Limite Penal

As fantásticas histórias do advogado
leigo e do acusado confundido

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

13 de março de 2015, 8h00

Spacca
Na semana passada lançamos o desafio Inacreditável Judicial Clube e contamos o caso da condenação sem denúncia. Alguns leitores pediram mais detalhes do caso e por isso colocamos o julgado por completo aqui. Não houve denúncia formalizada, mas mera representação para apuração de infração administrativa no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente. Continuamos com a saga, contando dois casos.

Advogado leigo exercendo a defesa?
O exercício da defesa técnica exige um Defensor Público ou Advogado com inscrição na OAB, parecia impossível para nós depois da Constituição da República de 1988. Mas encontramos diversos julgados em que houve a participação de um “defensor leigo”. E não em qualquer crime, mas de plenário do Júri. Pois bem, um homem  foi condenado pelo juízo da comarca de Novo Aripuanã(AM), nos autos do processo 0000228-60.2013.8.04.6200, à pena de 14 anos de reclusão pela prática de homicídio qualificado, em conformidade com o artigo 121, parágrafo 2º, IV, do Código Penal, tendo, como sublinha o acórdão, inclusive, a referida condenação transitado em julgado. Expedido o processo de Execução Penal, permaneceu segregado por mais de 4 anos e 4 meses. Até que a Defensoria Pública no Amazonas, aqui homenageada pelos Defensores Arthur Macedo e Helom Nunes, impetrou ordem de Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Amazonas (4001198-31.2014.8.04.0000). Constou expressamente do voto da relatora, desembargadora Carla Maria Santos dos Reis, após superar a alegação, também inacreditável, do Ministério Público, de que não caberia Habeas Corpus mas Revisão Criminal:

“Conforme relatório inicial, busca-se, por intermédio deste remédio, o reconhecimento da nulidade do processo nº 0000228-60.2013.8.04.6200, desde o oferecimento da resposta à acusação, na medida em que o Paciente, ao final condenado pelo delito tipificado no art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, tivera sua defesa integralmente patrocinada por defensor leigo, isto é, desprovido de habilitação científica para o exercício da advocacia. Nas oportunas manifestações acerca deste tema, esta Câmara Criminal, em observância ao entendimento sumular nº 523 do Supremo Tribunal Federal, fora precisa ao reconhecer o âmbito absoluto de tal nulidade, ao fundamento de que a defesa exercida sob tais parâmetros configura verdadeira ausência desta.  (…) O caráter flagrante da ilegalidade apontada, pois, pacificamente reconhecida na jurisprudência pátria, adquire maior relevo ao considerar tratar-se de demanda da competência do Tribunal do Júri, rito constitucionalmente orientado pela superior garantia da plenitude da defesa (art. 5º, XXXVIII, alínea "a", da Constituição da República)”.

A processo penal foi anulado e o homem colocado em liberdade. Entretanto, nas informações prestadas, a autoridade coatora disse que “desde a resposta à acusação, o paciente tivera sua defesa exercida por defensor sem habilitação científica”, sustentando a legalidade do ato. Aliás, não é novidade a existência de defensor leigo. No estado do Amazonas, inclusive com julgados que reconheceram a validade do ato por ele praticado (clique aqui para ler).

Por convenção se reconhece quem pode ser jogador apto, o qual opera na perspectiva diretos, com possibilidade de atuação direta na partida, ocupando uma função específica (acusador, defensor, acusado, vítima e assistente). Os jogadores possuem funções próprias indicadas pela convenção do jogo e somente eles podem exercê-las. Possuem o poder de disposição dentre as diversas possibilidades de ação, conforme a estratégia. A tática eleita deve ser uma ação dentro da sua competência, com a liberdade daí inerente. Há um complexo de expectativas de comportamento em face das informações que podem ser adquiridas antes e durante o jogo, manifestada pela tática e vinculadas à estratégia (Alexandre Morais da Rosa. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2014). Logo, é absurda a hipótese de que um defensor não seja formado em Direito, regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil ou tenha realizado concurso para Defensoria Pública. A questão é imaginar quantos cumpriram penas por força de defensores leigos, esta figura tropical inventada em franca violação do devido processo legal.

