Senso Incomum

O estranho caso que fez o STF sacrificar a presunção da inocência

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11 de agosto de 2016, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Conto isso graças ao presidente Marcos da Costa, da secional da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, que, aliás, publicou artigo sobre o assunto no dia 8 último. Presenteou-me com um pacote. Li no avião. Eram os autos de uma ação penal. Explico: Tudo começou em 29 de março de 2011, em Itapecerica da Serra, quando M.R.D. e A.S.L foram denunciados pelo Ministério Público pela pratica de roubo qualificado. O fato é de 16/9/2010. Andavam em uma motocicleta e assaltaram uma pessoa. Presos preventivamente. No meio do processo, as prisões foram revogadas. Portanto, chegaram ao julgamento livres. Ambos condenados. Sentença de 28/6/2013. M.R.D., 5 anos e 4 meses; A.S.L., 6 anos e 8 meses. O juiz permitiu que M.R.D. apelasse em liberdade. A.S.L. teve sua prisão decretada. Ambos apelaram ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Ministério Público não recorreu. M.R.D., como bem conta o presidente Marcos da Costa, não é do “colarinho branco”. Jovem pobre filho de empregada doméstica da casa de uma advogada que agiu em defesa do rapaz. Só para registro. Ou seja: execução provisória não é para defender colarinho branco; pode até ser; mas os números mostram que a imensa maioria são pessoas como M.R.D.

Em 13/12/2013 os autos foram ao TJ-SP. Um ano e três dias depois, a apelação de ambos foi julgada. E negada. A.S.L., que já estava preso (vejam: com réu preso, a apelação demorou um ano para ser julgada), assim permaneceu. O inusitado está no fato de que, mesmo transitada em julgado a condenação para o MP e havendo apenas o apelo de M.R.D., este teve não só o apelo improvido como teve sua prisão decretada, sem qualquer fundamentação. É como os leitores estão lendo: M.R.D. foi buscar lã e saiu tosquiado. Preso de ofício. Regime fechado. Embora a pena fosse abaixo de 8 anos.

As diligentes advogadas Maria Cláudia de Seixas e Naiara de Seixas Carneiro impetraram, então, já em 19/12/2014, Habeas Corpus ao Superior Tribunal de Justiça, que negou a liminar, alegando jurisprudência defensiva. Autos ao MPF, que, alvíssaras, deu parecer favorável à concessão do HC (loas ao procurador Durval Guimarães).

Contra esse indeferimento da liminar as diligentes advogadas impetraram HC junto ao Supremo Tribunal Federal. O ministro Teori Zavascki, em 5/2/2015, deferiu a liminar, concedendo a ordem. Reconheceu que estava diante de hipótese passível de ultrapassar a Súmula 691. Disse o ministro que a sentença já havia permitido que o paciente M.R.D. recorresse em liberdade. Houve apenas recurso do paciente. O TJ-SP não apresentou, segundo Teori, nenhum fundamento para impor a prisão preventiva do paciente M.R.D, conforme estabelece o artigo 312 e isso está em desacordo com a jurisprudência do STF.

Pronto. Aqui teria acabado o caso. M.R.D. livre para aguardar seus recursos. Afinal, o TJ-SP decretara a prisão sem fundamento e de oficio. Mas, esperemos um pouco. Sabem os leitores que caso é este? É a holding do famoso HC 126.292. Na verdade, esse é o próprio HC 126.292, o da presunção da inocência.

Mas, o leitor perguntará: como assim? De que modo esse caso, com essa peculiaridade, protagonizou o fim da presunção da inocência, fazendo com que o STF alterasse sua jurisprudência? Simples. E complexo. Esse HC foi levado a plenário em fevereiro de 2016 (para discutir a liminar concedida pelo ministro Teori monocraticamente). O resto da história os leitores conhecem. Ou seja: mesmo com a liminar concedida com aquela robusta fundamentação, o ministro Teori voltou atrás e votou com a maioria, formando o placar de 7×4. E M.R.D. voltou para a prisão. O mesmo M.R.D. que recorrera em liberdade e acabou preso “de oficio”, sem pedido do MP, que, aliás, contentou-se com o resultado da decisão de Itapecerica que condenara M.R.D. e A.S.L.. O mesmo M.R.D. a quem o ministro Teori reconhecera que sua prisão tinha sido ilegalmente decretada pelo TJ-SP. O que teria mudado na conduta ou nas circunstâncias vivenciais do paciente M.R.D. para que o mundo lhe caísse na cabeça? Nota: em 2015 M.R.D. teve Recurso Especial provido (2015/0146343-1), monocraticamente, transformando o regime em semiaberto (atenção: o MPF interpôs agravo dessa decisão: queria que M.R.D. ficasse com o regime fechado, mesmo com a pena de 5 anos e 4 meses!). No STF o Recurso Extraordinário (964.246) pende de julgamento.

