O peso da tributação sobre o futuro de jovens aprendizes nas mãos do STJ
21 de março de 2025, 9h22
Em 18 de dezembro de 2024, o presidente da Comissão Gestora de Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) indicou alguns recursos especiais em que se discute a incidência de contribuição previdenciária e contribuições destinadas a terceiros sobre a bolsa de jovem aprendiz para serem afetados para julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos [1].

O Programa Menor Aprendiz, ou Jovem Aprendiz, é um instrumento de qualificação profissional para jovens e adolescentes. A ideia subjacente ao Programa Jovem Aprendiz não é recente e teve início com o Programa Bom Menino, disciplinado pelo Decreto nº 94.338/1987, que tinha como objetivo introduzir menores em situações de vulnerabilidade social ao ambiente profissional. A legislação referente ao programa considerava como jovens em situação de vulnerabilidade social aqueles que estivessem em ausência de condições essenciais à subsistência, saúde e instrução, aqueles com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária, ou jovens envolvidos na prática de ato que constituía infração penal.
Por meio do Programa Bom Menino, milhares de jovens foram retiradas das ruas, onde estavam sujeitos ao uso de drogas ilícitas e se iniciavam no crime. Em detrimento disso, passaram a ter perspectiva de um futuro com dignidade.
Do mesmo modo, o Programa Jovem Aprendiz, sucessor do Programa do Bom Menino, visa a estimular a contratação de menores, promovendo sua inserção no mercado de trabalho, em alinhamento com o caminho que foi delineado pela Constituição ao adotar o valor social do trabalho como fundamento da República (artigo 1º, IV, da CRFB/1988). Trata-se de política essencial diante da preocupante realidade do aliciamento de menores pelo crime organizado, que se aproveita da menoridade penal para recrutá-los, induzindo-os à prática criminosa sob a promessa de impunidade.
Jovem na criminalidade
Nesse sentido, dados da Fundação Casa, de 2025, revelam que os jovens recrutados para o tráfico correspondem a 42,11% daqueles que cometem atos infracionais no Estado de São Paulo. Do mesmo modo, dados levantados pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ) e divulgados pelo CNJ indicam que, em 2018, o número de jovens infratores superava a marca de 22 mil internados nas 461 unidades socioeducativas funcionando no país [2]. Pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz aponta que 66,3% dos adolescentes infratores internados na Fundação Casa são reincidentes [3]. Os dados são estarrecedores.
Além disso, estudo promovido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro realizado por Carla Leite aponta uma relação direta entre a escassez de oportunidades de trabalho formal para jovens de baixa renda e o ingresso de menores na criminalidade [4]. Conforme Fernando José da Costa [5], ex-secretário de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, a falta capacitação técnica e empregabilidade são uns dos fatores da reincidência desses jovens em atos infracionais.

Com o objetivo de inibir o aliciamento de jovens na prática de ilícitos, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.598/2022, [6] que transforma em crime hediondo a prática de recrutar crianças para o tráfico de drogas e entorpecentes. Nesse aspecto, a sabedoria popular segundo a qual “prevenir é melhor do que remediar” deve prevalecer. Sem prejuízo de punir ou prever medidas repressivas ou socioeducativas, tão ou mais importante são medidas preventivas que viabilizem a inserção de menores em situação de vulnerabilidade social no mercado de trabalho. É nesse contexto em que o Programa Jovem Aprendiz está inserido: na luta contra o aliciamento de jovens vulneráveis na criminalidade.
Por meio do programa, as empresas tornam-se corresponsáveis por assegurar uma formação técnico-profissional metódica, compatível com o desenvolvimento físico, moral e psicológico do aprendiz. Por sua vez, o aprendiz deve executar, com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação. De acordo com o artigo 428, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aos aprendizes é assegurada uma bolsa custeada pela empresa.
Proteção do Estado aos indivíduos
Uma das funções que, em regra, os Estados modernos possuem é a proteção social dos indivíduos em relação a eventos que lhes dificultem ou, até mesmo, impossibilitem a subsistência por conta própria por meio de seu trabalho. A Constituição de 1988 não foi diferente e dedicou um de seus capítulos à seguridade social, de modo a garantir a todos os brasileiros o direito à saúde, à previdência e à assistência social.
