Livre para acusar

Para imprensa, acusado é culpado

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2 de abril de 2010, 6h33

Gervásio Baptista/SCO/STF
Procurador-geral da República concede entrevista antes da sessão plenária.17/03/2010 - Gervásio Baptista/SCO/STF

A cobertura pela imprensa do assassinato de Isabella Nardoni trouxe à tona o debate sobre a atuação da mídia diante de casos criminais de grande repercussão popular. Durante dois anos, o público acompanhou o noticiário que apontava Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá como culpados. Quando o julgamento aconteceu na semana do dia 22 de março, a opinião pública já estava devidamente domesticada para receber o único veredito possível: culpados. Não é difícil encontrar outros casos que pipocam na mídia sempre com o ponto de vista claramente contrário aos acusados.

"Nas notícias publicadas nos jornais, o teor é sempre o seguinte: a acusação afirma e a defesa alega. A imprensa dá toda atenção ao acusador e quase nenhuma ao acusado. Para todos os efeitos, os jornais ficam ao lado do Estado. Não examinam fatos, não cobram provas. Apenas fazem alarde sobre o que diz o delegado e o promotor", analisa o jornalista americano radicado em São Paulo Richard Pedicini, que desde o caso Escola Base, transformou-se em um especialista em acompanhar de perto os fatos e a cobertura da imprensa sobre crimes polêmicos. No caso da Escola Base, que virou paradigma da atuação desastrosa da imprensa em matéria penal, os donos da escola infantil foram acusados de abusar sexualmente dos alunos. Descobriu-se depois que não houve qualquer abuso – mas quando isso aconteceu, a escola já havia falido, os acusados estavam com sua vida pessoal, afetiva e econômica destroçada.

Pedicini defende o jornalismo imparcial, um conceito óbvio, mas que, segundo ele, está ausente na mídia. Ele é especialmente crítico das reportagens que aceitam o que a polícia afirma sem desconfiar. "Se a imprensa olhar para a acusação com um décimo do senso crítico com que olha para o acusado, e conceder a ele um mínimo de credibilidade, as acusações sem fundamento não aconteceriam. Mas não, a prisão sempre é notícia, os argumentos da defesa, nem tanto."

O norte-americano, que há 20 anos se mudou para o Brasil, aponta diversos casos em que a mídia teve papel fundamental na condenação prévia e até judicial dos acusados. Para ele, a Escola Base é “fichinha” perto do que aconteceu nas cidades de Taquara (RS) e Catanduva (SP). Em comum, nos três casos, a suspeita de pedofilia sobre pessoas aparentemente acima de qualquer suspeita, e a campanha da imprensa para fazer valer a acusação.

Colina do Sol
Empenhado na defesa dos acusados, ele passou muito tempo investigando o caso gaúcho, preparou um dossiê sobre o assunto e publica as notícias em seu blog. O episódio é conhecido como caso Colina do Sol, nome de uma comunidade naturista onde teriam acontecido os crimes atribuídos ao casal de norte-americanos moradores do local Frederic Louderback e Barbara Anner, e ao casal de brasileiros, André Ricardo Herdy e Cleci Ieggli da Silva.

Aposentados, Louderback e Barbara fundaram uma ONG em prol das crianças da Vila de Morro da Pedra, situada nas proximidades da Colina. Eles patrocinavam tratamento médico e dentário, promoviam jogos de futebol e aulas de reforço escolar. Cleci é ex-moradora da comunidade, e seu marido Herdy, presidente da Federação Brasileira de Naturismo. Os quatro foram presos provisoriamente em dezembro de 2007, sob a acusação de abuso sexual de crianças, pornografia infantil e tráfico internacional de menores. Os americanos permaneceram detidos por 13 meses, tempo considerado excessivo pelo desembargador Sylvio Baptista, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que os liberou. Os brasileiros também ficaram presos pelo mesmo tempo.