Não podemos fechar os olhos para o fato de que a defesa técnica é indisponível, não podendo dela abrir mão nem mesmo o acusado. Trata-se de uma presunção absoluta de hipossuficiência técnica, aquilo que Foschini[1] chama de ‘exigência de equilíbrio funcional’, uma exigência da sociedade, porque o imputado pode, a seu critério, defender-se pouco ou mesmo não se defender, mas isso não exclui o interesse da coletividade de uma verificação negativa do delito. É uma verdadeira condição de paridade de armas e imprescindível para eficácia do contraditório, sem falar que funciona como um mecanismo de autoproteção do sistema processual penal, estabelecido para que sejam cumpridas as regras do jogo da dialética processual e da igualdade de armas. É, em última análise, um imperativo de ordem pública, contido no princípio do devido processo legal.

O acusado 171 e a prisão que poderia ser sua
Curioso, mas não raro, é o caso narrado pelo defensor público Marcelo Vasconcelos de Souza, de Minas Gerais, remetido pelo também defensor Bheron Rocha. Conta ele que estava realizando uma visita rotineira no presídio de Areado, quando foi abordado por um homem preso há mais de 5 anos por um crime que dizia não ter cometido. O discurso da inocência é reiterado nas penitenciárias, mas o caso chamou a atenção. Preso em flagrante por roubo em 2007, foi preso em flagrante, interrogado, qualificado e lançou sua digital no Auto de Prisão em Flagrante. Ainda segregado, fugiu da prisão. O homem, que não morava em Aerado mas em Pirassununga, foi chamado a responder pelo delito. Além de negar, não combinava com as fotos do agente juntadas aos autos no momento da prisão e, pasmem, sequer foi reconhecido pela vítima. Somente depois de o defensor promover justificação e pedido de revisão criminal é que se conseguiu a liberdade do homem e a anulação do julgamento (clique aqui para ler).

A sentença condenatória somente foi possível porque a maneira com que se condena gente no Brasil ainda é medieval. Muitas vezes os flagrantes são lavrados sem documentos e não se preocupa com a identificação criminal, obrigatória, gerando vários casos de condenação de terceiros. O estado é relapso desde a prisão em flagrante e não é possível entender que alguém com características físicas diversas, não reconhecido pela vítima, possa ser condenado.

A situação beira o caos porque qualquer um de nós pode ter o nome e a qualificação indicados em um flagrante que esteja acontecendo neste exato momento. Basta que o agente saiba seus dados pessoais. A reiteração de condutas como essa demonstram a importância de delegados de polícia cada vez mais cientes de seu papel democrático e, também, de atores processuais que não se satisfaçam com o flagrante. Aliás, a lógica de que o flagrante prende por si só já deveria ter deixado de operar, além do que, é o sintoma de que o sujeito preso em flagrante ainda sofre do pensamento autoritário presente na exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941: “As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna ,necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela penal.”

Esta mentalidade autoritária ainda permeia o mapa mental de boa parte dos metidos em processo penal, como fala Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, implicando em situações kafkianas como a retratada acima. E não se trata de um simples erro do sistema penal. É da lógica moer gente. Todos como Josef K?

Tudo é possível?
Para finalizar, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o colega Luiz Bomfim Filho encaminhou o curioso despacho proferido no Habeas Corpus 0007925-23.2015.8.19.0000: “Digam os Impetrantes qual a fase atual do feito. Estranha-se que em um processo que apura delito dos idos de 2003 e com denúncia há mais de dez anos, ainda esteja sem sentença. Se bem que em se tratando da Comarca de Campos dos Goytacazes tudo é possível. Esclarecido, voltem para exame da liminar.”

Boa sexta.


[1] FOSCHINI, Gaetano. “L’Imputado”. Milão, Dott A. Giuffrè, 1956, p. 26. Apud: LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal”, 12ª edição, Saraiva, São Paulo, 2015.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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