Toda a sociedade contribui para o custeio da seguridade social, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das seguintes contribuições sociais (artigo 195, da CRFB/1988).
As contribuições da seguridade social são gênero do qual as contribuições previdenciárias são as espécies. Essas últimas destinam-se ao custeio específico da previdência social e estão previstas no artigo 195, I, ‘a’; e II da Constituição. Embora sejam essenciais à manutenção da previdência social, a instituição e a cobrança de contribuições previdenciárias pela União estão sujeitas a um rígido controle de constitucionalidade em respeito ao Estado democrático de direito. Adota-se como parâmetro para esse controle o conceito constitucional de “rendimentos do trabalho” adotado pelo artigo 195, I, ‘a’, da Constituição, levando em consideração os reflexos do tema para a eficácia de importantes direitos fundamentais de índole social dos brasileiros.
Bolsa sujeita a contribuição previdenciária
Desprezando a relevância do caráter indutor do o artigo 4, § 4º, do Decreto-Lei nº 2.318/86, ao se utilizar o tributo como valioso instrumento de políticas públicas, indutor de condutas desejáveis senão socialmente necessárias, a Receita Federal entende que o valor da bolsa paga ao menor aprendiz está sujeito à incidência de contribuições previdenciárias. Contudo, esse entendimento não deve de todo prevalecer.
Em primeiro lugar, o contrato de aprendizagem possui natureza especial, de forma que não estão presentes as mesmas condições que envolvem a relação de emprego, assim como os pagamentos realizados aos aprendizes possuem natureza de ajuda de custo — bolsa — e não de salário ou remuneração. Recorde-se que as contribuições previdenciárias incidem sobre as remunerações pagas, devidas ou creditadas, durante o mês, destinadas a retribuir o trabalho (artigo 22, I, da Lei nº 8.212/1991).
Em segundo lugar, o artigo 4, § 4º, do Decreto-Lei nº 2.318/86 isenta o pagamento realizado a menores aprendizes da incidência de contribuições previdenciárias. O dispositivo legal exonerativo, ao contrário do que sustenta a Fazenda Nacional, não foi revogado pela Lei nº 10.097/2000, que cria o Programa Jovem Aprendiz ou por qualquer outra lei. Se compreende a não revogação do dispositivo justamente por se tratar de programa cujo objetivo é assegurar o direito à profissionalização de adolescentes e jovens, em perfeita harmonia com as normas constitucionais insculpidas nos artigo 7º, XXXIII, e artigo 227, caput, da Constituição.
O posicionamento do STF no Tema nº 1.294/RG, ao não reconhecer a existência de repercussão geral da matéria, concessa vênia, não nos parece ter sido o mais adequado, tampouco condizente com a sensibilidade e relevância da atuação do Supremo Tribunal Federal no âmbito social.
Atuação da iniciativa privada
A não incidência de contribuições previdenciárias sobre a bolsa paga ao jovem aprendiz tem como objetivo induzir comportamentos necessários, convocando a iniciativa privada para uma atuação conjunta ao Estado, viabilizando a concretização objetivos constitucionais como o valor social do trabalho enquanto fundamento da República (artigo 1º, IV), o direito social ao trabalho (artigo 6º), a busca pelo pleno emprego (artigo 170) e a proteção de jovens e adolescentes (7º, XXXIII, e artigo 227).
Ademais, a relevância da discussão é evidenciada pelos alarmantes índices de aliciamento de menores ao tráfico de drogas. Esses dados revelam uma verdadeira luta entre a sociedade e o crime organizado pelo endereçamento do futuro desses jovens, principalmente dos mais vulneráveis, que residem em comunidades carentes e são justamente o público-alvo dos programas, outrora do “Bom Menino” e hoje do “Jovem Aprendiz”.
Nesse contexto, tendo em vista que o dispositivo exonerativo existia até mesmo antes da Constituição de 1988, com muito maior razão deveria ser mantida, especialmente ao se considerar que, naquela época, não existiam os índices de recrutamento para ilicitude de menores que os estudos atuais infelizmente revelam. É inegável a triste realidade e a ameaça que paira sobre os menores em condição de vulnerabilidade, situação a qual o STF não deve fazer ouvidos moucos. Espera-se que, em uma outra oportunidade, quando a questão bater às portas da nossa Suprema Corte, ela ali seja recebida com a relevância e atenção merecida.
