Suprema Corte dos EUA começou a julgar caso que pode limitar imunidade policial
2 de maio de 2025, 8h24
Nas primeiras horas da madrugada, Trina Martin, seu companheiro, Hilliard Cliatt, e seu filho de sete anos acordaram assustados com um estrondo em sua casa, em um subúrbio de Atlanta, na Geórgia, Estados Unidos. Agentes do FBI mascarados, munidos de rifles e um mandado judicial, invadiram a casa aos gritos para prender o membro de uma gangue.

Suprema Corte dos Estados Unidos aceitou julgar caso contra o FBI
Eles apontaram as armas para o casal e algemaram Hilliard. A operação foi um sucesso… por cinco minutos — o tempo que levou para os agentes descobrirem que invadiram a casa errada, a pouca distância da casa certa, que os agentes invadiram em seguida e onde prenderam o membro da gangue.
O chefe da equipe, Lawrence Guerra, botou a culpa no GPS. Ele pediu desculpas e documentou os danos à propriedade, para serem cobertos pelo seguro. Deixou um cartão de visita com dados de seu supervisor e se despediu do casal traumatizado.
Quando o governo rejeitou seu pedido de indenização, o casal moveu uma ação civil contra o FBI e os agentes, com o propósito de responsabilizá-los pelos danos. Eles citaram a invasão e a destruição de propriedade, a prisão ilegal, o cárcere privado e o trauma causado a eles e ao menino — entre outras alegações.
Sem sucesso, no entanto. Um juiz federal em Atlanta decidiu que o agente responsável pela operação fracassada, bem como o governo (no caso, o FBI), são isentos de responsabilidade. “Guerra tomou precauções significativas ao preparar a operação e simplesmente cometeu um erro”, escreveu o juiz.
O Tribunal Federal de Recursos da 11ª Região também se posicionou a favor do governo. A corte rejeitou o processo “em parte porque o FBI não tinha políticas específicas sobre como um agente deveria executar um mandado”. E, separadamente, “porque a lei federal substitui disposições da lei estadual nas quais as vítimas se basearam para apresentar seu caso”.
O juiz federal decidiu que o FBI e os agentes “são isentos de responsabilidade” com base em duas doutrinas jurídicas que os protegem: a imunidade soberana e a imunidade qualificada. A soberana protege o governo federal e os governos estaduais e municipais contra ações civis e criminais. A qualificada protege policiais e autoridades governamentais contra ações civis apenas.
Mudança da Suprema Corte
Ambas excluem algumas circunstâncias. E ambas são malvistas por boa parte da população — especialmente por vítimas de má conduta policial, que não encontram remédio judicial para os danos que sofrem. Mas a Suprema Corte vem se recusando, há décadas, a julgar casos que tentam responsabilizar civilmente policiais por condutas ilegais.
O fato de a corte ter aceitado julgar o caso em questão, desta vez, indica que alguma coisa pode mudar. Para deixar como estava, bastava se recusar a julgar o caso, mais uma vez. Prevaleceria a decisão do tribunal de recursos, que manteve o status quo.
A maior possibilidade é a de que a corte limite a capacidade de órgãos públicos, policiais e outras autoridades federais de escapar tão facilmente de responsabilização ou de impunidade. O tribunal poderá estabelecer regras mais claras sobre as circunstâncias em que os cidadãos podem processar por más condutas oficiais.
Tipos de imunidades nos EUA
Imunidade qualificada: Essa doutrina jurídica protege pessoas (policiais e outras autoridades federais) contra a responsabilização pessoal em ações civis — a não ser que suas ações violem claramente os direitos constitucionais de alguém.
Porém, há condições que dificultam a abertura de um processo. Uma delas: o direito violado deve estar claramente estabelecido na Constituição, em lei ou em decisão judicial.
Por exemplo, se um policial viola os direitos constitucionais de alguém, ele não pode ser processado por danos se uma corte não tiver decidido, previamente, que alguma ação semelhante era inconstitucional.
Mais do que isso, um “policial com um intelecto razoável” deve saber, no momento de suas ações, que sua conduta é ilegal. Nesse caso, se caracteriza uma “exceção circunstancial”, que ocorre, mais comumente, em casos de uso excessivo de força, negligência ou imprudência.
Embora a imunidade qualificada não seja uma proteção completa contra processos judiciais, é uma defesa que pode ser utilizada por autoridades governamentais.
Por exemplo, se um policial é acusado de usar força excessiva durante uma prisão, uma ação indenizatória pode ser trancada simplesmente porque ele alega que, no momento do incidente, nenhuma decisão judicial havia estabelecido que usar aquela quantidade específica de força era ilegal em circunstâncias semelhantes.
Imunidade soberana: Essa doutrina jurídica protege entidades governamentais (tal como o FBI) contra ações civis e criminais — a não ser que o órgão governamental reconheça o erro e concorde em ser processado. Um governo pode consentir em ser processado, por exemplo, nas áreas de contrato ou de ato ilícito (civil extracontratual).
O propósito da imunidade soberana é o de impedir que o bom funcionamento do governo seja perturbado pela necessidade de se defender em ações civis ou criminais — como uma ação indenizatória por um acidente causado por um buraco na estrada.
A doutrina tem origem na common law inglesa, com base na crença de que o rei não podia cometer erros e, portanto, era imune a processos. Hoje, ela é mais aplicada para proteger autoridades governamentais contra ações civis.
A imunidade soberana dos governos estaduais tem uma exceção: um estado pode ser processado por outro estado ou pelo governo federal.
A Foreign Sovereign Immunities Act (FSIA) reconhece a imunidade soberana de países estrangeiros em certas situações, mas descreve circunstâncias em que eles podem ser processados em cortes dos EUA.
Imunidade absoluta: Garante proteção total contra responsabilização por atos oficiais, independentemente da ação ou intenção de uma autoridade. Beneficiam-se dela juízes (mesmo que ajam de forma maliciosa ou de má-fé); parlamentares (por declarações feitas em debates legislativos); e presidentes (por ações dentro do escopo de seus deveres oficiais).
Imunidade diplomática: Protege diplomatas estrangeiros contra ações por violação de leis americanas, para que possam exercer suas funções sem interferência.
Imunidade negociada: Protege testemunhas contra persecução penal por quaisquer crimes cometidos, em troca de seu testemunho contra outros réus. Há uma limitação, chamada de uso de imunidade, que impede que o testemunho seja usado contra a testemunha, mas não outras provas que possam ser descobertas.
Decisão restrita
No caso em julgamento (da trapalhada do FBI), é possível que a Suprema Corte tome uma decisão restrita (narrow ruling), ou limitada em sua amplitude.
Isso significa que a corte pode examinar apenas o caso em disputa, esclarecendo as exceções circunstanciais e decidindo se a ação indenizatória contra o FBI é justificável.
No entanto, uma narrow ruling afeta apenas as partes envolvidas no processo. Não modifica a lei — ou sua interpretação. E não estabelece novo precedente, que deverá ser aplicado em casos semelhantes no futuro. É uma interpretação mais restrita de uma lei ou princípio, e não uma decisão com amplas aplicações.
Por exemplo, a corte pode decidir que um contrato em particular é inválido porque contém uma ambiguidade. Mas tal decisão não se aplica a outros contratos com ambiguidades semelhantes. Vale a ideia de que cada caso é um caso.
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