Fiança e seguro garantia em ambiente tributário: o Tema 1.263 do STJ
1 de setembro de 2024, 8h00
Em outras oportunidades [1], discorremos sobre questões atuais ligadas à fiança bancária e ao seguro garantia em ambiente tributário, especificamente diante da inovação legislativa que proibiu a chamada “liquidação antecipada” destas modalidades de garantia para o cumprimento da obrigação tributária. O foco, agora, é o Tema 1.263 do Superior Tribunal de Justiça [2], que aborda a questão em torno da manutenção ou não do nome do contribuinte no Cadin e do protesto lançado em seu desfavor, quando presente esse tipo de garantia.
A decisão de afetação [3] faz referência à jurisprudência consolidada no STJ, segundo a qual o seguro garantia ou a fiança bancária não suspendem a exigibilidade do crédito tributário, compreendendo tão somente modalidades de garantia da dívida que viabiliza a expedição de Certidão Positiva com Efeitos de Negativa (CPEN). A jurisprudência citada na decisão de afetação aponta que tais garantias não possuem o mesmo efeito que o depósito em dinheiro.
Questão de interpretação
Com o devido respeito, a resolução desse conflito não depende do reconhecimento de gerar, tais garantias fidejussórias, suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Acreditamos que esse efeito se faz sim presente [4], com a calibração do artigo 151, II, CTN [5] pelo artigo 835, § 2º, CPC [6] (tudo indica que essa celeuma será encerrada com a reforma do processo tributário em trâmite no Congresso – ao menos, o PLP 124, já aprovado na Câmara, insere o inciso X no artigo 151 do CTN [7], explicitando a presença desse efeito quando existente aquele tido de garantia pessoal). Mas, repita-se, a solução do problema posto no Tema 1.263/STJ independe desta conclusão.
A resolução desta questão, em nosso sentir, decorre, exclusivamente, de uma interpretação sistemática e finalística do artigo 206, do CTN [8].
Ora, ninguém dúvida de que há, em referido dispositivo, duas hipóteses que trazem regularidade fiscal ao contribuinte, mesmo na presença de débitos tributários: [1] se eles estiverem com sua exigibilidade suspensa; ou [2] se estiverem integralmente garantidos.
A expressão “regularidade fiscal”
Tanto é assim que a jurisprudência do próprio STJ reconheceu o cabimento da ação cautelar de antecipação de garantia para que o contribuinte, quando seus débitos não estivessem com exigibilidade suspensa, fizesse jus àquela regularidade fiscal mediante a consumação de uma garantia prévia (de qualquer modalidade, frise-se: depósito, imóvel, fiança bancária etc.) [9].
Assim, a pergunta que deve ser feita para solver a questão é: qual o alcance da expressão “regularidade fiscal”? Se limita a expedição de Certidão Positiva com Efeitos de Negativa (CPEN), ou também afasta outras espécies de cobrança indireta (protesto, Cadin, etc.) posteriormente inseridas em nosso sistema tributário?
A resposta, não temos dúvida, se amolda à segunda possibilidade aventada! Ou seja, a garantia consumada tem o condão de apartar a inclusão do nome do contribuinte no Cadin e o protesto. Vejamos.
Quando da positivação do Código Tributário Nacional, em 1966, a regularidade fiscal era medida, exclusivamente, com aquela certidão (negativa – artigo 205, CTN [10]; ou com os efeitos de negativa – artigo 206, CTN). Na ausência dela, o contribuinte sofria, e ainda sofre, limitações em sua atuação, tais como: não pode contratar com o poder público; não faz jus a benefícios fiscais; não pode ter recuperação judicial deferida em seu favor; dentre outras.
Evidente que essas limitações impostas ao devedor tributário o estimulam a buscar a regularidade e, por isso, funcionam, claramente, como uma cobrança indireta do crédito tributário. Indireta, porque ainda depende de um ato de vontade por parte do contribuinte (mesmo com as limitações que lhe são impostas, pode optar por não pagar) [11] [12].
Cobranças indiretas
Ocorre que desde a edição do CTN (há quase 60 anos) tivemos um significativo incremento das chamadas cobranças indiretas, não mais limitada ao bloqueio da expedição da certidão de regularidade fiscal, integrando-se ao sistema, dentre outras, o protesto da Certidão de Dívida Ativa (CDA) e a inscrição do nome do contribuinte em um cadastro de “maus pagadores”, denominado Cadin.
Esse novo cenário exige, portanto, que o artigo 206 do CTN seja interpretado de forma teleológica e sistemática para alcançar estas outras espécies de cobrança indireta que não existiam quando da edição do CTN (em 1966).
Em âmbito federal essa construção interpretativa já foi materializada, seja pelo legislador ordinário em relação ao Cadin, seja pela própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) em relação a quaisquer cobranças indiretas (inclusive a que especificamente nos interessa, o protesto).
O artigo 7º da Lei 10.522/2002 [13] determina a suspensão do registro no Cadin quando houver garantia prestada em ambiente conflituoso (antiexacional [14]). Mas o mais relevante é a redação do parágrafo único do artigo 8º da Portaria PGFN 33/2018 [15], que impede a adoção das cobranças indiretas listadas no artigo 7º da mesma portaria [16] quando o contribuinte presta garantia.
