Cortes Constitucionais garantem direitos de asilados
15 de fevereiro de 2014, 7h00
A União Europeia procura lidar com o desafio de enfrentar essa situação, em especial para estabelecer regras comuns aos Estados-membros.[3] O assunto é delicado, passa pela base de proteção internacional dos refugiados, que é a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, princípio tão caro ao continente. Os refugiados são titulares de direitos humanos que devem ser respeitados em todo momento, circunstância ou local[4], ideia que dificulta ou gera crítica a tentativas de estabelecer condições mais duras para a concessão de asilo[5].
A forma como os Estados europeus devem conduzir a questão também não é fácil. Ações e regulamentos rígidos sobre a matéria podem parecer conflitantes com o Estado Democrático de Direito. Na prática, a concretização do direito ao asilo acaba sendo colocada em xeque diante do elevado número de pedidos e da quantidade de solicitações aceitas. A necessidade de efetiva proteção à pessoa humana pode gerar, nesse contexto, questionamentos internos sobre a política imigratória, muitas das quais são submetidas a Cortes Constitucionais, que ocupam papel de destaque ao decidir sobre o tema.
Na Alemanha, a Lei Fundamental, de 1949, garante o direito ao asilo político como direito fundamental, sem previsão de reserva legal, na redação original. Tratava-se de resposta à necessidade de pautar o novo texto constitucional do Pós-Guerra no mais importante dos princípios, a dignidade humana, e repudiar políticas do nacional-socialismo. Essa abertura alemã gerou intensa cadeia migratória. Em 1992, o país viu-se diante dos maiores índices de solicitações de asilo, que então chegou a cerca de 440 mil candidatos.[6]
Como consequência, o antigo artigo 16a da Lei Fundamental, que, no texto original, previa apenas que “os perseguidos políticos gozam do direito de asilo”,foi alterado em 1993 para limitar seu âmbito de proteção. A partir daí, o direito a asilo não pode ser invocado por ninguém que entre no país vindo de Estado-membro da União Europeia ou de outro terceiro país no qual esteja assegurada a aplicação da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados e a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Ou seja, a Alemanha criou um verdadeiro escudo à entrada terrestre de estrangeiros em busca de asilo, já que seus vizinhos enquadram-se em tal definição.
A exclusão da possibilidade de concessão de asilo aos vindos dessa categoria de países, que se denominou “terceiro Estado seguro” (sichere Drittstaaten), foi submetida ao Bundesverfassungsgericht por meio de reclamação constitucional.[7] A Corte ressaltou ser possível ao Legislador conformar o âmbito de proteção de um direito fundamental. Ademais, apontou que a nova política era razoável, já que deixava brechas a eventuais exceções à “certeza normativa” de que tais Estados cumprem com os direitos dos asilados — hipótese em que a avaliação deveria ser mais rígida.[8]
A constitucionalidade do terceiro Estado seguro foi bastante criticada. Para defensores dos direitos humanos, a Corte teria transformado o direito ao asilo em um direito fundamental de segunda categoria. A emenda teria destruído o “teor essencial” do direito individual legítimo ao asilo político, ao autorizar que fugitivos provenientes de um terceiro Estado seguro fossem deportados, muitos sem interposição de recurso.[9]
A decisão que confirmou a constitucionalidade do terceiro Estado seguro chegou a indicar que esta política criou base para a regulamentação da matéria em outros países da União Europeia. De fato, serviu de exemplo, mas também levou consigo dúvidas acerca de sua eficácia. Em 16 de janeiro de 2014, a Corte Constitucional Belga anulou parte da lei nacional de asilo por entender que esta não possuía remédio eficaz aos solicitantes de asilo provenientes da lista local de “países seguros” — que, lá, inclui Sérvia, Montenegro, Albânia e Índia. A lei prevê, para nacionais desses Estados, a possibilidade de interposição de um apelo de anulação da decisão administrativa, que não tem eficácia suspensiva e apenas examina a legalidade da decisão, não permitindo ao juiz apreciar novos elementos.[10]
Justamente pelo pressuposto de que esses terceiros países são seguros e, em princípio, seus nacionais não precisam obter asilo, o procedimento é rápido, em geral resolvido em 15 dias úteis. Durante o julgamento do recurso, os recorrentes já não mais possuem direito a permanecer em um dos centros de acolhimento do país. A Corte entendeu que esse procedimento viola o artigo 13 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem — “direito a recurso perante uma instância nacional” — e determinou sua invalidade.
Outro ponto delicado da política imigratória é a condição em que solicitantes de asilo e refugiados permanecem no país, o que inclui alimentação, moradia, trabalho. Em 2012, o Tribunal alemão exerceu novo importante papel ao julgar inconstitucional o valor do benefício pago aos solicitantes de asilo. A quantia, que não era ajustada desde 1993, foi declarada insuficiente e inconsistente com a garantia do mínimo existencial. O valor mensal regular era, até então, 224,97 euros.
