Improbidade em Debate

Improbidade administrativa: retroatividade e prescrição intercorrente

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26 de novembro de 2021, 8h00

Já escrevemos neste espaço nossos primeiros argumentos em defesa da retroatividade das normas materiais benéficas a réu em improbidade resultantes da reforma operada pela Lei nº 14.230/2021 [1]. Remetendo o leitor àquele texto, e recomendando enfaticamente um outro, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, publicado nesta semana [2], permitimo-nos regressar ao tema para aprofundar um ponto específico a seu respeito: a prescrição intercorrente.

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É que desde o período formulário no Império Romano do ocidente a prescrição fulmina exigibilidade judicial de pretensão em razão de inércia de seu titular, não se vinculando à omissão de terceiro. A par disso, causa inicial estranheza imaginar que referida inércia, atribuível ao juízo, pudesse ser pronunciada a posteriori, fruto de alteração normativa com eficácia retroativa sem um filtro intertemporal.

Ilustramos o que estamos a dizer a partir do tratamento legislativo conferido à prescrição nos direitos civil, trabalhista e processual civil. No primeiro, por exemplo, vindo a lume o Código Civil de 2002, os artigos 2.028 e 2.029 estabeleceram regras de transição que, insuficientes frente à riqueza da realidade, exigiriam a edição do enunciado 229 na 4ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "Iniciada a contagem de determinado prazo sob a égide do Código Civil de 1916, e vindo a lei nova a reduzi-lo, prevalecerá o prazo antigo, desde que transcorrido mais de metade deste na data da entrada em vigor do novo Código. O novo prazo será contado a partir de 11 de janeiro de 2003, desprezando-se o tempo anteriormente decorrido, salvo quando o não-aproveitamento do prazo já vencido implicar aumento do prazo prescricional previsto na lei revogada, hipótese em que deve ser aproveitado o prazo já transcorrido durante o domínio da lei antiga, estabelecendo-se uma continuidade temporal". A imbricada dicção do verbete teria um condão: evitar surpreender o titular quando um dado prazo, reduzido, pudesse tornar imediatamente morta a pretensão migrada de um diploma para o outro.

No Direito Processual Civil, de sua vez, o Código de Processo Civil de 2015, afinando-se com o artigo 202, parágrafo único, do Código Civil, inovou ao tornar regra, nas execuções em geral, a possibilidade de prescrição intercorrente, antes somente possível em execuções fiscais. Como meio de aplacar dúvidas sobre as pretensões executivas já existentes ao tempo da entrada em vigor da nova lei, constou do novel diploma o artigo 1.056, estabelecendo como termo inicial da contagem de prescrição intercorrente em execuções em curso a entrada em vigor da citada lei, o que mereceu prestígio e consagração pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.620.919 (DJ de 14/12/2016): "O referido dispositivo, de aplicação prospectiva, só veio a confirmar a ratio legis do instituto, no sentido de que, por se tratar de alteração ou inovação normativa no âmbito do ordenamento jurídico, faz-se necessária uma regra de transição a regular a matéria, isto é, o legislador reconheceu, de forma expressa, ser indispensável uma regulamentação específica a reger as regras de sua incidência, notadamente em razão de sua originalidade".

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O direito do trabalho viveria situação semelhante com a sobrevinda da chamada reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que encerrou, pela via legislativa, discussão candente sobre a existência ou não de prescrição intercorrente em execuções naquele ramo jurídico, afirmando sua ocorrência na hipótese do artigo 11-A da Consolidação das Leis Trabalhistas. O ponto, todavia, foi que, diferentemente dos Códigos Civil e Processual Civil, referida norma não trouxe consigo disposição intertemporal, pavimentando caminho para que, inobstante doutrina [3] a advogar favoravelmente à incidência imediata daquela modalidade prescrição a feitos em curso, decisões dos tribunais estabelecessem como marco inicial de sua contagem a mencionada alteração legislativa [4].

Esses exemplos que trazemos bem poderiam funcionar em favor da tese de que a prescrição intercorrente recém estabelecida em improbidade administrativa não poderia favorecer o réu retroativamente, não fosse o fato de que o tema mereceu tratamento distinto na seara criminal, mercê exatamente da especificidade desse ramo de que mais se aproxima o direito sancionador administrativo na vertente da improbidade.

Isso porque, diferentemente dos exemplos acima, a prescrição penal alcança não apenas a inércia do titular da ação penal, mas do próprio Judiciário, fulminando a pretensão punitiva do Estado em sua dupla faceta: a que a deduz e a que a acolhe a fim de fazer reproduzir seus efeitos. O racional está em que aquele que figure como réu em feito criminal não pode sofrer indefinidamente um escrutínio estatal, sob pena do prejuízo que o decurso dos anos produz sobre seu contraditório e sua ampla defesa e dos efeitos perniciosos sobre sua própria dignidade, eis que a incerteza subjacente à pendência de um juízo sobre sua culpa é em si suficiente a impactar escolhas de vida.

No que concerne particularmente à prescrição intercorrente em matéria criminal, está ela presente no artigo 110 do Código Penal e consiste em que não possa haver decorrido lapso de tempo superior ao previsto no artigo 109, isso levando-se em conta a pena fixada in concreto e os marcos interruptivos, previstos no artigo 117. Diga-se de passagem que, aparentemente, foi desta última regra que a nova redação dos incisos do artigo 23, § 4º, da Lei n. 8.429/1992 parece ter retirado sua inspiração.

Ao tempo da Lei n. 12.234/2010, debate surgiu sobre as mudanças operadas sobre a prescrição em matéria penal. Em que pese a modalidade intercorrente não haja sido atingida, a doutrina debruçou-se sobre as alterações incidente sobre a prescrição retroativa, afirmando em uníssono [5] que, prejudiciais ao réu, elas não retroagiriam, no que já permitiram concluir, contrario sensu, que o câmbio prescricional que fosse favorável alcançaria beneficamente situações já consolidadas no tempo. Essa percepção, sem embargo, é também corroborada por julgados diversos.

No AgRg no REsp nº 1.114.053, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça alcançou conclusão inusitada e interessante: lei nova ampliava, no geral, o prazo prescricional da pretensão punitiva penal, mas trazia termo inicial mais favorável ao réu, tendo a corte decidido por uma mescla entre os diplomas para manter o prazo anterior, reduzido, contado a partir do termo inicial, mais favorável ao réu.

Já na AC nº 10002105420208260480, seria o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a, especificamente sobre a prescrição intercorrente, admitir sua aplicação retroativa para alcançar processos em curso: "Se lei posterior mais benéfica prevê um prazo menor para a prescrição intercorrente da pretensão punitiva, esta norma deve ter aplicação plena mesmo para fatos anteriores ao início de vigência da norma".

Esses exemplos em matéria criminal, aliados ao recentíssimo (DJ de 26/8/2021) aresto proferido pelo STJ no AgInt no RMS 65.486, em que se admitiu a retroatividade de prazo prescricional mais benéfico em direito administrativo sancionador, apontam para uma maior proximidade entre a improbidade administrativa e o direito penal, tudo a convergir em favor da retroatividade também das novas normas alusivas à prescrição intercorrente.

Em suma, e a par das razões que no passado já nos permitiram sustentar a retroatividade das mudanças favoráveis ao réu em improbidade, temos que, também em relação à prescrição intercorrente, ainda não se vislumbram fundamentos sólidos aptos a ressalvá-la daquela conclusão.

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