Opinião

O lado oculto dos números da presunção de inocência

Autores

  • André Karam Trindade

    é doutor em Direito professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel e sócio do escritório Streck & Trindade Advogado Associados.

  • Juliano Breda

    é advogado pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

13 de junho de 2016, 6h01

Numa conferência ocorrida em São Paulo, um cientista afirmava que o ponto de ebulição da água é 100ºC. Como isso era do conhecimento de todos, ninguém contestou. Eis que alguém se levantou e disse: — Se me permitem, vou demonstrar o contrário. Então, o desafiante acendeu um fogareiro e sobre ele pôs sua chaleira, cheia de água, com um termômetro. Todos observavam atentos. Ao atingir 98ºC, a água ferveu. Como isso? São Paulo localiza-se 800 metros acima do nível do mar. Lá a água ferve antes porque a pressão atmosférica é menor. A afirmação do cientista é correta somente quando se está no nível do mar. Simples. Dizem que, nos Andes, o ponto de ebulição aproxima-se dos 60ºC.

Essa singela história serve de ilustração. O que os signatários deste artigo — e também da ADC 44 — pretendem demonstrar é que muitas das estatísticas apresentadas até o momento acerca da taxa de reversibilidade das decisões no Supremo Tribunal Federal são insuficientes para determinar o sentido e o alcance da garantia constitucional da presunção de inocência. Vamos a elas.

Em seu voto (leia aqui), no polêmico Habeas Corpus 126.292, o ministro Roberto Barroso argumentou que a impossibilidade de execução antecipada da pena produziu “três consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal”. A primeira delas diz respeito à infindável interposição de recursos protelatórios. E, portanto inúteis. Isso porque, segundo o ministro, “o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu é irrisório, inferior a 1,5%”. Com base em dados oficiais da assessoria de gestão estratégica do STF, o ministro aponta que, nos últimos sete anos, as decisões absolutórias representam 0,035% do total das 25.707 decisões de mérito proferidas. Na verdade, o ministro identifica apenas nove decisões absolutórias nesse período. Não fosse por outros motivos, por si esses números já representariam o fracasso do instituto do Recurso Extraordinário. De 25.707, só 9 absolvições?

Na mesma linha, o procurador-geral da República publicou artigo na Folha de S.Paulo, intitulado As estatísticas estão ao lado da prisão antes do trânsito em julgado (leia aqui). Segundo levantamento por ele solicitado, entre os anos 2009 e 2016, o STF julgou 3.015 recursos extraordinários em matéria penal, dos quais apenas 211 foram providos. Entretanto, destes 211 somente 41 tiveram desenlace favorável aos réus, sendo que apenas dois resultaram em libertação imediata. Sua conclusão é de que, ao longo de sete anos, somente 0,6% dos recursos providos afetou a liberdade imediata dos réus. Houve somente uma absolvição, em face da inconstitucionalidade de uma contravenção penal. A questão é saber em qual dos bancos de dados devemos confiar: O citado pelo ministro Barroso ou do PGR? Ou outros?

Assim, embora os números encontrados pelo ministro do STF não sejam similares aos levantados pelo PGR, as estatísticas parecem arrasadoras. No entanto, é preciso dizer que tais estatísticas escondem um dado absolutamente relevante para se discutir o impacto da relativização da presunção de inocência: os milhares de Habeas Corpus substitutivos de recursos extraordinários que foram impetrados no STF ao longo desse mesmo período. E disso nem o ministro Barroso e nem o PGR falam.

E, aqui, cai como uma luva o Relatório Final do Projeto de Pesquisa Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores, divulgado em 2014, pela FGV Direito Rio, que contou com financiamento do Ministério da Justiça e do IPEA (veja aqui). A pesquisa, coordenada pelo professor Thiago Bottino, traz uma radiografia do manejo do HC no Superior Tribunal de Justiça e no STF, entre os anos de 2008 e 2012, quando houve o julgamento de um total de 196.833 casos (portanto, ainda faltariam três anos, pelos quais os números aumentariam). A amostra foi de 5%, respeitada a proporção de cada classe de ação em cada tribunal. O universo total da amostra abrangeu 13.888 casos.

