Opinião

Delatados devem falar por último no processo penal

Autores

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

  • Raul Marques Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

2 de setembro de 2019, 6h44

O acusado que celebra o acordo de colaboração premiada permanece sendo acusado no respectivo processo. Entretanto, é fácil perceber que o seu papel processual, com a celebração do acordo de colaboração, adquire uma natureza distinta e que não se confunde com o papel dos acusados delatados.

Ao passar a atuar “ao lado” do órgão acusador (ou mesmo da autoridade policial), a relevância processual do colaborador para a função acusatória passa a ser crucial. Justamente por isso, se atribui tamanha importância aos direitos defensivos do delatado, inclusive como medida de verificação da veracidade (ou falsidade) da colaboração e atribuição de credibilidade ao seu conteúdo, se verídico for. Exemplo disso é a garantia de acesso, por parte do delatado, ao material probatório que a ele diga respeito; assim como o seu direito de requerer a oitiva do delator em juízo, e a restrição ao delator ao uso do silêncio diante das perguntas do delatado.

A compreensão da distinção existente entre a atuação processual do acusado colaborador e a atuação processual do acusado delatado deve conduzir a um tratamento processual distinto em relação a cada um deles. Em razão da carga acusatória originada da participação processual do acusado colaborador, torna-se imperativo assegurar ao delatado que possa exercer o confronto de cada manifestação do colaborador que influa na sua situação processual.

Assentadas essas bases, consideramos adequado o posicionamento adotado pela Segunda Turma do STF, no julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 157.627,1 que anulou sentença proferida após a concessão de prazo comum a colaboradores e delatados (mesmo havendo requerimento defensivo prévio para que fosse assegurado prazo sucessivo) e reconheceu ao delatado “[…] o direito de oferecer novamente seus memoriais escritos após o decurso do prazo oferecido aos demais réus colaboradores […]”.2

Nesse caso, é irretocável a afirmação do Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, de que o acusado delator adere à acusação, incriminando os demais membros da organização, em prol do recebimento das sanções premiais pactuadas. Justamente por isso, dever-se-ia assegurar o efetivo contraditório ao delatado por meio de sua manifestação em momento posterior à manifestação do réu colaborador.

É verdade que inexiste regramento legal expresso a respeito da ordem de manifestações de réu colaborador e réu delatado no processo penal e na Lei 12.850/13 (alegação utilizada por aqueles que entendem inexistir óbice, por exemplo, à concessão de prazo comum para a apresentação de memoriais escritos por delatores e delatados). Todavia, entendemos ser primordial o reconhecimento de que a lei é incapaz de antever as mais diversas situações práticas possíveis (o próprio conhecimento humano é desprovido de tamanha capacidade previsional) e de que o processo penal é mais do que previsão legal objetiva; é, também, sistema, princípio.

Portanto, quando se afirma que se deve garantir ao delatado o pronunciamento em momento posterior à manifestação do delator, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório, não se está fazendo referência a um rol taxativo de situações expressamente disciplinadas em artigo de lei. Trata-se de um imperativo principiológico a determinar um padrão de conduta processual (nesse caso, por exemplo, que tenha o delatado a oportunidade de confrontar toda a carga acusatória que contra ele seja dirigida).

Por esse motivo, aderimos ao entendimento de que seja garantido ao acusado delatado o direito de oferecimento de memoriais escritos em momento posterior ao oferecimento de memoriais pelo acusado colaborador, medida necessária para que lhe seja assegurado o exercício efetivo do contraditório.

Deve-se tomar o cuidado, entretanto, com o momento adequado para a arguição da nulidade, caso não seja adotada, pelo magistrado, a abertura de prazos distintos para o acusado colaborador e o acusado delatado, especialmente em razão do entendimento majoritário de que, tanto a polêmica categoria “nulidade relativa”, quanto a “nulidade absoluta”, demandariam alegação oportuna (sob pena de preclusão da matéria) e demonstração do prejuízo.3