Ora, o comando normativo, de superior hierarquia, que serve de fundamento de validade dessas outras regras (legais e infralegais), não temos dúvida, é o artigo 206 do CTN. Essa construção normativa foi promovida em âmbito federal, mas o conflito permanece junto aos demais entes tributantes, a ensejar a resolução do problema posto no Tema 1.263/STJ pelo mesmo prisma.
Conclusão
Em suma, fiança bancária e seguro garantia, assim como quaisquer outras espécies de garantia que seja integral e suficiente ao cumprimento de uma obrigação tributária, dão ao contribuinte, de forma inconteste, o direito à certidão que atesta a sua regularidade fiscal. Por conseguinte, estas outras modalidades de cobrança indireta (protesto e Cadin) devem ter seus efeitos eliminados, já que incompatíveis com um contribuinte que ostenta documento oficial que lhe confere regularidade fiscal (interpretação finalística e sistemática do artigo 206, CTN).
O problema posto no Tema 1.263/STJ, portanto, não guarda relação com o instituto da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, mas sim com a correta interpretação do artigo 206, CTN, inclusive, já adequadamente existente em nosso ordenamento em âmbito federal.
[1] https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/fianca-bancaria-e-seguro-garantia-na-execucao-fiscal/; e https://www.conjur.com.br/2024-mar-10/fianca-bancaria-e-seguro-garantia-na-execucao-fiscal-parte-2/.
[2] Tema 1263/STJ: “Definir se a oferta de seguro garantia tem o efeito de obstar o encaminhamento do título a protesto e a inscrição do débito tributário no Cadastro Informativo de Créditos não quitados do Setor Público Federal (CADIN).”
[3]https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202302918844&dt_publicacao=10/06/2024.
[4] Nesse sentido ver: CASTRO, Danilo Monteiro de. Garantias ao cumprimento da obrigação tributária: uma proposta de classificação partindo dos peculiares efeitos da garantia prestada em contextos tributários. São Paulo: Noeses, 2022.
[5] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
(…) II – o depósito do seu montante integral;
[6] Art. 835. […]
§2º – Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro fiança bancária e o seguro garantia, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.
[7] Art. 151. (…)
X – a aceitação, pelo credor, nos termos da regulamentação estabelecida pelos órgãos de cobrança judicial dos créditos tributários, de apólice de seguro garantia ou de carta de fiança bancária oferecidas em execução fiscal, inclusive quando convencionadas por meio de negócio jurídico processual, enquanto estiverem em conformidade com as normas que regem sua aceitação e enquanto não caracterizada hipótese de sinistro”.
[8] Art. 206. Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa.
[9] Tema repetitivo nº 237 do STJ: “É possível ao contribuinte, após o vencimento da sua obrigação e antes da execução, garantir o juízo de forma antecipada, para o fim de obter certidão positiva com efeito de negativa.” – firmado na 1ª Seção no julgamento do recurso especial 1.123.669, sob relatoria do Ministro Fux.
[10] Art. 205. A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido.
Parágrafo único – A certidão negativa será sempre expedida nos termos em que tenha sido requerida e será fornecida dentro de 10 (dez) dias da data da entrada do requerimento na repartição.
[11] Diferentemente, a chamada cobrança direta (ou cobrança em sentido estrito) não tem esse elemento volitivo, pois se o contribuinte não adimplir o Judiciário buscará o pagamento forçado, via atos de expropriação.
[12] A respeito das condutas adotadas pelo fisco com nítido objetivo de estimular o pagamento do tributo pelo contribuinte, no presente artigo denominadas de meios indiretos de cobrança, remetemos o leitor e a leitora para os seguintes artigos desta coluna:
[13] Art. 7º. Será suspenso o registro no Cadin quando o devedor comprove que:
I – tenha ajuizado ação, com o objetivo de discutir a natureza da obrigação ou o seu valor, com o oferecimento de garantia idônea e suficiente ao Juízo, na forma da lei;
II – esteja suspensa a exigibilidade do crédito objeto do registro, nos termos da lei.
[14] Sobre a classificação das ações tributárias em exacionais e antiexacionais, sugerimos a leitura dos seguintes artigos desta coluna:
https://www.conjur.com.br/2021-mai-04/paulo-conrado-medidas-exacionais-antiexacionais/
https://www.conjur.com.br/2021-mar-09/opiniao-processo-positivacao-acoes-conflitos-tributarios/
[15] Art. 8º. Notificado para pagamento do débito inscrito em dívida ativa, o devedor poderá antecipar a oferta de garantia em execução fiscal.
Parágrafo único. A oferta antecipada de garantia em execução fiscal, apresentada no prazo do art. 6º, II, suspende a prática dos atos descritos no art. 7º até o montante dos bens e direitos ofertados.
[16] Art. 7º. Esgotado o prazo e não adotada nenhuma das providências descritas no art. 6º, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá:
I – encaminhar a Certidão de Dívida Ativa para protesto extrajudicial por falta de pagamento, nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997;
(…).
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