Opinião

Inelegibilidade de parentes consanguíneos do chefe do Executivo

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4 de dezembro de 2024, 18h29

Comumente deparamo-nos com decisões judiciais que aplicam leis de modo a contrariar o objetivo do legislador em tê-las criado. Barão de Montesquieu, em sua obra intitulada “O Espírito das Leis”, cujos ensinamentos foram essenciais para a aplicação em nível global do sistema de tripartição de Poderes, recorrentemente alertava para tal problemática. Veja-se os seguintes trechos:

Quando o legislador, em vez de dar leis, deu conselhos, foi porque viu que seus conselhos, se fossem ordenados como leis, seriam contrários ao espírito de suas leis. [1]
[…]
As formalidades da justiça são necessárias para a liberdade. Mas a sua quantidade poderia ser tão grande que chegaria a contrariar o objetivo das próprias leis que as teriam estabelecido; as questões não teriam fim; a propriedade dos bens permaneceria incerta; dar-se-ia a uma das partes os bens da outra sem verificação ou se arruinariam ambas em razão de tantas verificações. [2]

A aplicação dada pelos tribunais eleitorais ao texto do artigo 14, § 7º, da Constituição vem sendo realizada de forma estritamente objetiva, isto é, sem se atentar aos aspectos subjetivos de cada caso concreto. Por esse motivo, em algumas situações, constata-se o seguinte paradoxo: o texto literal da norma é aplicado, contudo, por outro lado, tal aplicação acaba contrariando o seu objetivo e a sua própria razão de existir. Para melhor contextualização, é valido destacar a redação do texto constitucional:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
[…]
§ 7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.

Lisura no pleito eleitoral

O espírito da lei, isto é, o objetivo do legislador constituinte, é concretizar a igualdade de oportunidades e a lisura no pleito eleitoral. A norma parte da premissa de que parentes consanguíneos possuem uma relação interpessoal positiva e de proximidade. A presunção realizada pelo legislador não está equivocada, ou seja, reconhece-se que, na maioria dos casos, o chefe do Poder Executivo, munido da máquina pública, teria forte influência na candidatura do seu familiar, aumentando indevidamente o seu reduto eleitoral e violando a igualdade de oportunidades entre os candidatos.

Porém, há casos em que familiares possuem não apenas uma relação de inimizade pessoal, mas também de antagonismo, rivalidade e oposição político-partidária. Então, o artigo busca analisar a (in)elegibilidade do candidato que comprova a presença de ambos os requisitos em contraposição à literalidade da redação constitucional e ao espírito do legislador.

Tomemos como certo que a vedação estabelecida pelo artigo 14, § 7º, da Constituição presume uma relação de proximidade entre os parentes, que pode, na maioria das vezes, de fato influenciar negativamente no pleito eleitoral. Entretanto, a presunção, assim como em todos os direitos e garantias fundamentais, não deve ser absoluta, mas, sim, relativa. Então, comprovada a inimizade pessoal e o antagonismo político-partidário entre os parentes candidatos, deveria a hipótese de inexigibilidade ser afastada.

Spacca

Por um lado, a norma proíbe a candidatura de parentes do chefe do Executivo sob o pretexto de manter a igualdade e a lisura no processo eleitoral. Isto é, há claramente um objetivo nuclear de defender o exercício pleno dos direitos políticos. Por outro lado, a norma, se aplicada indevidamente, pode legitimar situações em que parentes consanguíneos, mesmo com relações interpessoais e políticas negativas, acabem sendo injustamente impedidos de exercer o direito de se candidatar, o que daí sim vicia tanto o processo eleitoral, como também a igualdade de oportunidades entre os candidatos, pois o exercício do direito político passivo é injustamente cessado.

Em certa medida, cancelar o registro da candidatura, ignorando a inimizade pessoal e a rivalidade político-partidária com o parente consanguíneo, pode ser compreendida como prática contrária ao espírito do artigo 14, § 7º, da Constituição.

Não havendo, portanto, a devida cautela por parte do julgador, que se dá mediante a análise extensiva e subjetiva entre as provas e o espírito da lei, poderá a aplicação da normativa constitucional contrariar o seu próprio objetivo, e, mais do que isso, a própria razão pela qual foi criada.

Processo eleitoral justo e equilibrado

O paradoxo entre o texto da lei e o seu objetivo deve ser sobrepesado pelo julgador, caso a caso, atentando-se para os elementos subjetivos. Incumbe ao julgador concretizar o objetivo que o legislador impôs na norma. Nesse cenário, se o espírito da norma é manter o processo eleitoral equilibrado, igualitário e justo, deverá, consequentemente, o julgador agir com o mesmo propósito, não se limitando à interpretação restritiva.

Nada adianta aplicar a lei de forma restritiva/objetiva se o resultado será contrário ao objetivo do legislador. Nada adianta cancelar o registro da candidatura do candidato e, com isso, causar justamente o que a lei buscou coibir.

E aqui, não se trata de criar mecanismos não previstos no texto da Constituição, mas, na verdade, de adequar o propósito normativo com a sua finalidade. Mesmo porque, fossem as normas criadas para serem aplicadas de forma meramente objetiva e restritiva, certamente que inexistiriam debates acadêmicos, doutrinários e até mesmo discussões nos plenários dos órgãos colegiados sobre (in)constitucionalidades e diferentes formas de aplicação das leis.

Tanto que a própria vedação pelo artigo 14, § 7º, da Constituição constitui-se como uma indagação subjetiva, à medida em que há relativização de um direito fundamental (direito político). Logo, se pode haver indagação subjetiva para decretar a inelegibilidade, certamente que também pode haver para deixa-la de aplicar nos casos em que seja efetivamente comprovada a inimizade pessoal e o antagonismo político-partidário.

Comprovação de inimizade e oposição política

Obviamente, a análise de ambos os requisitos deve ser aprofundada. O reconhecimento da inimizade pessoal e da oposição político-partidária deverá essencialmente ser comprovado de forma robusta, mediante provas documentais, testemunhais, devendo, para além disso, a oposição partidária existir por tempo considerável e ser de conhecimento notório da circunscrição eleitoral, com disposições destinadas a evitar possíveis fraudes.

No mais, a despeito de os direitos fundamentais serem relativos, tem-se que a relativização não pode ser irrestrita, isto é, não se pode relativizá-los ao ponto de suas existências não mais fazerem sentido. Por isso, a mitigação dos direitos políticos deve essencialmente guardar correlação com o espírito da lei, ou seja, não pode ser fruto de interpretações meramente restritivas e objetivas — exatamente o posicionamento que vem sendo adotado pelos tribunais eleitorais.

Mesmo porque os direitos fundamentais possuem como um dos princípios norteadores a historicidade, que nada mais é do que a adaptação da norma constitucional às novas realidades e mudanças da sociedade. Essa adequação pressupõe uma interpretação extensiva da lei, notadamente no que tange às normas oriundas do Poder Constituinte Originário, dado que foram criadas há mais de 35 anos.

Por essas razões, tomemos como certo que a norma não pode ser analisada de forma restritiva, mas sim, de modo extensivo. Caso contrário, o julgador assume o risco de decidir contrariamente ao objetivo da lei.

 


[1] Charles de, MONTESQUIEU. O espírito das leis. Martins Fontes, P. 470.

[2] Idem, p. 601.

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