Sigo, para indagar: O que fez, afinal, o STF? Além de dar um giro de 180 graus na sua jurisprudência, acabou por sufragar uma prisão decretada fora de qualquer legalidade, circunstância reconhecida pelo MPF e pelo próprio ministro Teori. Ou seja: o ministro Teori concede a liminar com o fundamento de que, além de poder superar a Sumula 691, o TJ-SP não havia fundamentado a prisão em segundo grau. Pois agora ele, juntamente com mais seis ministros, revogam a liminar, só que não fundamentam a necessidade do caso concreto.

Ou seja, o que torna estranho tudo isso é que, na hora de decidirem o HC 126.292, M.R.D. “desapareceu” como um personagem concreto. Transformou-se em uma tese. M.R.D. virou um conceito. Seu caso concreto de nada valeu. O que o ministro Teori, monocraticamente, usara para fundamentar a concessão da liminar, desapareceu. Como no filme de João Batista de Andrade, M.R.D. virou suco.

E assim se formam os “precedentes”. E tem doutrinador dizendo que o Código de Processo Civil (CPC) instalou, no Brasil, um “sistema de precedentes”. Pois sim. O que é isto — um sistema? Veja-se. Graças a uma apelação só da defesa, alterou-se uma jurisprudência da mais alta corte do país. E isso atinge todos aqueles que possuem condenação em segundo grau. Depois ensinamos aos alunos que o Direito é uma questão de caso concreto…

Desde então (fevereiro de 2016 com o julgamento do HC 126.292 do paciente M.R.D.) estamos com a presunção da inocência suspensa. Liberada, desde então, está a execução provisória. Há poucos dias o ministro Fachin derrubou uma liminar concedida pelo presidente do STF e mandou recolher ao ergástulo um prefeito de uma cidade. Qual a argumentação? Que aquilo que diz no CPP (artigo 283) se esfumaça diante do novo CPC. O restante já discuti em coluna criticando outra decisão, do mesmo tom, do ministro Fachin.

Era isso. Nada mais há para dizer. Todos falamos do HC 126.292 e esquecemos — porque não sabíamos — das circunstâncias em que esse caso se deu. Era de se esperar que o STF fosse alterar sua jurisprudência com um caso importante, candente, polêmico. Lamentavelmente foi um caso em que o réu já estava em liberdade e acabou preso sem fundamentação pelo TJ-SP, de oficio. Foi esse caso — que não tem nada a ver com colarinho branco — que serviu para mudar a jurisprudência sobre algo tão importante quanto a liberdade. Também desse episódio podem ser tiradas outras lições. Por exemplo, como o TJ-SP demora um ano para julgar uma apelação de réu preso (falo, aqui, do corréu A.S.L.)?

De minha parte, de forma ortodoxa, continuo dizendo: Legislativo faz a lei; Judiciário a aplica. Claro que não como no século XIX. Já avançamos. Mas o avanço não pode significar que, do juiz boca da lei novecentino, passamos para a era do “juiz dono da lei”. Por isso a minha luta em favor de uma coisa muito singela: que o Direito tenha autoridade, que não seja corrigido por argumentos políticos/morais e que sejam respeitados os limites semânticos, mormente os do texto constitucional. Afinal, a força normativa da Constituição foi uma conquista do segundo pós-guerra. Por quê? Porque a Constituição passou a ser norma. Vinculante.

Post scriptum: hoje é dia do advogado. Não há muito a comemorar. Sistema fragmentado. Novo CPC e uma grande resistência para o seu cumprimento. Limites semânticos sendo quebrados cotidianamente. São os sintomas que apontam para o sofrimento dos causídicos no seu dia e nos demais dias do ano.

É a primeira coluna em quatro anos de Senso Incomum que coincide com o dia 11 de agosto. Depois de 28 anos de Ministério Público, voltei para a advocacia. Antes de ingressar no MP em 1986, havia advogado por cinco anos. Meu primeiro júri foi em 1981. Como advogado. Minha tese naquele dia frio de junho há 34 anos atrás: nulidade da prova. Antes da Constituição, já não acreditava nessa coisa de nulidade relativa ou prova ilícita obtida de boa-fé (se me entendem a alusão — irônica — à discussão atual). A coluna que escrevi há alguns dias, com o título Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos, vai aqui indicada como minha homenagem aos advogados de todo o país. E lembremos sempre do que aqui chamei de “fator stoic mujic”. Cole na geladeira. Para não esquecer. Stoic mujic. Saludo!

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