Fantasmas do passado

Uruguai tem procuradoria especializada em crimes da ditadura

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21 de fevereiro de 2023, 15h49

O Uruguai derrubou, há mais de uma década, a legislação que concedia anistia aos envolvidos com a repressão, tortura, morte e outros crimes perpetrados durante a ditadura no país — a Lei 15.848, que foi considerada inconstitucional.

Governo do Uruguai
Desde então, o sistema de Justiça do Uruguai ganhou um órgão especial e independente para investigar todos os crimes de homicídio, desaparecimento forçado, tortura, privação de liberdade, abuso sexual, por motivos políticos, ideológica ou sindical durante a ditadura uruguaia, além de atuar em crimes perpetrados no exterior no âmbito do Plano Condor a respeito de vítimas uruguaias. Trata-se da Procuradoria Especializada em Crimes contra a Humanidade (Fiscalía Especializada en Crímenes de Lesa Humanidad — FECLH), comandada por Ricardo Perciballe.

Perciballe explica que a Procuradoria Especializada "atua com absoluta independência de critérios sem receber qualquer mandato de seu superior hierárquico, ou de qualquer outra autoridade do Estado". E destaca a importância do engajamento da sociedade civil neste tipo de trabalho.

O Estado uruguaio mudou de posição em relação à sua lei de anistia depois que foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2011, assim como o Brasil também foi condenado pelos mesmos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar.

Ao longo de quase cinco anos de existência, a Promotoria Especializada uruguaia já promoveu dezenas de ações judiciais e levou para a prisão muitos agentes da repressão que cometeram crimes durante a ditadura.

O caso mais recente ocorreu em 8 de dezembro do ano passado, quando os coronéis do exército uruguaio Carlos Alberto Rossel Argimon e Glauco José Yannone de Leon foram presos. Eles integravam o grupo que em 12 de novembro de 1978 sequestrou o casal Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez e seus dois filhos, Camilo e Francesca, então com sete e três anos, em Porto Alegre, durante as ditaduras uruguaia e brasileira.

A Promotoria Especializada em Crimes contra a Humanidade, explica Perciballe, é uma promotoria especial criada para investigar todos os crimes dessa natureza ocorridos entre 13 de junho de 1968 e 28 de fevereiro de 1985 — período que antecede o golpe militar no Uruguai e a data de encerramento do regime de exceção.

"É a única Procuradoria do país com jurisdição nacional. Em outras palavras, atua em todas as causas dessa natureza que ocorram em qualquer parte do país, assim como em crimes perpetrados no exterior no âmbito do Plano Condor a respeito de vítimas uruguaias. Não obstante, também coordena ações com o Instituto Nacional de Direitos Humanos que, pela Lei 19.822 desde 2020, é responsável pela busca administrativa dos detentos desaparecidos", afirmou.

O órgão foi criado pela Lei 19.550, de 2017, e começou a funcionar em 23 de fevereiro de 2018. Faz parte da Procuradoria-Geral da República (Fiscalía General de la Nación — FGN, em espanhol), órgão descentralizado da estrutura do Estado. Tanto a Procuradoria-Geral quanto a própria Procuradoria Especializada para Crimes contra a Humanidade têm independência técnica em suas ações.

Partido Comunista do Uruguai
Partido Comunista do UruguaiRicardo Perciballe trabalha com três promotores associados contra os crimes da ditadura no país

Além de Ricardo Perciballe, a Fiscalía conta com a atuação de três promotores associados e dois funcionários administrativos, além de contar com o apoio da Procuradoria Geral da República.

"Fora do FGN, a Promotoria Especializada conta com o apoio de diferentes órgãos criados pelo Estado uruguaio, tais como a Secretaria de Direitos Humanos do Passado Recente, que por cerca de 15 anos contou com uma equipe de historiadores que compilaram uma grande quantidade de informação desses anos e estudaram e classificaram os diferentes arquivos de inteligência encontrados", diz o procurador uruguaio.

Há ainda apoio da AJ PROJUMI (Archivos Judiciales Procedentes de la Justicia Militar), que é uma dependência do Poder Judiciário que se encarregou de digitalizar todos os arquivos da "justiça militar"; a Equipe Auxiliar de Polícia para a investigação destes crimes; e a Cátedra de Medicina Legal e Ciências Forenses da Faculdade de Medicina.

Cabe à Procuradoria Especializada investigar e promover ações judiciais em cerca de 140 casos que atingem centenas de vítimas, pelo antigo Código de Processo Penal, que segue um processo semi-inquisitivo segundo o qual a investigação é compartilhada entre um Juiz de Instrução e o Ministério Público.

