Limite Penal

Quando o defensor (público) joga para ganhar, por certo desagrada o poder

Autores

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

15 de junho de 2018, 8h05

Spacca
O evento promovido pela Fifa, aliado ao amor do brasileiro pela seleção canarinho, permite que a teoria dos jogos seja mais uma vez trazida ao debate para a compreensão do processo penal. A referida teoria comporta a distinção entre os amadores e os profissionais[1]. O êxito daqueles que compõem o primeiro grupo é considerado como fruto do acaso, é a zebra que surge.

Spacca
Por outro lado, o sucesso, a vitória processual da outra classe de jogadores é decorrente de uma análise dinâmica do panorama, isto é, táticas são estabelecidas, analisadas e mesmo alteradas e tudo isso para que seja alcançado o fim inicialmente pretendido através da estratégia traçada. O pressuposto é que o julgador ocupe um lugar de terceiro e aceite, eventualmente, as críticas, porque do contrário, não entendeu a dimensão pública de sua função democrática.

A precariedade das Defensorias Públicas é fato notório e não pode ser desassociada de uma concepção que não leva a sério o direito fundamental à ampla defesa – afinal, o senso comum não vinculou os direitos humanos a uma categoria reprovável, responsável pela impunidade e voltada unicamente para a salvaguarda daqueles que não podem ser considerados como homens de bem? Diante desse cenário, muitas vezes as pilhas processuais impedem que o agir estratégico do jogador defensivo possa ser planejado.

É crucial que se compreenda que ao Estado incumbe o dever de criar e manter um serviço de defensoria pública tão forte e bem estruturado quanto o serviço de acusação pública. Não existe processo penal sem estrutura dialética e, principalmente, paridade de armas. É preciso que se criem condições de fala para a Defensoria Pública tão boas como são as condições de fala da acusação pública e isso permeia, por elementar, a preocupação de dotá-la de estrutura e recursos materiais condizentes e compatíveis com suas necessidades. Do contrário, seguiremos com um puro golpe de cena.

No entanto, mesmo que episódicas, as litigâncias estratégicas promovidas pelas Defensorias Públicas não podem ser ignoradas; ao contrário, devem servir de inspiração para outros jogadores defensivos capazes de atuarem de maneira mais artesanal ante o menor número de processos.

A título ilustrativo, após ser realizada uma pesquisa sobre o tema audiência de custódia, são trazidas algumas atuações promovidas por um jogador defensivo, o defensor público Eduardo Januário Newton, que conseguiram resultados expressivos. Anote-se que são muitos defensores públicos aguerridos espalhados pelo país, valendo sublinhar, como já se fez antes, casos do Amazonas (aqui) e do Espírito Santo (aqui).

Já no dia 25 de janeiro de 2015, ou seja, quando a questão sobre a implementação das audiências de custódia se mostrava embrionária e a resistência era patente de alguns agentes do sistema de Justiça criminal, foi reconhecida a nulidade da prisão que não foi precedida da audiência de custódia – autos do Habeas Corpus 0064910-46.2014.8.19.0000. No âmbito do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, não se pode desprezar o fato de que essa decisão paradigmática marcou e, o mais importante, fortaleceu a peleja pela efetivação de preceitos previstos em Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Esse inventário das atuações defensivas precisa, ainda, focar naquilo que foi levado ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal, uma vez que a ADPF 347 previu a realização da audiência de custódia como direito subjetivo do preso.

No âmbito coletivo, ao menos, duas situações merecem ser analisadas. A primeira: em razão de ato normativo elaborado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos casos em que o aprisionamento em flagrante se dava em razão de violência doméstica, ocorria o afastamento do sistema de audiência de custódia, sendo certo que essa realidade apenas foi superada pelo decidido liminarmente na Reclamação 27.206/RJ, julgada recentemente.

A Reclamação 28.173 trata da segunda questão a ser analisada, vale dizer, o comprovado comportamento reiterado do TJ-RJ em não realizar a audiência de custódia no prazo de 24h, a contar do momento da prisão. Muito embora a matéria se encontre pendente de apreciação pela 2ª Turma, o ministro relator proferiu decisão no sentido de que fosse dada ciência ao Conselho Nacional de Justiça para apreciar “descumprimento sistemático da decisão proferida na ADPF nº 347” no âmbito do Tribunal de Justiça fluminense.

Tal luta pela eficácia da audiência de custódia não pode deixar de lado uma questão fundamental: a necessidade de que tenhamos uma alteração no Código de Processo Penal para contemplá-la na dimensão normativa correta. Não tem suficiência legislativa, por melhores que sejam as intenções, uma Resolução do CNJ. É preciso que a matéria venha disciplinada por lei ordinária, para que seja implantada de forma plena e uniforme em todo o país.

Afora as provocações exitosas – e de caráter individual – que versaram sobre a ausência da audiência de custódia, depara-se com uma nova tática voltada para a efetivação do estado de inocência. Considerando o contido na Súmula Vinculante 11 e, ainda, a localização das centrais de audiência de custódia no estado do Rio de Janeiro – dentro de unidades prisionais – , iniciou-se o questionamento sobre a banalização do uso de algemas e, por via de consequência, do próprio ato decisório que impôs a medida cautelar mais extrema, sendo certo que a Reclamação 29.953 encontra-se pendente de apreciação pelo ministro relator.

Outras situações poderiam ser aqui catalogadas, mas o que aqui veio a ser exposto já se mostra suficiente para ressaltar a relevância que as Defensorias Públicas podem exercer no processo penal democrático. E, se a patrocinadora do evento futebolístico sediado na Rússia adota como slogan “my game is fair play”, nada mais apropriado afirmar que o jogo processual limpo só é possível com a atuação defensiva combativa e profissional. O debate público e aberto na defesa de direitos compõe o ambiente do Processo Penal democrático.

 


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: EMais, 2018.

Autores

  • é advogado, professor titular de Processual Penal da UFPR e coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. É ainda membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009.

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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