Cenário processual da ADI 7.236
5 de maio de 2025, 21h27
O Brasil enquanto Estado soberano possui uma Constituição que reconhece três poderes de Estado: o legislativo, o executivo e o judiciário, cada qual com suas funções típicas também desenhadas pelo texto constitucional.
São as funções típicas de cada um dos três poderes: legiferante e fiscalizatória (Poder Legislativo); administrativa (Poder Executivo) e jurisdicional (Poder Judiciário).
Ao Poder Legislativo, no exercício de suas funções típicas, é dada a possibilidade de inovar o ordenamento jurídico com a produção de normas gerais e abstratas com eficácia prospectiva, em regra. Essa atribuição de inovar o ordenamento jurídico produzindo leis, contudo, não é ilimitada. Todas as normas produzidas pelo Poder Legislativo, tenham elas a natureza que tiverem (leis complementares, leis ordinárias e etc.), não podem violar o texto constitucional vigente. Em outras palavras, qualquer lei que esteja em rota de colisão com o texto constitucional não poderá permanecer válida e eficaz.
Igualmente ao Poder Executivo, quando no exercício de suas funções, não poderá expedir ato contrário à Constituição Federal.
Enfim, todo o ordenamento jurídico deve observância, obediência e harmonia com a Carta Política, sob pena de invalidade, porquanto retira dela o seu fundamento de validade.
O controle da fina sintonia desses instrumentos infraconstitucionais (leis, regulamentos, atos e etc.) com a Constituição compete ao Poder Judiciário, que poderá fazê-lo de forma concentrada ou difusa.
Muito sinteticamente, o controle concentrado é um processo objetivo, isto é, sem partes e conflito de interesses, em que determinados órgãos do Poder Judiciário, a depender da natureza federal ou estadual do objeto de análise, decidirão se determinada lei ou ato normativo conflitam ou não com a Constituição.
Neste controle (concentrado), caso a lei ou ato normativo seja declarado inconstitucional, ele será expurgado do ordenamento jurídico desde o seu nascedouro, por ser considerado nulo e os efeitos dessa decisão valerá indistintamente para todos, o que se denomina “efeito erga omnes”.
Este controle sempre será exercido por uma das ações de controle direto, tais como Ação Direta de Inconstitucionalidade; Ação Declaratória de Constitucionalidade; Ação de Inconstitucionalidade por Omissão; Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ou ainda, a Ação Direta Interventiva, que somente podem ser propostas por pessoas previamente autorizadas pela Constituição.

De outro lado, o controle difuso se dá por atuação de tudo e qualquer órgão jurisdicional e sempre incidentalmente à um caso concreto em que partes conflitam. Noutros termos: “o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei não é o objeto da causa”, porém, “para decidir acerca do direito em discussão, o órgão judicial precisará formar um juízo acerca da constitucionalidade ou não da norma” (Barroso, in O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2016, p. 120).
O efeito desta declaração incidental de inconstitucionalidade restringe-se às partes do processo e ao objeto decidido na demanda proposta. O efeito da decisão retroage, igualmente, ao nascedouro da norma, visto ser nula ante a inconstitucionalidade reconhecida e declarada incidentalmente.
No caso da ADI 7.236, por se tratar de uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, um dos legitimados a propor a ação — Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) —, ingressou com o processo requerendo a declaração da inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei 8.429/1992, alterados e/ou incluídos pela Lei nº 14.230/2021: art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º e art. 10; art. 1º, § 8º; art.12, § 1º; art. 12, § 10; art. 17-B, § 3º; art. 21, § 4º; art. 23, caput e § 4º, incisos II a V e § 5º; art. 23-C, caput; art. 11, caput, incisos I e II; art. 12, incisos I, II e III, e §§ 4º, 9º e 10, e parágrafo único do art. 18-A; art. 17, §§ 10-C, 10-D e inciso I do § 10-F.
Os artigos acima mencionados, de acordo com o autor da ADI 7.236, violariam os art. 14, § 9º; art. 37, § 4º; art. 127, §§ 1º e 2º da Constituição, bem como ofenderiam os princípios da independência das instâncias, da segurança jurídica, da proporcionalidade e da isonomia.