Dito tudo isso, é certo que a questão ainda enfrentará discussão no Plenário do Egrégio Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a remessa de novos casos que serão afetados ao Plenário para que se tenha segurança jurídica sobre esta questão já decidida pela Segunda Turma. De qualquer modo, a nossa posição segue sendo a de aderir ao que já foi decidido no sentido de que o delatado deve se manifestar após a manifestação do delator, atendendo-se, assim, a ampla defesa e ao contraditório, direitos assegurados na Constituição Federal. Se estamos diante de um processo acusatório, de partes, onde o Ministério Público tem o ônus de provar o que imputa ao acusado (delatado), também o tem o colaborador da justiça. Nesse sentido, importante que o delatado fale após a manifestação do Ministério Público e do colaborador, pois poderá opor-se a carga probatória produzida contra si e não será pego de surpresa se o prazo para memorias for comum à acusação ao colaborador (corréu) e ao delatado.

No modelo acusatório, que julgamos ser o conforme à Constituição, deve existir uma oportunidade igual de participar no processo e o igual valor das visões da realidade que propõe cada uma das partes só serão “reais e efetivas” na medida em que se supere a concepção formal de igualdade, e o diálogo se realize entre partes com iguais oportunidades para solicitar informação e evidências que suportem suas alegações4.

O diálogo, num sentido ideal, exige reconhecer a igualdade inerente a cada interlocutor. As razões de um e outro tem igual peso. No processo adversativo é necessário lograr que os adversários se encontrem em pé de igualdade. Somente assim se logra que o processo se revista das garantias mínimas que permitam qualifica-lo de justo. Se dito diálogo parte de uma situação inicial de desiquilíbrio, na qual as razões de uma das partes se encontram, em um sentido estrutural e não como resultado das particulares estratégias de defesa e acusação, numa posição diminuída, por carência de elementos empíricos que suportem seus argumentos, não existe realmente diálogo5.

Nesse sentido, para que exista um diálogo justo dentro do sistema acusatório, necessário que os memoriais, nos casos de colaboração premiada, sejam sucessivos, para que o delatado não fique numa posição de defesa diminuída e possa, após as manifestações contra ele opostas, arguir a sua tese defensiva.

Aliás, embora a Lei 12.850/13 não faça referência expressa a apresentação de memorias sucessivos, ela menciona que nenhuma sentença condenatória será proferida somente com as declarações do agente colaborador, então, maior razão assiste para que o delatado tenha que falar por último, pois somente assim poderá se opor ao pedido de condenação quando a colaboração estiver lastreada única e exclusivamente na palavra do colaborador. Uma interpretação teleológica do texto permite afirmar que esta é a forma de manter a igualdade de partes do processo penal.


1 HC 157627 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN; Redator para o acórdão: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 27/08/2019.

2 HC 157627 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN; Redator para o acórdão: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 27/08/2019.

3 Tarefa que, na grande maioria dos casos, exige um esforço hercúleo da Defesa, muitas vezes de inviável demonstração prática, justamente por sempre se tratar de um raciocínio hipotético (demonstrar a existência de prejuízo depende, consequentemente, da demonstração de que “as coisas” ocorreriam de forma benéfica sem o ato impugnado). Aliás, em muitos casos nos quais se considera indemonstrado o prejuízo, é igualmente indemonstrável que não houve; ou seja, se a Defesa não consegue demonstrar o prejuízo de forma segura, também a Acusação ou o Judiciário não conseguem demonstrar, com segurança, a sua inexistência, justamente por se tratar de um raciocínio hipotético a descambar para uma inarredável dúvida. Nesse caso, não é excessivo recordar, deve imperar o princípio in dubio pro reo, fazendo prevalecer o reconhecimento da nulidade do ato.

4 BERNAL CUÉLLAR, Jaime; MONTEALEGRE LYNETT, Eduardo. El Proceso Penal. Fundamentos constitucionales del nuevo sistema acusatório. Tomo I. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2004, p. 296.

5 Ob cit., p. 297.

Autores

  • é advogado criminalista, professor de Direito Penal no IDP-Brasília e pós-doutor em Direito pela Universidad Autónoma de Madrid.

  • é advogado criminalista. Integrante do projeto de pesquisa Estado e Política Criminal: a expansão do Direito Penal como forma de combate ao terrorista. Coautor do livro O Crime de Terrorismo – Reflexões Críticas e Comentário à Lei de Terrorismo de acordo com a Lei n. 13.260/2016

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