Integridade democrática: proposta de definição
5 de maio de 2025, 8h00
Este artigo foi originariamente escrito para debates sobre a temática “Prestação Jurisdicional e Integridade Democrática”, ocorrido no último dia 24 de abril, no auditório da Esagu (Escola Superior da Advocacia-Geral da União), em Brasília.

“Integridade: do Latim integritate. Significa a qualidade ou estado de alguém que é íntegro, que possui conduta reta, ética, justa, honesta, proba. Integridade é sinônimo de honestidade, retidão, imparcialidade. A integridade de um órgão (ou sistema) depende do comportamento de cada um de seus integrantes! (…) Um bom princípio para andar na integridade é observar o pensamento do filósofo Immanuel Kant: ‘Tudo o que não puder contar como faz, não faça!’” (Dnit)
Dessa forma, a integridade configura-se como uma qualidade que pode ser atribuída a qualquer ente, indivíduo ou sistema cuja conduta ou funcionamento se pretenda aferir. Portanto, se a integridade pode ser atribuída a sujeitos e instituições, sua aplicação ao conceito de democracia — a chamada “integridade democrática” — exige, antes, a delimitação do que se entende por democracia.
“Democracia é a prática política de dissolução, de alguma maneira, do poder e das decisões políticas em meio aos cidadãos. O termo democracia tem origem grega, podendo ser etimologicamente dividido da seguinte maneira: demos (povo), kratos (poder).” (Brasil Escola)
Vê-se, assim, que a essência do conceito democrático está em descentralizar o poder, tornando-o um bem coletivo. Mas, para além dessa cisão do poder, é fundamental que tal estrutura se mantenha íntegra — seja pelo sistema de freios e contrapesos, seja pelo respeito rigoroso de cada órgão às suas funções constitucionais. O todo democrático manifesta-se em cada uma de suas partes e, de sua atuação segmentada e autônoma, reforça e legitima o conjunto. Ou seja, a estabilidade da democracia depende de que essa distribuição de poder permaneça íntegra em seus fundamentos e práticas.
A integridade democrática presente em cada parte do todo é, portanto, crucial para a estabilidade e a eficácia das sociedades democráticas. Falhas em qualquer desses aspectos podem minar a confiança pública nas instituições e, consequentemente, levar a crises institucionais, políticas e sociais.
No entanto, ao pesquisar a expressão “integridade democrática”, seja em fontes especializadas, seja com o auxílio da inteligência artificial, percebe-se a ausência de uma definição técnica consolidada para o termo. Em busca recente, foram localizados sete artigos e duas jurisprudências utilizando a expressão, mas sem a fixação de um conceito doutrinário próprio.
Esse questionamento sobre a falta de definição técnica da expressão “integridade democrática” foi levado ao grupo “Eleitoral em Debate”, composto por mais de 440 membros, muitos deles de reconhecido saber jurídico, e administrado por Delmiro Dantas Campos Neto. A partir desse debate e com o apoio da inteligência artificial (ChatGPT 4o), avançou-se para a reflexão seguinte:
Diante dessa lacuna, surge a oportunidade de propor uma definição mais precisa, ancorada na tradição constitucionalista, e inspirada em autores como Pippa Norris, Levitsky e Ziblatt, e Carlos Blanco de Morais. Embora não se trate de conceito técnico consolidado na doutrina jurídica tradicional, a integridade democrática pode ser compreendida como a conformidade estrutural e procedimental das práticas políticas e eleitorais com os princípios constitucionais do Estado de Direito, da soberania popular e da igualdade política, assegurando que o poder se constitua e se exerça segundo padrões legítimos, transparentes e fiscalizáveis.
Apesar de ser termo já amplamente utilizado em documentos institucionais, relatórios internacionais e discursos político-jurídicos, a expressão “integridade democrática” ainda carece de definição dogmática consolidada na literatura jurídica nacional. Trata-se de um conceito em construção, cuja aplicação frequente denota o compromisso com a lisura dos processos eleitorais, a estabilidade das instituições e o respeito ao Estado de Direito.
