Conselho Tutelar e as prerrogativas da advocacia
14 de maio de 2025, 11h22
A atuação do Conselho Tutelar, embora essencial à garantia dos direitos da criança e do adolescente, tem gerado, em determinadas situações, controvérsias no que se refere aos limites de sua atuação, especialmente quando confrontada com as prerrogativas profissionais de advogados e advogadas. No contexto específico da advocacia, têm-se multiplicado relatos de defensores que enfrentam dificuldades práticas decorrentes de condutas adotadas por membros do referido órgão, levantando questionamentos quanto à legalidade e adequação desses procedimentos, à luz das prerrogativas profissionais.

Diante desse cenário, justifica-se a elaboração do presente artigo, que tem por objetivo analisar, sob a ótica técnica e jurídica, os contornos institucionais e funcionais do Conselho Tutelar, confrontando-os com os direitos e garantias profissionais da advocacia, a fim de esclarecer eventuais dúvidas e contribuir para a harmonização da atuação entre os diferentes atores envolvidos na proteção integral de crianças e adolescentes. Tal como ocorre com outros direitos e garantias fundamentais, as prerrogativas da advocacia naturalmente não se revestem de caráter absoluto, exigindo, portanto, uma interpretação que observe os preceitos constitucionais consagrados nos artigos 5º, inciso XIV [1], 133 [2] e 227 [3] da Constituição.
Buscam-se respostas para as seguintes questões: o Conselho Tutelar tem o dever de fornecer acesso aos elementos colhidos nos procedimentos que instaura? Em caso positivo, isso comprometeria a proteção integral da criança e do adolescente? Cabe ao Conselho Tutelar atender imediatamente o defensor munido de procuração e informá-lo previamente? O acesso a esses elementos depende exclusivamente de decisão judicial? O Conselho Tutelar deve apresentar justificativa documentada em caso de negativa de acesso? Quais procedimentos são considerados sigilosos?
Visa-se à adoção de medidas que assegurem não apenas a proteção das prerrogativas profissionais da advocacia, mas também o cumprimento dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, bem como a efetivação da transparência nos atos administrativos realizados no âmbito do Conselho Tutelar, em estrita conformidade com a Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação).
Princípio da ampla defesa
De início, a garantia de acesso pleno aos autos é prerrogativa profissional de maior importância para assegurar o princípio constitucional da ampla defesa. Do mesmo modo, o livre acesso do defensor aos órgãos públicos garante a lisura e efetividade do seu papel na defesa dos interesses de seus clientes. Ao mesmo tempo, trata-se também de um direito assegurado à criança e ao adolescente — enquanto sujeitos de direitos —, bem como a seus tutores terem acesso aos elementos colhidos em qualquer procedimento documentado pelo Conselho Tutelar, para que, em sendo o caso da ocorrência de quaisquer abusos ou divergências com os preceitos legais, o defensor possa atuar em favor da pessoa assistida. E mais ainda: é direito de qualquer interessado ter conhecimento sobre o teor de procedimento que lhe diga respeito.
O advogado, além de indispensável à administração da Justiça, figura como resistência para coibir arbitrariedades cometidas pelo Estado e, também, tem a função de conduzir os seus constituintes à adoção das medidas legais que forem mais convenientes frente ao caso concreto, independentemente da providência que venha a ser adotada.
Nesse contexto, é inegável que existem diligências que devem ser sigilosas, sob o risco de comprometimento do sucesso das investigações. No entanto, a formalização documental do que já foi realizado deve estar acessível à pessoa interessada e a seu defensor, a fim de que seja garantido o direito de defesa. Assim, ainda que o Conselho Tutelar seja órgão autônomo e sem subordinação, não detém poder de polícia e nem de promover investigação preliminar, muito embora o teor de suas diligências seja de fato utilizado para embasar processos no Poder Judiciário, nas mais variadas esferas do direito.

É precisamente nesse ponto que se revela uma das principais dificuldades práticas, uma vez que os procedimentos instaurados pelo Conselho Tutelar frequentemente fundamentam a propositura de ações no Poder Judiciário. Por esse motivo, ainda que envolvam menores de idade, tais procedimentos devem ser acessíveis aos advogados, nos mesmos moldes previstos para os processos judiciais — ou seja, mediante requerimento formal devidamente acompanhado de procuração, como prevê a legislação (artigo 7º, XIV, § 10, da Lei 8.916/94) [4].
