Poderes excessivos

Justiça Militar não pode julgar crimes contra civis em GLO, diz Lewandowski

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8 de março de 2023, 18h53

O presidente da República não tem poder para editar normas penais ou processuais penais, nem para estabelecer um juízo ad hoc, destinado a julgar apenas determinado caso.

Nelson Jr./SCO/STF
Para Lewandowski cabe à Justiça comum julgar crimes de militares contra civis
Nelson Jr./SCO/STF

Com esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski votou nesta quarta-feira (8/3) para declarar a inconstitucionalidade de dispositivos que atribuíram à Justiça Militar a competência para julgar crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas contra civis em operações de garantia da lei e da ordem (GLO). O julgamento será retomado em data a ser designada pela presidente do STF, ministra Rosa Weber.

A ação foi ajuizada em 2013 pela Procuradoria-Geral da República contra dispositivos da Lei Complementar 97/1999. Segundo o órgão, a norma ampliou muito a competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes não diretamente relacionados às funções típicas das Forças Armadas, como os cometidos contra civis nas operações de GLO ou em outras atividades de segurança pública.

O julgamento foi iniciado em Plenário Virtual e suspenso em fevereiro, por pedido de destaque de Lewandowski. Na ocasião, o placar estava 5 a 2 pela constitucionalidade das mudanças previstas na lei complementar. Com a ida para o Plenário físico, o caso recomeçou sem nenhum voto. 

Vencia o voto do ministro Marco Aurélio (aposentado). Segundo ele, a alteração se limitou a preencher o espaço garantido pela Constituição para o estabelecimento de normas legais de organização, preparo e emprego das Forças Armadas.

Marco Aurélio havia sido acompanhado por Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Dias Toffoli. Fachin abriu divergência. Ele já tinha sido seguido por Lewandowski, para quem a segurança pública "constitui atividade eminentemente civil". Por isso, a competência para julgar os militares é da Justiça comum.

Por causa de uma mudança regimental adotada em 2020, o voto do relator foi o único mantido. Agora, com o voto de Lewandowski, o placar do julgamento está 1 a 1.

Abuso de competência
Em seu voto, Lewandowski afirmou que a segurança pública é atividade eminentemente civil, tanto que os órgãos responsáveis por sua preservação são subordinados às autoridades civis, como o presidente da República e os governadores.

Para o ministro, não é possível, do ponto de vista constitucional, reconhecer a competência da Justiça Militar para julgar integrantes das Forças Armadas envolvidos em operações de garantia da lei e da ordem. Isso porque a competência da Justiça Militar pode ser ampliada ou restringida, no tempo e no espaço, inclusive para valer apenas em determinada parte do território nacional, por decisão do presidente da República.

Afinal, destacou o magistrado, o desencadeamento de tais operações corresponde a um ato político do chefe do Executivo federal de "amplíssima discricionariedade", que não sofre controle por parte do Congresso Nacional ou do Judiciário, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio.

"A decisão do chefe do Executivo, nas citadas operações, para a perplexidade de grande parte dos constitucionalistas, não se sujeita a nenhum condicionamento no tocante à avaliação de sua conveniência e oportunidade, razão pela qual, caso permaneça intacto o dispositivo legal impugnado, ser-lhe-á possível alterar, por sua livre e espontânea vontade, e no momento que lhe convier, a competência da Justiça Militar, com o que restariam feridos, dentre outros, os princípios da separação dos poderes, da estrita legalidade em matéria penal, do devido processo legal e do juiz natural", opinou Lewandowski.

Nas operações de GLO, os crimes e os órgãos julgadores passam a ser estabelecidos não mais por lei, como exige a Constituição, mas por decreto, segundo a vontade do presidente, ressaltou o ministro.

"Aqui ocorre evidente lesão ao devido processo legislativo, porquanto não poderiam os parlamentares delegar ao presidente da República uma competência, por todos os títulos, privativa do Congresso Nacional, qual seja, a de elaborar leis, especialmente em matéria penal. Como se sabe, nem mesmo mediante medida provisória mostra-se possível a edição de normas penais ou processuais penais, em face da vedação estampada no artigo 62, parágrafo 1º, 'b' , da Carta Magna."

Além disso, há violação ao princípio do juiz natural, disse Lewandowski. Isso porque fica criado um juízo ad hoc, apenas para os crimes ocorridos durante a operação. Ou seja, "certo comportamento que, em um dado momento, não era tipificado como crime militar e, portanto, não se subordinava à Justiça castrense, de repente, num instante posterior, passa a sê-lo, por força de mero decreto presidencial, sem a necessária anuência parlamentar", segundo o ministro.

Houve uma multiplicação de operações de GLO nos últimos tempos, destacou o magistrado. Entre elas, uma que causou "profundo mal-estar" foi a decretada no Distrito Federal em novembro de 2019, por ocasião da visita de chefes de Estado e de governo estrangeiros para a XI Cúpula dos Brics.

"No citado período, as atividades do Supremo Tribunal Federal foram severamente cerceadas, porquanto os seus servidores só foram autorizados a adentrar nas dependências da Corte caso previamente identificados, sendo que alguns deles tiveram os respectivos carros revistados por militares. Não tivesse o presidente do STF (ministro Dias Toffoli), de última hora, decretado feriado forense, diante do embaraço demonstrado por seus pares, os prejuízos para a atividade jurisdicional teriam sido irreparáveis, especialmente pela limitação imposta ao livre trânsito dos advogados e a possível perda de prazos processuais", ressaltou Lewandowski.

"Ou seja, mediante uma simples 'canetada' do chefe do Executivo, toda a capital da República ficou, durante cinco dias, sob a jurisdição da Justiça castrense, ao menos no que concerne aos integrantes das Forças Armadas convocados para participar da operação, incluindo aqueles que promoveram um verdadeiro cerco ao prédio onde funciona o órgão máximo do Judiciário brasileiro, bem como à sede do próprio Congresso Nacional, cujos membros não puderam esboçar qualquer reação contra a medida."

O ministro também argumentou que os dispositivos da LC 97/1999 criam uma espécie de foro por prerrogativa de função. No entanto, o Supremo já decidiu que só a Constituição pode elencar os agentes públicos que gozam de tal privilégio. E estabeleceu que o foro especial "aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionado às funções desempenhadas" (Questão de Ordem na Ação Penal 937).

"Assim, se a segurança pública configura atividade constitucionalmente atribuída a outros órgãos, quer dizer, às distintas polícias, sendo exercida por integrantes das Forças Armadas somente a título subsidiário, ou seja, à guisa de cooperação com as autoridades civis, não há falar em delito cometido no exercício do cargo e em razão dele apto a atrair a competência da Justiça Militar."

Clique aqui para ler o voto de Ricardo Lewandowski
ADI 5.032

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