Entre suas conclusões, a pesquisa revela dois dados que são determinantes para a discussão acerca da inconstitucionalidade na execução antecipada da pena. Primeiro: a concessão, total ou parcial, da ordem atinge o percentual de 8,27% no STF e de 27,86% no STJ. Segundo: esses percentuais podem superar os 50% quando a ilegalidade decorre de determinados temas — como “erro da fixação de regime” e “erro na dosimetria” —, cujo impacto incide diretamente na execução da pena.

Vejamos um exemplo: nos casos de roubo (crime que abrange a maior parte dos HCs), quando se demonstra “erro na fixação do regime”, os percentuais saltam radicalmente, atingindo 62% de concessão total ou parcial da ordem; quando se evidencia “erro na dosimetria”, a concessão total ou parcial da ordem chega a 49%. A mesma situação se verifica nos crimes de furto, sobre o qual também incide a questão da insignificância, e nos crimes de tráfico de entorpecentes, apenas para mencionar os tipos penais mais representativos.

Todos esses dados são, ainda, corroborados pelas estatísticas das defensorias públicas de São Paulo, do Rio de Janeiro e da União, que solicitaram ingresso nas ADCs 43 e 44 — ambas relativas à garantia da presunção de inocência —, na condição de amicus curiae, assim como o IBCCRim e o IDDD.

Na verdade, além do bom direito (a constitucionalidade do artigo 283 do CPP), também os números podem estar a favor da manutenção da presunção da inocência, perspectiva assumida em 2009 pelo STF. As estatísticas relativas aos HCs comprovam, cabalmente, que a expressiva maioria dos atingidos não são os ricos, mas, sim, os pobres, o que se pode ver pelo expressivo contingente de processos que envolve a Defensoria Pública.

Outro dado importante dá conta de que os números levantados pelo PGR não “batem” com os apresentados pelo ministro Roberto Barroso. Caso ambos estejam certos, exsurgem variáveis. Se tão poucos recursos e/ou pedidos de liberdade são deferidos pela Suprema Corte, então temos dois problemas: ou estão sendo extremamente mal manejados ou a Suprema Corte é demasiadamente rigorosa. Ou, ainda, o RE é um fracasso. Ou, ainda, no limite, em sendo corretos os números trazidos pelo ministro Barroso: para que ter uma Suprema Corte, se durante sete anos houve apenas nove absolvições? A questão da presunção de inocência pode ser reduzida à verificação dos números decorrentes de absolvições? Eis o busílis.

Ainda, releva registrar que o STF, em recente julgamento, reconheceu o estado de coisas inconstitucional (ADPF 374) do sistema penitenciário brasileiro, determinando, inclusive, a realização de audiências de custódia. Na ADI 5.240 o tribunal reconheceu a validade da audiência de custódia também como mecanismo de evitar prisões ilegais e desnecessárias que só abarrotam o problema da superpopulação carcerária (mais de 650 mil detentos, 4 maior população carcerário do mundo).

Pensamos, assim, que não faz sentido reconhecer até mesmo que o problema carcerário está em estado de inconstitucionalidade e, ao mesmo tempo, mitigar a presunção de inocência, levando ao sistema prisional mais pessoas. Mais pessoas, mesmo. Foi o que demonstramos acima.

Em vista disso — voltando a metáfora inicial —, por desconfiarmos, com a devida vênia, de que a água sempre ferva a 100ºC, é que pensamos em usar um fogareiro, uma chaleira e um termômetro. Para demonstrar que o ponto de ebulição da água depende de outros fatores, e não apenas de uma cifra numérica. E que o mesmo ocorre quando se está a discutir a manutenção da garantia da presunção da inocência.

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