Esse autor (Conamp) requereu, ainda, o deferimento de medida cautelar para suspensão da eficácia dos mesmos referidos dispositivos da Lei nº 8.429/1992, porquanto em sua perspectiva estariam presentes a probabilidade da procedência dos pedidos como o risco de dano irreparável e/ou de difícil reparação aos inquéritos e ações em curso, caso os artigos permanecessem vigendo.
O ministro relator Alexandre de Moraes, em seu despacho inicial, decidiu conhecer parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade e deferir, também parcialmente, a medida cautelar para:
“(I) declarar prejudicados os pedidos referentes ao art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º, e 10 da Lei 8.429/1992, incluídos ou alterados pela Lei 14.230/2021;
(II) indeferir a medida cautelar em relação aos artigos 11, caput e incisos I e II; 12, I, II e III, §§ 4º e 9º, e art. 18-A, parágrafo único; 17, §§ 10-C, 10-D e 10-F, I; 23, caput, § 4º, II, III, IV e V, e § 5º da Lei 8.429/1992, incluídos ou alterados pela Lei 14.230/2021;
(III) deferir parcialmente a medida cautelar, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, com fundamento no artigo 10, § 3º, da Lei 9.868/1999, e no artigo 21, V, do RISTF,, para suspender a eficácia dos artigos, todos da Lei 8.429/1992, incluídos ou alterados pela Lei 14.230/2021: (a) 1º, § 8º; (b) 12, § 1º; (c) 12, § 10; (d) 17-B, § 3º; (e) 21, § 4º;
(IV) deferir parcialmente a medida cautelar, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, com fundamento no art. 10, § 3º, da Lei 9.868/1999, e no art. 21, V, do RISTF, para conferir interpretação conforme ao artigo 23-C, da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021, no sentido de que os atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, poderão ser responsabilizados nos termos da Lei 9.096/1995, mas sem prejuízo da incidência da Lei de Improbidade Administrativa.”
Após o deferimento da cautelar acima mencionada e da admissão de 14 amici curiae, a ação foi pautada e apenas o ministro relator proferiu voto, confirmando a cautelar por si deferida inicialmente. Em seguida, pediu vista antecipada o ministro Gilmar Mendes, retornando o feito à pauta do Supremo Tribunal Federal em 23 de abril de 2025.
Em 24 de abril de 2025 o ministro Gilmar Mendes apresentou seu voto divergindo parcialmente do voto do ministro relator. Para o decano da Corte, a ação deveria ser conhecida e julgada parcialmente procedente para:
“(I) declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e’, contida no § 1º do art. 12 da Lei 8.429/1992, na redação que lhe foi dada pela Lei 14.230/2021;
(II) conferir interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 21 da Lei 8.429/1992, na redação que lhe foi dada pela Lei 14.230/2021, para excluir do seu âmbito de aplicação a hipótese absolutória contida no inciso III do art. 386 do CPP (‘não constituir o fato infração penal’);
(III) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 23-C da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021, de modo a assentar que atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, serão responsabilizados nos termos da Lei 9.096/1995, sem prejuízo da incidência da Lei de Improbidade Administrativa, vedado eventual bis in idem, declarando, por fim, a constitucionalidade de todos os demais dispositivos impugnados.”
Após o voto do ministro Gilmar Mendes, pediu vista antecipada dos autos o ministro Edson Fachin.
Esse o atual cenário processual da ADI 7236.
O deferimento da cautelar pelo relator retirou a eficácia dos dispositivos 1º, § 8º; 12, § 1º; 12, § 10; 17-B, § 3º; e 21, § 4º. Além disso, também conferiu liminarmente interpretação conforme ao artigo 23-C, da Lei 8.429/1992, no sentido de que os atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, poderão ser responsabilizados nos termos da Lei 9.096/1995, mas sem prejuízo da incidência da Lei de Improbidade Administrativa.
Em síntese, portanto, até o julgamento final da ADI os artigos mencionados não poderão subsidiar decisão judicial alguma, porquanto estão com suas eficácias suspensas. E mais, no que toca à previsão do artigo 23-C, não se poderá inadmitir ação de improbidade proposta para responsabilização de agentes hipoteticamente responsáveis por atos que ensejaram enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, porque estes seriam responsabilizados apenas nos termos da Lei n. 9.096/1995 e não alcançados pela Lei nº 8.429/1992.
