Licitações e Contratos

Mudanças necessárias na cláusula de retomada do seguro garantia

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  • é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

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5 de maio de 2025, 10h23

O advento da cláusula de retomada no seguro garantia, nos artigos 99 e 102 da Lei nº 14.133/21, marcou um avanço significativo no arcabouço jurídico brasileiro de contratações públicas de obras.

Spacca

Inspirada no modelo norte-americano de performance bond e takeover agreements, nos termos do conjunto formado pelas disposições da lei conhecida como Miller Act, de 1935 (40 U.S.C. §§ 3131-3134), e pelo Federal Acquisition Regulation (FAR 28.102-1 e FAR 49.404), a cláusula de retomada busca garantir a continuidade de obras públicas em caso de inadimplemento do contratado, permitindo que a seguradora assuma a execução ou indenize a Administração Pública.

Contudo, a implementação brasileira, marcada pela facultatividade da garantia e por limitações normativas e lacunas de regulamentação, revela fragilidades que indicam riscos à sua eficácia, especialmente quando confrontada com o robusto sistema americano, de décadas de aplicação.

Dados alarmantes do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgados no painel “Acompanhamento de Obras Paralisadas”, até o final de 2024, indicavam que cerca de 50% das obras com recursos federais no Brasil registravam paralisações, impactando setores críticos como saúde, educação e mobilidade urbana.

O cenário reforça a urgência de reformas na Lei nº 14.133/2021 e na sua regulamentação pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), notadamente da Circular nº 662/2022, para alinhar o seguro garantia brasileiro a padrões internacionais de eficiência e proteção do interesse público.

É preciso analisar os riscos do modelo brasileiro que estão com potenciais de problemas esperados para médio e longo prazo, e notar a necessidade da obrigatoriedade da cláusula de retomada (não mais facultativa) e ajustes que incorporem, de forma clara, o equivalente do payment bond, além de mecanismos preventivos mais taxativos, impositivos, do que se conhece como step-in, reflexões relevantes de caminhos para a redução do índice de obras paralisadas.

Modelo norte-americano de sucesso há décadas

Nos Estados Unidos, o índice irrisório de obras paralisadas, com “termination for default”, que em vários órgãos está inferior a 1%, deve-se ao modelo composto pelo Miller Act (40 U.S.C. §§ 3131-3134) e o FAR (FAR 28.102-1 e FAR 49.404), que formam o sistema dual de garantias para obras públicas federais, com limite fixado para obrigatoriedade, valendo registrar que no Miller Act seria para obras e construções acima de US$ 100 mil, mas atualizado pelo FAR para o patamar acima de US$ 150 mil.

Esse sistema tem as seguintes bases:

Performance Bond (que é formalizado no formulário Standard Form 25 – SF-25) – Garante a execução integral do contrato, incluindo a conclusão da obra conforme os termos acordados, sendo que, em caso de inadimplemento, a seguradora (surety), pode completar a obra, contratar terceiros ou indenizar o ente de governo em até 100% do valor original do contrato;

Payment Bond (que é formalizado no formulário Standard Form 25A – SF-25A) – Protege subcontratados, fornecedores e trabalhadores, assegurando o pagamento por materiais e serviços fornecidos, sendo que o valor dessa garantia é igual ao do performance bond, ou seja, 100% do contrato, permitindo que terceiros acionem diretamente a seguradora em busca de pagamentos não recebidos.

Step-in e Takeover Agreement – O primeiro mecanismo é aquele no qual a seguradora intervém antes do inadimplemento formal, fornecendo suporte financeiro ou técnico ao contratado para evitar a rescisão (termination for default), sendo que essa intervenção precoce reduz paralisações, enquanto, após a rescisão por inadimplemento, a seguradora entra no momento de fazer o takeover agreement, que vai formalizar as bases para a conclusão da obra.

Esse sistema validado por várias décadas criou um ambiente de segurança jurídica e eficiência que o Brasil ainda não alcançou.

Avanços e fragilidades do modelo brasileiro

A Lei nº 14.133/2021 introduziu o seguro garantia com cláusula de retomada como uma opção para contratos de obras e serviços de engenharia de grande vulto (de patamar atualizado pelo Decreto nº 12.343/2024 como aqueles acima de R$ 250,9 milhões).

Os artigos 99 e 102 da atual Lei de Licitações e Contratos permitem que a seguradora, em caso de inadimplemento, opte por:

– pagar uma indenização até o limite máximo de garantia de 30%; ou
– prosseguir com a obra via contrato de retomada, para a sua conclusão.

Inobstante, a Lei nº 14.133/2021 não detalhou a matéria, sendo que a Circular Susep nº 662/2022, que regulamenta aspectos do seguro garantia:

– em seu artigo 21, menciona o que se conhece como a chamada cláusula de retomada, mas deixa lacunas para ajustes em acordos entre as partes, o que abre margem a editais de licitação com diferentes características; e
– em seu artigo 29, indica para a seguradora termos ligados a acompanhamento, monitoramento, mediação de conflitos entre segurado e tomador, além de apoio e assistência ao tomador, ideias que lembram as características do preventivo step in norte-americano, mas deixa essas questões na facultatividade.

