Situação previdenciária do trabalhador menor: termo inicial da contagem de tempo
26 de outubro de 2023, 16h23
A legislação constitucional do trabalho estabeleceu idade mínima para ingresso no mercado formal de trabalho, eis que o inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição da República [1] proibiu o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos.
Não fosse a própria CR ter assegurado a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, estariam excluídos do exercício de qualquer tipo de trabalho os menores de 14 anos.
No entanto, em tributo a outras garantias individuais, também previstas em normal de maior envergadura, é possível que o menor de 14 anos, a despeito da limitação etária imposta, exerça atividade profissional, inclusive remunerada, desde que, para isso, receba autorização judicial específica (considerada por alguns autores, dentre os quais estamos incluídos, um apriorismo rigoroso da legislação e da jurisprudência, considerada a moldura social atual).
Sob o contexto previdenciário, o exercício de atividade remunerada enseja a filiação ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Todavia, a Lei nº 8.213/91 definiu uma idade mínima para filiação, que, aliás, divergiu daquela prevista no Decreto nº 3.048/99 – que regulamenta a Previdência Social e dá outras providências –, na medida em que naquela legislação, a idade mínima para filiação é de 14 anos, e, portanto, em consonância com a legislação do trabalho que estabeleceu a mesma idade para os aprendizes, enquanto no decreto ficou assentada a idade mínima de 16 anos para filiação ao RGPS.
Nesse horizonte de ideias, as crianças e adolescentes com idades inferiores a 14 (quatorze) anos, que exerçam atividade remunerada, especialmente os artistas infanto-juvenis, podem ser enquadrados como segurados do RGPS e ter contado o tempo de atividade para fins previdenciários?
Preso a uma interpretação literal da legislação, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no âmbito administrativo, indefere a filiação e a contagem de tempo para fruição de benefícios previdenciários dos menores de 14 (quatorze) anos.
Ocorre, porém, que a filiação "é o vínculo jurídico que se estabelece entre o segurado e o RGPS. Decorre automaticamente da atividade remunerada, ou seja, no momento em que uma pessoa inicia o exercício de alguma atividade remunerada, ipso facto, estará filiada à previdência social (ver arts. 5º e 9º, §12º do RPS)" (IBRAHIM, 2010, p. 172) [2].
Isso implica concluir que mesmo o trabalhador menor desconhecendo a situação ou sendo contrário a ela, ainda assim será considerado filiado ao regime previdenciário geral.
A conclusão adotada pelo INSS solapa os direitos individuais dos menores, eis que além de alguns deles serem obrigados pelo contexto social a trabalhar precocemente, a negativa da filiação e de contagem desse tempo para fins de fruição de benefícios previdenciários configuraria uma dupla violação de direitos.
De mais a mais, defender que alguns jovens são obrigados pelo contexto social a trabalhar é estar atento à realidade social brasileira, que nos recorda os versos do poeta na canção Menino das Laranjas, composta por Théo Barros, na interpretação majestosa e potente de Elis Regina, e que, infelizmente, ainda é atual, apesar de já ter passado mais de meio século de sua composição. Veja-se [3]:
"Lá, no morro, a gente acorda cedo e é só trabalhar, e comida é pouca e muita roupa que a cidade manda pra lavar. De madrugada, ele, menino, acorda cedo tentando encontrar, um pouco pra poder viver até crescer e a vida melhorar."
Os versos da canção de Barros continuam, repita-se, mais vivos do que nunca, a denunciar um Brasil desigual, cuja promessa de erradicação do trabalho infantil parecer mais um sonho utópico.
Pois bem!
Do ponto de vista do trabalho artístico infantil ou sob o prisma do trabalho infantil proibido (aquele que se exerce à semelhança da canção), não se pode negar a filiação do menor ao RGPS, sob pena de puni-lo duplamente, especialmente se diante do trabalho infantil proibido, como ocorre na agricultura, por exemplo, em que se vai muito cedo à lavoura para ajudar no trabalho da família, e o INSS insistem em não reconhecer o período de trabalho efetivamente exercido antes da idade mínima de filiação na concessão de benefício previdenciário.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já teve oportunidade de analisar casos semelhantes, um dos quais, da fina lavra do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 956.558 de São Paulo, parece se amoldar, em tudo e por tudo, ao entendimento ora defendido, considerando que, também lá, foi reconhecido o direito do segurado na contagem de tempo de trabalho exercido antes dos 12 anos de idade. É o que se observa do aresto, o qual restou assim ementado [4]:
"PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. TRABALHADOR URBANO. CÔMPUTO DO TRABALHO RURAL ANTERIOR À LEI 8.213/1991 SEM O RECOLHIMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES. POSSIBILIDADE DE CÔMPUTO DO TRABALHO RURAL ANTERIOR AOS 12 ANOS DE IDADE. INDISPENSABILIDADE DA MAIS AMPLA PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES. POSSIBILIDADE DE SER COMPUTADO PERÍODO DE TRABALHO PRESTADO PELO MENOR, ANTES DE ATINGIR A IDADE MÍNIMA PARA INGRESSO NO MERCADO DE TRABALHO. EXCEPCIONAL PREVALÊNCIA DA REALIDADE FACTUAL DIANTE DE REGRAS POSITIVADAS PROIBITIVAS DO TRABALHO DO INFANTE. ENTENDIMENTO ALINHADO À ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL DA TNU. ATIVIDADE CAMPESINA DEVIDAMENTE COMPROVADA. AGRAVO INTERNO DO SEGURADO PROVIDO."
Destarte, de se concluir que a limitação de idade estabelecida na legislação tem como escopo a proteção da criança e do adolescente, a fim de evitar a exploração do trabalho infantil, não se podendo utilizar tal previsão para prejudicá-los ainda mais. Nesse aspecto, os trabalhadores menores de 14 anos, aí inseridos os artistas mirins, possuem o direito de gozar dos benefícios previdenciários e são considerados filiados do regime previdenciários e segurados para todos os fins de direito.
[1] Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em out de 2023.
[2] IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário. Niterói, RJ: Editora Impetus, 2010.
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