Logo, a partir dos fundamentos da medida liminar que foi deferida pelo ministro relator Alexandre de Moraes, até que se decida finalmente o objeto da ADI 7.236, (i) a conduta pautada em interpretação jurisprudencial de lei, a depender do caso concreto, poderá ensejar responsabilização por ato de improbidade administrativa, pois franquear liberdade ao administrador para atuar com base em interpretação divergente sem qualquer limite, principalmente diante da considerável estrutura do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas do país, poderia trazer insegurança jurídica na atuação dos legitimados para ajuizar as ações de improbidade e desproteger o erário público; (ii) a condenação à perda da função pública, seja na hipótese de enriquecimento ilícito, seja no caso de prejuízo ao erário, incidirá sobre qualquer vínculo que o condenado tiver com a administração pública, porquanto a condenação em perda da função pública visa exatamente excluir dos quadros da Administração Pública aquele que não demonstrou compromisso com seus princípios e objetivos, independentemente da função que exercia quando praticou ato reprovável; (iii) não se computará retroativamente a suspensão dos direitos políticos entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória, posto que a contagem tal como considerada no dispositivo cuja eficácia foi suspensa pela liminar desconsiderava a distinção conceitual entre a suspensão dos direitos políticos e a inelegibilidade; (iv) não há necessidade de ouvir previamente o Tribunal de Contas competente para a apuração e fixação do valor dos danos causados ao erário pelo ato ímprobo, na medida em que a imputação de ato ímprobo que tenha causado lesão ao erário é uma das atribuições do Ministério Público que, por sua vez, atua de forma autônoma e independente, isto é, prescindindo de qualquer atuação conjunta de quem quer que seja, inclusive dos Tribunais de Contas; (v) a absolvição criminal não surte efeito algum em relação à responsabilização por improbidade administrativa, porquanto se tratam de esferas distintas de responsabilização e, portanto, incide aqui a independência das instâncias de responsabilização, além do fato de o art. 37, § 4º da Constituição afirmar expressamente que a condenação pela prática de ato de improbidade administrativa importará “a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifamos).
Note-se que há profunda divergência entre os votos já apresentados. A discussão é realmente complexa e importantíssima ao país, merecendo a mais acentuada atenção e esforço dos ministros do STF.
Além disso, os votos apresentados até o momento advêm de dois influentes Ministros da Corte e que são renomados constitucionalistas, de modo que a futura discussão poderá tomar rumos absolutamente imprevisíveis.
É verdadeiro afirmar que a ação de improbidade administrativa é instrumento indispensável na defesa da probidade administrativa e que não pode ser inviabilizada a ponto de tornar inócua as medidas de proteção do erário e da boa administração. De outro lado, também não pode ser desconsiderado o fato que muitos gestores públicos foram indevida e desproporcionalmente prejudicados — ainda que pelo simples fato de responderem a ações que posteriormente foram julgadas improcedentes ou rejeitadas — por ações absolutamente temerárias e sem qualquer deferência às decisões políticas dos que foram eleitos para exercerem seus cargos.
De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Movimento Pessoas à Frente, que tomou como objeto de estudo as informações contidas na Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que foi denominada “Balanço sobre a alteração da Lei de Improbidade Administrativa”, entre o ano de 2021 (quando entrou em vigor a reforma da Lei de Improbidade) e de 2023, constatou-se uma queda de 42% nas ações de improbidade ajuizadas (disponível aqui).
Outra constatação surpreendente da pesquisa e que vai de encontro com a narrativa apresentada pelos defensores de um maior endurecimento contra atos de corrupção no Brasil é o número de condenações por improbidade administrativa em razão de enriquecimento ilícito. Segundo a pesquisa, “O tipo de improbidade por enriquecimento ilícito (artigo 9º) representa um percentual bem inferior aos tipos anteriores (6,8%), embora seja a figura que mais imediatamente é associada à noção de improbidade pela sociedade em geral”.
Aparentemente, a nova lei colocou um freio na persecução desregrada e irresponsável da “improbidade”. Portanto, é importante considerar a seriamente se há inconstitucionalidade nos dispositivos alterados e/ou incluídos pela Lei nº 14.230/2021, porquanto tão prejudicial quanto o enfraquecimento do combate à corrupção é a interferência indevida na produção legislativa pelo Poder Judiciário por mero descontentamento pela opção válida do legislador.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!