"A polícia chegou com a ordem judicial e a imprensa televisionou o ato da prisão do casal", conta Pedicini. O jornalista chama a atenção para uma curiosidade do caso: "Em todo processo há um acusador, que é a vítima, e um acusado. Neste, existe o acusador, que não é vítima, as supostas vítimas e os acusados". Ele explica que a acusação foi feita por sócios do Clube Naturista Colina do Sol, que seriam desafetos dos dois casais presos. "A imprensa engoliu tudo o que o delegado apontou e regurgitou mundo afora."

ACS-PC
Material recolhido pela Polícia - ACS-PC

Durante o aprisionamento do casal americano, uma das provas apreendidas foi uma série de vídeos e DVDs que supostamente continham cenas de abuso sexual infantil, informação amplamente divulgada pela imprensa. A perícia analisou o material e não encontrou nenhuma evidência de crime (na foto, parte do material apreendido). "Tratam-se de gravações contendo cenas cotidianas, algumas em situações corriqueiras da área de nudismo, sem qualquer conotação sexual, pornográfica ou similar, tampouco situações que infiram pedofilia", diz o relatório que não está entre os documentos do caso que são sigilosos, por determinação da Justiça. "Algum jornal noticiou o descarte de provas? Claro que não", diz Pedicini.

Pedicini também aponta a repercussão da opinião da psiquiatra Heloisa Fischer Meyer, que acreditava na culpa dos casais. "As manchetes noticiavam que os jovens tinham sofrido abuso. No corpo da notícia estava escondida a verdade: os jovens negavam e nem a psiquiatra afirmava que o abuso tinha a ver com o caso."

As evidências contra a acusação não param por aí. Três pais de crianças e adolescentes nomeadas como vítimas negaram-se a representar contra os acusados porque os próprios filhos disseram que não foram vítimas de abusos. O pai de um jovem de 16 anos, que foi chamado para depor como testemunha, procurou a promotora Natalia Cagliare para contar que o filho foi coagido pela polícia a acusar o casal de pedofilia. Natalia, segundo o jornalista americano, não quis ouvi-lo e recomendou uma queixa à Corregedoria da Polícia Civil. Mais tarde, denunciou-o por ter feito acusações contra a polícia.

Mais parcialidade
Richard Pedicini relembra outros casos em que a imprensa ficou do lado da versão oficial do Estado, sem questionar. O caso de uma suposta rede de pedofilia em Catanduva, a que ele se refere como caça às bruxas, é uma delas. Ele cita manchetes no dia em que as crianças consideradas vítimas da rede de pedofilia de Catanduva foram participar do reconhecimento de suspeitos. "Um jornal colocou em letras gigantes na capa: ‘Crianças vão reconhecer abusadores hoje’. Uma afirmação simples assim. Sobrou pouco espaço para a absolvição dos acusados."

O jornalista norte-americano ressalta que naquele dia as crianças reconheceram o borracheiro José Barra Nova Melo, conhecido como Zé da Pipa, como um dos pedófilos. "O engraçado é que ele está preso e não foi levado naquele dia para o reconhecimento. Nenhum jornalista foi atrás disso."

Nesse mesmo caso, uma reportagem da Folha de S. Paulo de 15 de março de 2009 teve o cuidado de proteger os acusadores escrevendo apenas as iniciais de seus nomes, mas escreve com todas as letras os nomes dos acusados, inclusive de dois menores, que naquela altura da investigação, não passavam de suspeitos. O caso de Catanduva ainda está sob apreciação da Justiça.

Pedicini também se recorda de outro clássico erro da imprensa: o crime do Bar Bodega. Nesse caso, nove pessoas foram detidas acusadas de terem feito um assalto no estabelecimento que dá nome ao caso e de terem atirado à queima-roupa contra o dentista José Renato Tahan e a estudante de odontologia Adriana Ciola. Na época, a imprensa fez uma campanha contra os acusados, seguindo apenas o que a polícia informava. A colunista da Folha de S.Paulo, Barbara Gancia, em notícia publicada no dia 14 de agosto de 1996 escreveu que os assaltantes são animais que matam por esporte. "São veneno sem antídoto, nenhum presídio recuperaria répteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal é enfiar o cano do revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver."