De outro lado, a facultatividade da cláusula de retomada, como se tem no artigo 99 da Lei nº 14.133/2021, com o termo “poderá”, torna a regra precária. A discricionariedade contraria os princípios da eficiência, do artigo 37, e da economicidade, do artigo 70, ambos da Constituição, além dos princípios da indisponibilidade do interesse público e da segurança jurídica, do artigo 5º da Lei nº 14.133/21, pois está havendo permissão para que os entes estatais tratem obras similares com diferentes cautelas, em síntese, com uma margem a deixar parte delas sem proteção mais eficaz contra paralisações e com insegurança, inclusive, para responsabilizações, sobre uma apuração a respeito de ter ou não havido a análise e a decisão prévia por se adotar a cláusula de retomada e as consequências práticas da decisão, ação ou omissão.

O limite elevado para aplicação também é um problema. A exigência do seguro-garantia com cláusula de retomada, no texto da lei federal, é restrita a obras de grande vulto (atualmente, em R$ 250,9 milhões), patamar muito superior aos US$ 150.000 do sistema norte-americano. Mas essa situação de desacerto da lei federal já foi percebida e estados brasileiros começam a baixar os seus patamares, localmente, para as obras superiores a R$ 50 milhões, o que é louvável, mas ainda elevado, desconsiderando obras de médio porte que também impactam muito o interesse público.

A ausência de equivalente à garantia conhecida como payment bond também é preocupante. Diferentemente do modelo norte-americano, o seguro garantia brasileiro foca na Administração Pública (segurado), sem proteção para subcontratados, fornecedores ou trabalhadores, além do que, editais que estão sendo verificados no Brasil estão com muitas exclusões, como trabalhistas, tributárias, previdenciárias, comerciais e outras, ou seja, muita coisa vai “aberta”, o que tende a deixar terceiros desprotegidos, aumentando o risco de litígios que podem terminar paralisando as obras mesmo pelo curso de eventual contrato de retomada (por exemplo, em cenário de eventuais ordens judiciais que determinem bloqueios de recursos orçamentários do contrato de retomada).

Limitação percentual da garantia muito baixa é outro fator de ineficácia de resultados. Cabe lembrar que enquanto o performance bond norte-americano cobre 100% do valor do contrato da obra, no artigo 99 da Lei nº 14.133/21 a garantia com cobertura é de “até 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato”, o que, para muitas obras, é irreal para a conclusão, seja por eventuais sobrecustos decorrentes de paralisações, por deterioração ou mudanças de custos por diversas variáveis, enfim, com potencial de que se torne mais simples para a seguradora pagar o valor dessa garantia do que se comprometer com a conclusão da obra, um aspecto preocupante para cenário de médio e longo prazo da aplicação das regras da “nova lei”. Uma tendência a obras ainda paradas, caso os limitadíssimos 30% não sejam suficientes, o que se sabe que vai acontecer em muitos dos contratos.

Distanciamento do modelo original e propostas de reforma

Para alinhar o seguro garantia brasileiro aos padrões internacionais e enfrentar o desafio das obras paralisadas, são necessárias reformas urgentes, tornando obrigatória a cláusula de retomada, substituindo o termo “poderá”, do artigo 99 da Lei nº 14.133/21, por “deverá”, e isso para obras e serviços de engenharia de patamares mais baixos. Lembre-se que existem estados brasileiros que reduziram isso para R$ 50 milhões, um avanço pela eficiência e economicidade.

Deve-se, ainda, tornar mais claro e impositivo o regime preventivo, ainda incompleto no artigo 102 da Lei nº 14.133/21 e discricionário no artigo 29 da Circular Susep 662/2022.

De outro lado, criar uma clara normatização de um equivalente do norte-americano payment bond, para mitigar os riscos de litígios de percurso por fornecedores de materiais e serviços e pessoal, que podem levar a prejuízos na conclusão da obra.

Por fim, para efetividade de resultados, deve-se pensar além do alcance e afastar o “medo” de “ônus” da garantia (pensar que a garantia apenas levaria restrições de competidores e elevação dos valores das obras) e considerar o “custo-benefício” final, no longo prazo, do resultado, para isso, aumentando-se o chamado Limite Máximo de Garantia (LMG) para 100% do valor do contrato, longe dos atuais 30%, de forma realista para o objetivo final de ter entrega verdadeira da obra terminada.

Conclusão

A experiência estrangeira de décadas de sucesso em seus resultados precisa ser mais considerada e paradigmas precisam ser quebrados, porque a Lei nº 14.133/2021 e as regulamentações sobre o seguro garantia ainda deixam margem a resultados com ineficácia e ineficiência e não conclusão de obras, sendo importante uma taxatividade normativa mais apurada nesse cenário, com menor espaço para atos com discricionariedade, que tendem a deixar, ainda, obras inacabadas.

Autores

  • é advogado, sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia, ex-assessor da Presidência da República, especialista em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e autor de cinco livros, incluindo "Licitação Pública Internacional no Brasil".

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