados para barrar o avanço, seja da face autoritária, seja da face fascista do fenômeno político brasileiro atual. Ainda há tempo, contudo, de se rechaçar a desavergonhada opção pela perda total, seja das instituições, seja dos direitos.


[1] Por exemplo, NY Times, Washington Post, The Economist, e Financial Times.

[2] HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.

[3] Para variáveis do antigo “golpe com tanques nas ruas”, cf. BERMEO, Nancy. “On Democratic Backsliding.” Journal of Democracy 27, n. 1, 2016, p. 5-19.

[4] STENNER, Karen. HAIDT, Jonathan. “Authoritarianism is not a momentanean madness, but an eternal dynamic within liberal democracies”. In: SUNSTEIN, Cass (org.). Can it happen here? Authoritarianism in America. New York: HaperCollins Publishing, 2018, p. 182.

[5] Nada mais revelador disto do que a entrevista da atriz Regina Duarte ao jornal O Estado de S. Paulo. Aqui não se trata mais de somente normalizar falas autoritárias. Cuida-se de reconhecer no candidato aquilo que de mais odioso temos entre nós – racismo, homofobia, xenofobia e misoginia sem que isto pareça um problema.

[6] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

[7] Esse foi termo utilizado pelo jornal Folha de S. Paulo (hoje agredido pela reportagem a respeito de um suposto financiamento empresarial não declarado para disparos industriais de Whatsapp em favor do candidato Jair Bolsonaro) para se referir ao nosso período autoritário

[8] Para os problemas e limitações das mudanças feitas em 1988 e o papel de um Poder Judiciário de perfil autoritário na crise atual, cf. MEYER, Emílio Peluso Neder. “Judges and Courts in Unstable Constitutionalism Regimes: The Brazilian Judiciary Branch’s Political and Authoritarian Character”. German Law Journal, v. 19, n. 4, 2018, p. 727-768.

[9] Não considero equivalentes, portanto, os pronunciamentos do Deputado Federal Wadih Damous e do Deputado Eduardo Bolsonaro. Apesar da crítica de Damous poder ter usado mal as palavras, as propostas de criação de uma corte constitucional e de fixação da mandatos para os respectivos Ministros (seja no STF, ou em uma eventual corte constitucional) remontam, pelo menos, à Constituição de 1988. Bem diferente é dizer que para fechar o STF, bastam um cabo e um soldado, especialmente no contexto de uma campanha que enaltece a ditadura de 1964-1985 e o autoritarismo.

[10] MEYER, Emilio. “Militarization of Politics in Brazil” (April 5, 2018). SSRN: https://ssrn.com/abstract=3157090 (acesso 26 out. 2018).

[11] Para uma crítica à manifestação, cf. CARVALHO NETTO, Menelick de. CATTONI, Marcelo. PAIXÃO, Cristiano. “Levando as palavras a sério: um golpe é um golpe”. Jota, https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/levando-as-palavras-a-serio-um-golpe-e-um-golpe-02102018 (acesso 26 out. 2018).

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