Sigilo aplicável quando for imprescindível
O sigilo deve se constituir exceção e não a regra, haja vista que tanto a doutrina quanto a jurisprudência entendem ser aplicável apenas quando que for realmente imprescindível e não como mecanismo genérico para dificultar o exercício da defesa. Por esse motivo, o Estatuto da Advocacia e a OAB (Lei nº 8.906/94) assegura a advogado, dentre outros direitos, o livre exercício profissional, o acesso irrestrito a repartições públicas e o exame de autos de processos e investigações, mesmo sem procuração, salvo em casos de sigilo legal.
Da mesma forma, a Súmula Vinculante 14, do Supremo Tribunal Federal conta com a seguinte redação e reforça o acesso aos autos pela defesa técnica: “é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Função do ECA
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90 — ECA) tem como finalidade principal assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes, reconhecendo-os como sujeitos de direitos e garantindo seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
O texto legal define o Conselho Tutelar como órgão permanente, autônomo e sem subordinação hierárquica, incumbido de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Suas principais atribuições estão previstas nos artigos 131 e 136 do ECA. No entanto, não há menção expressa sobre o acesso a seus documentos ou sobre o papel do advogado como representante das partes em eventuais conflitos.
Na mencionada lei, o único dispositivo que trata de sigilo imposto a documentos pode ser encontrado no artigo 144, o qual afirma que “a expedição de cópia ou certidão de atos a que se refere o artigo anterior somente será deferida pela autoridade judiciária competente, se demonstrado o interesse e justificada a finalidade”.
A referência mencionada se aplica exclusivamente a atos judiciais, policiais e administrativos relacionados a crianças e adolescentes aos quais se atribua a autoria de ato infracional. Ou seja, não há imposição de sigilo — por norma federal — que se estenda, além do advogado, aos demais procedimentos que tramitam perante o Conselho Tutelar. Diante disso, mais uma vez, constata-se que não há qualquer proibição expressa quanto à concessão de acesso, por parte dos defensores, aos documentos elaborados por esse órgão.
Instituição do Conanda
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) foi instituído com o objetivo de estabelecer diretrizes para a formulação de políticas públicas voltadas à infância e adolescência. Apesar de possuir normativas relacionadas ao funcionamento do Conselho Tutelar, também não há regramento expresso que vede o acesso de advogados aos procedimentos registrados pelo órgão.
Como exemplo — e, inclusive, por se tratar de um dos fatores que motivaram a elaboração deste trabalho —, cita-se a Lei Municipal nº 13.545/2022, editada pela cidade de Londrina (PR), que estabelece a estrutura e disciplina o funcionamento do Conselho Tutelar, reforçando sua função como órgão colegiado permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, cujos Conselheiros submetem-se ao regime de dedicação integral e exclusiva, estruturado nos termos da referida legislação (artigo 5º).
Da mesma forma, deve-se destacar o artigo 23 que prevê as atribuições dos Conselheiros Tutelares:
O art. 23 dispõe que são atribuições dos Conselheiros Tutelares:
II – garantir a proteção integral e prioritária dos direitos da criança e do adolescente;
IV – garantir o respeito à intimidade e à imagem da criança e do adolescente;
Parágrafo único. No registro do caso deverão constar o relato do atendimento e as providências tomadas, tratando-se de documento sigiloso, ao qual terão acesso o Ministério Público, a delegacia especializada e a autoridade judiciária ou a quem por ela for autorizado.
Também consta do artigo 32 da legislação municipal que são deveres do Conselheiro Tutelar: “III- atender com presteza ao público, prestando as informações requeridas, ressalvadas as protegidas por sigilo”. Especificamente com relação ao acesso dos defensores aos procedimentos já documentados, a normativa é silente, sendo possível presumir, a partir da leitura do parágrafo único do art. 23, que ao advogado não poderia ser dado o acesso aos documentos produzidos pelo Conselho Tutelar
Ao considerar que é prerrogativa do advogado examinar, em qualquer órgão da administração pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, quando não estiverem sujeitos ao sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, cumpre questionar o que seria considerado sigiloso ou não.