No caso, a Corte indicou que mais de 50 mil solicitantes de asilo no país migraram para a Alemanha para fugir de guerras ou conflitos. Muitos não possuem direito certo e definitivo de permanecer ou residir no país, mas, pelo princípio do non-refoulement, não podem ser deportados. A decisão do Tribunal Constitucional Federal foi especialmente destinada a esses casos — e era a situação de um dos reclamantes, iraniano que reside em abrigo para estrangeiros e refugiados e a quem é vedado trabalhar ou sair das imediações do abrigo.[11]
O Tribunal Constitucional Federal alemão seguiu jurisprudência de afirmação da dignidade da pessoa humana e estabeleceu que solicitantes de asilo devem ter salvaguardada a garantia a um mínimo existencial, direito que se estende não apenas aos alemães, mas a todos os estrangeiros no país. Declarou a nulidade da lei e fez apelo ao legislador para alterá-la, utilizando-se de argumentação e técnica semelhantes às adotadas no julgamento do chamado caso Hartz-IV.[12] Para o período de elaboração da nova lei, especificou que os solicitantes de asilo devem receber o mesmo valor pago aos beneficiários da assistência social alemã, sem possibilidade de pedidos retroativos. Muitos encaram essa decisão como uma conciliação do tribunal com o direito de asilo e a prova de que o país tem evoluído em aumentar sua proteção.
Na vizinha Áustria, a grande quantidade de refugiados não é diferente, a ponto de ter sido criado um Tribunal de asilo (Asylgerichtshof) para facilitar a apreciação dos pedidos — corte administrativa que abriu suas portas em 2008 e foi extinta em 31 de dezembro de 2013. Composta por presidente, vice-presidente e 76 juízes de carreira, escolhidos pelo presidente da República por indicação do governo federal dentre juristas com mais de cinco anos de prática, de suas decisões admitia-se recurso à Corte Constitucional.[13]A Constituição austríaca foi alterada em 2008, a fim de instituir competência do Verfassungsgerichtshof para julgar reclamações oriundas do Tribunal de Asilo, fato então encarado com certo receio pelos juízes constitucionais. Estes admitiram a importância da questão, mas entendiam que a Corte deveria apenas intervir em casos excepcionais, para não se afastar de sua tarefa originária. A preocupação dos magistrados foi confirmada em relatório do Tribunal elaborado no ano seguinte à alteração: ações ligadas ao direito de asilo foram responsáveis por 63% dos recursos então interpostos,[14] média que continuou alta nos anos seguintes.
Em 1º de janeiro de 2014, entrou em vigor reforma que reestruturou o sistema administrativo da Áustria, uma das maiores alterações já feitas na Constituição de 1920. A jurisdição administrativa passou a ter duas fases. Os casos podem agora ser diretamente interpostos perante o Tribunal Administrativo Federal (Bundesverwaltungsgericht), para o qual foram transferidas competências de outros órgãos, inclusive as do Tribunal de Asilo, consequentemente extinto. Dessa decisão cabe recurso ao Superior Tribunal Administrativo (Verwaltungsgerichtshof)e permanece aberta a via da reclamação à Corte Constitucional. Em relatório atual, a Corte aponta que aguarda para conferir possíveis efeitos da reforma administrativa, mas prevê que dificilmente esta alterará o quadro de demandas sobre o tema.[15]
Também em janeiro de 2014, o Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) aconselhou a suspensão temporária do envio de solicitantes de asilo à Bulgária[16]. Trata-se de recomendação feita aos participantes da Convenção de Dublin II, pela qual o asilo precisa ser requerido ao primeiro país da União Europeia a que chegar o solicitante, que neste deve aguardar seu processamento.[17] A Convenção, elaborada para evitar, em especial, o chamado asylum shopping — prática de pular de país em país, protocolando várias solicitações ou escolhendo os procedimentos mais convenientes —, não previu a crise que poderia assolar alguns Estados-membros. De acordo com a ONU, a Bulgária está sem condições de garantir os direitos desses estrangeiros, que carecem de acesso a serviços básicos, correm risco de sofrer prisões arbitrárias, enfrentam demorados processos.
Por motivos semelhantes, o Tribunal Constitucional Federal alemão realizou audiência pública em 2011 para caso em que cidadão iraniano, que estava com pedido de asilo sendo processado na Grécia, interpôs recurso contra decisão administrativa que previa sua deportação, em cumprimento à Convenção de Dublin II. Na audiência, o Ministério do Interior Alemão manifestou-se no sentido de que tem competência e se utilizaria o direito à soberania para avocar casos que deveriam ser processados por outro Estado-membro. Indicou, ainda, que passaria essa orientação a instâncias inferiores. Entendeu-se que a Alemanha não deveria expulsar, sem análise do caso, cidadãos a outros Estados que, ainda integrantes da União Europeia, sabia-se estarem enfrentando grave crise.[18] Mesma determinação já foi feita por outras Cortes Constitucionais da Europa, como a austríaca e a belga.
Dos casos brevemente aqui mencionados, fica claro o importante papel que as Cortes Constitucionais têm ao intervir na condução de políticas nacionais relacionadas ao direito de asilo. Pautadas na dignidade da pessoa humana, já decidiram questões muitas vezes vitais aos estrangeiros que estão no continente à espera de alguma decisão sobre seu futuro. Em uma Europa com muitos países em crise econômica, que recebe muitos estrangeiros e onde também paulatinamente cresce o sentimento discriminatório — vide resultado de referendo realizado no último domingo na Suíça —[19], os Tribunais Constitucionais, por certo, ainda serão bastante demandados e, espera-se, terão oportunidade de manter sua tradição de também guardiões da dignidade humana.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
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