"Nestes casos, obtivemos dezenas de processos e condenações e encontram-se também pendentes mais de 20 pedidos de acusação e prisão preventiva. Há ainda cerca de oito casos para o novo Código de Processo Penal (que segue um processo acusatório no qual a investigação está a cargo do Ministério Público). Neste caso obtivemos quatro formalizações — ou seja, o julgamento começou e diferentes autores estão sujeitos a processos — e as demais estão em fase de investigação", enumera Perciballe.

Entre os principais resultados obtidos durantes sua existência, Perciballe destaca a aberturas de "diferentes processos — início do julgamento e prisão preventiva — e condenações de um número significativo de criminosos. Até agora, todos os pedidos de ação penal ou formalizações e sentenças exigidas pelo Ministério Público foram acolhidos pelos diferentes Juízes e Tribunais do Uruguai".

O procurador explica que a sociedade civil organizada uruguaia e até o próprio governo de Estado apoiam o trabalho do órgão especial. "Não percebemos que a sociedade uruguaia se opõe ao trabalho de nosso Ministério Público. O que podemos afirmar é que um grupo significativo deles vê nosso trabalho como positivo. E, obviamente, quem dá maior apoio ao Ministério Público são as vítimas em geral, os grupos (organizados) de vítimas, bem como todas aquelas organizações ligadas à defesa dos direitos humanos", conta.

"Também não se pode dizer que o governo resiste à nossa tarefa. A realidade é que os diferentes órgãos do Estado — nesta gestão como na anterior — cumprem todas as solicitações do Ministério Público. Da mesma forma, como apontamos anteriormente, temos a logística necessária para cumprir corretamente nossa obrigação", relata.

Ele também ressalta que a busca por verdade e justiça em relação aos crimes da ditadura não é um trabalho exclusivo apenas de órgãos do Estado, mas requer necessariamente o engajamento de todo sociedade.

"O avanço em ‘Verdade, justiça, memória e nunca mais’ no Uruguai foi e continua sendo um longo e complexo caminho percorrido por organizações de defesa dos direitos civis. Fundamentalmente por mães e familiares de detidos-desaparecidos e a CRYSOL, organização que congrega os ex-presos políticos uruguaios", conta o procurador.

"Todo dia 20 de maio de cada ano, na data em que ocorreram os assassinatos na Argentina dos parlamentares uruguaios Zelmar Michelini e Hector Gutierrez Ruiz e dos ativistas políticos Rosario Barredo e William Whitelaw, realiza-se a maior manifestação de todo o país", narra Perciballe. "Essa manifestação acontece desde 1996, em total silêncio e, apesar de ser acompanhada de um slogan diferente a cada ano, é sempre reivindicada pela 'Verdade, justiça, memória e nunca mais'."

E o Brasil?
Assim como o país vizinho, o Brasil também ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998, o que permite que o Estado brasileiro seja processado e julgado pelo tribunal.

O Tribunal Interamericano de Direitos Humanos reconhece que a Lei da Anistia no Brasil (Lei 6.683, assinada pelo general João Batista Figueiredo e que completará 44 anos em 28 de agosto) impede a investigação e a responsabilização de graves violações de direitos humanos. Assim, se torna incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

A corte internacional também considera que o desaparecimento forçado é uma violação que perdura no tempo e afeta de forma negativa a integridade pessoal dos familiares das pessoas desaparecidas. Foi considerado que o governo brasileiro violou os direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias e proteções judiciais e à liberdade de pensamento e de expressão, em relação ao direito de buscar informação e ao direito à verdade.

Até agora, a FECLH não investigou nenhum agente do Estado brasileiro que tenha atuado no Uruguai, ou que tenha participado desse país em detrimento de alguma vítima uruguaia. Perciballe disse não ter conhecimento suficiente sobre a realidade brasileira para opinar sobre uma possível anulação da Lei de Anistia, como o ocorreu em seu país. Mas alega que investigações podem ser feitas, como as desenvovlidas pela procuradoria especial.

"Não conheço a realidade brasileira. O que posso apontar é o que aconteceu aqui. No Uruguai também havia uma lei que impedia o julgamento de crimes contra a humanidade. Durante anos essa lei vigorou, até que em 2011 foi declarada inconstitucional. Depois disso, e da condenação do Uruguai pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gelman versus Uruguai, também de 2011, as coisas mudaram e os julgamentos puderam ser iniciados ou retomados. Obviamente nada foi fácil e ainda não é, mas com avanços e retrocessos as investigações continuam", explica.

O caso a que o procurador se referia na CIDH era o das violações dos direitos fundamentais de Maria Claudia García Iruretagoyena Gelman — Maria C. Gelman — em decorrência de seu desaparecimento forçado, ocorrido em 1976, e a supressão da identidade de sua filha María Macarena Gelman Garcia Iruretagoyena, no âmbito da Operação Condor.

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