A única normativa que indica o que seria considerado sigiloso é a municipal, porém, como consignado, não se opõe expressamente a respeito de requerimento de acesso por meio de advogado. Infere-se, portanto, que tanto a normativa federal quanto municipal não trata especificamente da concessão de acesso ao advogado acerca dos procedimentos que tramitam perante o Conselho Tutelar, tornando necessária uma melhor regulamentação e orientação nos casos em que houver pedido administrativo de acesso.
Noutro giro, não se pode olvidar da hierarquia das normas. A Constituição, enquanto norma fundamental do ordenamento jurídico, serve de parâmetro para a validade das demais normas, na medida em que assegura o direito de acesso à Justiça e o acesso à informação.
Deveres e prerrogativas do advogado
A Lei nº 8.906/94 tem status de lei ordinária federal e regulamenta a profissão do advogado, estabelecendo direitos, deveres e prerrogativas. Como norma geral, deve ser respeitada por normas infralegais e locais. Por consequência, as normas municipais encontram-se em posição inferior às leis federais e à Constituição, assim como eventuais decretos e resoluções elaborados por órgãos públicos. Com efeito, um município não pode editar normas que restrinjam direitos assegurados pelo Estatuto da Advocacia ou que contrariem princípios constitucionais. Identificado o conflito, deve-se buscar uma interpretação que harmonize a norma municipal com as normas superiores, ou, caso isso não seja possível, reconhecer sua inconstitucionalidade.
Sem embargo, o artigo 32 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19) prevê norma que visa assegurar o acesso aos autos pelos advogados:
Art. 32. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
A partir da análise conjunta de todas as normativas aplicáveis à situação apresentada, e considerando a fundamentação exposta, é possível concluir, em resposta aos questionamentos iniciais, o seguinte:
i) Em caso de diligências pendentes ou possibilidade de frustrar o procedimento, cabe ao próprio órgão identificar aquilo que pode ser objeto de concessão de acesso. Na sequência, deve disponibilizar à defesa técnica aquilo que foi previamente documentado, na medida em que qualquer negativa deve ser precedida de motivação, por escrito, a fim de que se verifique posterior abuso de autoridade, nos termos da Lei n. 13.869/19;
ii) Independentemente de ser conferido ou não acesso aos elementos angariados em seus procedimentos, é direito do advogado ser atendido, inexistindo qualquer normativa que ultrapasse tal entendimento ou gere interpretação dúbia a esse respeito, nos termos do art. 7º, inciso VI, alínea c;
iii) A via judicial não deve figurar como requisito obrigatório para obtenção de documentos, mas deve ser acionada apenas quando se tratar de situação excepcionalíssima, sob pena de obstar a celeridade processual;
iv) De forma subsidiária, caso haja negativa, com o intuito de garantir de forma mínima o acesso à informação que é devido, deve o órgão, no mínimo, informar por escrito ao defensor o número do procedimento e quais foram as medidas legais adotadas na situação, bem como as razões motivadas da recusa no fornecimento de cópia do procedimento, para que assim o advogado possa requerer judicialmente e de forma segura o que entende de direito;
v) Nos termos do art. 7º, inciso XIV, § 11º, do Estatuto da Advocacia, entende-se que cabe à autoridade competente delimitar o acesso do advogado apenas aos elementos de prova que estejam com diligências em andamento e ainda não foram documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.
Portanto, a recusa dos Conselhos Tutelares em permitir o acesso aos procedimentos previamente instaurados, mesmo quando solicitado por advogados regularmente constituídos, configura evidente afronta às prerrogativas profissionais da advocacia. Tal conduta contraria o disposto no Estatuto da Advocacia, que assegura ao defensor, devidamente munido de procuração, o direito de acessar informações e documentos necessários ao pleno exercício da defesa, sobretudo quando tais elementos possam subsidiar a atuação judicial ou extrajudicial em favor de seus constituintes.
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
[2] Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
[3] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[4] Art. 7º São direitos do advogado: (…) XIV – examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital; (…) § 10. Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV.
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