Dessa forma, esperamos que a sensibilidade aos direitos fundamentais sociais previstos no texto constitucional que esteve ausente no STF quando do julgamento do Tema nº 1.294/RG[7] se faça presente no Superior Tribunal de Justiça caso o tema venha a ser afetado ao rito dos repetitivos. Ademais, não se pode afirmar que a matéria, por ter de enfrentar direitos fundamentais previsto no texto constitucional, não se encontra no âmbito da competência jurisdicional atribuída ao STJ.
Contribuição de menores aprendizes
No caso agora em análise, há um dispositivo com estatura de lei ordinária fixando que os valores pagos aos menores não estão sujeitos a encargos previdenciários de qualquer natureza: o § 4º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 2.318/1986. A questão controvertida diz respeito a saber se esse dispositivo ainda está vigente e se ele se aplica ao caso dos menores aprendizes.
Ainda que seja cabível mais de uma interpretação, entendemos que deve ser privilegiada aquela que mais assegure a concretização de direitos fundamentais — entre os quais está o direito ao trabalho e proteção dos jovens e adolescentes. A interpretação conforme a constituição se caracteriza como um método hermenêutico que tem fundamento no princípio da supremacia da Constituição. Nas palavras de Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, isso faz com que “os direitos fundamentais influam sobre todo o ordenamento jurídico, servido de norte para a ação de todos os poderes constituídos” [8].
A interpretação conforme a constituição constitui modalidade de interpretação sistemática que deve ser utilizada por todos os tribunais e juízes. Não se trata, apenas, de técnica de controle de constitucionalidade. Mas de método hermenêutico. Desse modo, a solução que estamos propondo está abrangida pela competência da 1ª Seção do STJ.
Não se defende a adoção, sem limites, da interpretação conforme a constituição para que se crie um sentido que não decorra razoavelmente do texto legal. O que é objeto de crítica pela doutrina [9]. Contudo, o § 4º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 2.318/1986 nunca foi revogado, expressa ou tacitamente. A exoneração tributária ainda está vigente. Não se foge dos limites do texto. Ao contrário, sua literalidade é preservada e, para além disso e principalmente, prestigia-se eficácia irradiante dos direitos fundamentais.
[1] Os recursos especiais que podem ser afetados como representativos da controvérsia são: REsp n. 2.191.694/SP; REsp n. 2.191.505/PR; e REsp n. 2.191.479/SP.
[2] FARIELLO, Paula Andrade e Luiza. Há mais de 22 mil menores infratores internados no Brasil. 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/ha-mais-de-22-mil-menores-infratores-internados-no-brasil/>. Acesso em: 07 mar. 2025.
[3] ARCOVERDE, Leo. Reincidência de adolescentes infratores detidos em SP é de 66,3%, aponta pesquisa. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/google/amp/sp/sao-paulo/noticia/2018/08/15/reincidencia-de-adolescentes-infratores-detidos-em-sp-e-de-663-aponta-pesquisa.ghtml>. Acesso em: 07 mar. 2025.
[4] LEITE, Carla Carvalho. Caminho de Morte: um estudo sobre o ingresso de adolescentes no tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 27, jan./mar. 2008.
[5] BARROS, Lorena. Saiba como o tráfico de drogas atrai os jovens e o que pode ser feito para salvá-los do ‘pior trabalho infantil’. 2021. Disponível em: <https://jovempan.com.br/noticias/brasil/metade-dos-menores-detidos-em-sp-cometeram-trafico-motivos-vao-da-vulnerabilidade-a-vontade-de-consumo.html?amp>. Acesso em: 07 mar. 2025.
[6] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1.598/2022.
[7] BRASIL. STF. RE n. 1.468.898/RS. Tribunal Pleno. Rel.: Min. Presidente Luís Roberto Barroso. Julgado em: 15/03/2024. Publicado em 21/03/2024.
[8] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo, Saraiva, 2020. e-book.
[9] ANDRADE, André Gustavo C. de. Dimensões da Interpretação Conforme a Constituição. Revista da Emerj, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 100-120, jan. 2003.
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