Na literatura internacional, especialmente na ciência política, encontram-se contribuições relevantes — como a de Pippa Norris, que associa integridade democrática à conformidade dos processos eleitorais com padrões internacionais de legalidade, liberdade e transparência ao longo de todo o ciclo eleitoral. Do mesmo modo, Levitsky e Ziblatt enfatizam a importância das normas informais, como a tolerância mútua e a contenção no uso do poder, como fundamentos práticos da integridade dos regimes democráticos. Carlos Blanco de Morais, por sua vez, sublinha o papel da justiça constitucional na proteção das bases estruturais da democracia.
Com base nessas formulações, pode-se propor que integridade democrática consista na conformidade estrutural e procedimental das práticas políticas e eleitorais com os princípios constitucionais da soberania popular, legalidade, igualdade política e transparência institucional, assegurando que o poder se constitua e se exerça dentro de padrões legítimos, estáveis e fiscalizáveis.
No entanto, cabe ressaltar: o conceito de “integridade democrática” ainda não é consensual, tampouco uniforme em sua aplicação. A pesquisa em artigos e jurisprudência evidencia usos distintos e, por vezes, imprecisos. Surge, então, a indagação: será que o que cada autor ou julgador entende por “integridade democrática” coincide, de fato, com o que se deseja afirmar em ambiente acadêmico, institucional ou jurisdicional? A ausência de definição técnica revela não apenas uma lacuna doutrinária, mas também o risco de insegurança em sua aplicação prática, especialmente em ambientes de decisão pública.
Por isso, é fundamental abrir o debate sobre o significado de “integridade democrática” e buscar sua consolidação acadêmica, para que se estabeleça algo mais sólido do que o emprego difuso em decisões judiciais, artigos ou fóruns de discussão. Essa preocupação ganha relevo diante do contexto de ataques sistemáticos às instituições, sejam elas físicas ou formais.
Assim, consolidando o uso corrente da expressão e em busca de um ponto de partida para os debates, propomos, de forma inicial, que integridade democrática se refira ao conjunto de princípios constitucionais e práticas institucionais que asseguram o funcionamento legítimo, estável e justo do sistema democrático. Tal conceito abrange aspectos essenciais à manutenção da democracia, tais como: Estado de Direito, respeito aos direitos humanos, transparência e responsabilidade, participação cidadã, pluralismo e diversidade, eleições justas e livres e independência dos poderes.
Ressalte-se que um dos objetivos declarados do encontro, promovido pela Escola da Advocacia-Geral da União, foi justamente “promover um debate para que dele resultem propostas a subsidiar o Grupo de Pesquisa, (…) que impactam positivamente no ambiente democrático; o efeito das fake news nas políticas públicas e na prestação jurisdicional; desafios aos ataques às instituições democráticas e ao Poder Judiciário; e, por fim, a regulação das redes sociais”.
Sugeriu-se e foi aceito, portanto, que, a partir dos debates promovidos naquela oportunidade, seja estudado uma definição dogmática da expressão “integridade democrática”, ao menos para efeitos práticos de aplicação geral no âmbito da AGU (Advocacia Geral da União).
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Referências
DNIT. Integridade. Disponível em: https://www.gov.br/dnit/pt-br/assuntos/integridade. Acesso em: 17 abr. 2025.
BRASIL ESCOLA. Democracia. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/democracia.htm. Acesso em: 17 abr. 2025.
JUSBRASIL. Artigos e Jurisprudência com a expressão ‘integridade democrática’. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/. Acesso em: 22 abr. 2025.
GOOGLE. Resultado de busca com uso de IA. Disponível em: https://www.google.com/search?q=integriade+democrática+advocacia+geeral+da+união. Acesso em: 22 abr. 2025.
NORRIS, Pippa. Why Electoral Integrity Matters. Cambridge University Press, 2014.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça Constitucional. Coimbra: Almedina, 2021.
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