Nesse caso, Pedicini destaca a atuação do promotor Eduardo Araújo da Silva, que desconfiou da acusação da polícia contra os homens detidos e mudou os rumos da investigação, até conseguir a liberdade dos acusados, atuando em sentido contrário à pressão da imprensa. "Quando foi decretada a liberdade de sete dos detidos pelo crime, a imprensa não reconheceu o erro. O Estado de S.Paulo estampou em letras garrafais, em sua capa do dia 28 de outubro de 1996: Soltos sete suspeitos de homicídio".

Doce vingança
Ex-secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Jorge Caldas Pereira vivenciou o que ele chama de “linchamento da mídia” e deu o troco. Em 1998, ele virou alvo de acusações de ter sido conivente com o desvio de 169 milhões de reais das obras do Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo. O esquema de desvio envolveu o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, os empresários Fábio Monteiro e José Eduardo Teixeira Ferraz, da Incal Alumínio, e o então senador Luiz Estevão. Após terem sido julgados, todos foram considerados culpados. Menos Eduardo Jorge.

De acordo com o ex-secretário, a imprensa não apenas noticiou os fatos, mas o perseguiu. “Foi um verdadeiro linchamento, que paralisou a minha vida completamente durante cinco anos. Até hoje ainda gasto energia com isso”, diz Eduardo Jorge, referindo-se aos processos que moveu contra sete veículos – Isto é, Veja, Folha de S.Paulo, Correio Brazilienze, O Globo, Estado de Minas e Jornal do Brasil. “Fiz isso para restaurar a minha honra, obter reparação e mostrar à imprensa que ela não pode noticiar dessa maneira”, revelou. Ele conta que obteve vitória em todas as ações, apesar de alguns terem recorrido. As indenizações por danos morais variam de R$ 50 mil a R$ 200 mil.

“De todos, a Isto é e Folha de S.Paulo foram os mais escandalosos, os menos verazes, o que levaram mais longe a coisa”. Segundo Eduardo Jorge, a notícia de sua inocência não  teve o mesmo destaque do que a acusação contra ele. “Nada de manchete, deram noticinha escondida. Não teve a mesma ênfase”.

Para o ex-secretário, os veículos são solícitos com as fontes que passam a informação e acabam defendendo o lado delas. “No geral, a cobertura da mídia é sempre superficial, preconceituosa, apressada”, opina. Declara também que as ações na Justiça surtiram efeito. “Hoje, os órgãos de imprensa em geral têm cuidado quando tratam de mim, porque sabem que eu vou atrás”.

Também no caso da Escola Base, apesar dos prejuizos irreparáveis que sofreram, as verdadeiras vítimas do episódio acabaram conseguindo na Justiça a reparação tanto do Estado quanto dos órgãos de imprensa. Foram condenados a pagar indenizações ao casal de proprietários da escola e ao seu motorista – alvos das falsas acusações – os jornais Folha da Tarde (já extinto), Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, TV Globo e a revista IstoÉ.  As indenizações variaram entre R$ 360 mi le R$ 1,3 milhão. SBT e TV Bandeirantes foram absolvidas das acusações. 

O estado de São Paulo também foi condenado a indenizar as vítimas, já que as imputações feitas pela imprensa tiveram origem em informações fornecidas pelo delegado de Polícia que investigou o caso. A ação contra o estado chegou ao Superior Tribunal de Justiça  que fixou em R$ 250 mil o valor a ser pago a cada um dos falsos acusados. A Fazenda Pública de São Paulo chegou a ser multada pelo Supremo Tribunal Federal por litigância de má-fe, pela insistência em fugir às suas responsabilidades. 

Clique aqui e veja a perícia sobre os objetos recolhidos no caso Colina do Sol.

Foto 1: Procurador-geral da República concede entrevista antes da sessão plenária. 17/03/2010 – Gervásio Baptista/SCO/STF

Foto 2: Material recolhido pela Polícia – ACS-PC

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