O chamamento da seguradora ao processo na nova Lei de Seguros
1 de maio de 2025, 8h00
Os manuais de Direito Processual Civil sempre apontaram um exemplo escolar de intervenção de terceiros: a convocação da seguradora ao processo. Essa intervenção tem duplo fundamento. A pessoa precisa mostrar que contratou um seguro de responsabilidade civil para proteger o seu patrimônio pessoal caso venha a ser alvo de imputações de responsabilidade que possam resultar em condenações judiciais ou arbitrais perante a vítima do dano.

Além do contratual, a convocação tem fundamento legal. O Código de Defesa do Consumidor prevê que o fornecedor de produtos e serviços pode chamar sua seguradora ao processo para que ela responda ao seu lado, se houver cobertura (CDC, aartigo 101, II). Entretanto, esse assunto nunca foi claro no Código Civil de 2002, que apareceu com a seguinte mensagem: “Intentada a ação contra o segurado, dará este ciência da lide ao segurador” (CC, artigo 787, § 3º). A questão que logo se levantou foi: o que significa dar ciência da lide?
Os primeiros comentários apresentaram visões divergentes. Eduardo Ribeiro enxergou “outra figura” de intervenção de terceiros diferente das que havia no CPC/73, destinada a tornar indiscutível a sentença para o segurador [1]. José Augusto Delgado [2] e Claudio Luiz Bueno de Godoy [3] apontaram a tradicional denunciação da lide, e um terceiro grupo, com Humberto Theodoro Júnior [4], Juliana Cordeiro de Faria [5] e Fernando da Fonseca Gajardoni [6], identificou hipótese adicional de chamamento ao processo prevista no direito material. Alertaram estes últimos autores que havia uma mudança de paradigma no seguro de responsabilidade civil desenhado pelo Código de 2002, a merecer compreensão mais profunda com reflexos na relação processual [7].
Na prática do processo securitário, a atividade judiciária optou pela denunciação. Como se sabe, no prazo de contestação a ser apresentada na ação ajuizada pela vítima (lide principal), o segurado pode requerer ao órgão judicial a citação de sua seguradora para que ela venha a formar com ele uma lide secundária. Essa relação corre em paralelo nos mesmos autos do processo. Sua expectativa é a de que, uma vez condenado, a seguradora seja igualmente obrigada a acompanhá-lo nessa condenação, se houver cobertura, nos limites do contrato de seguro. Na fase de execução, o segurado primeiro indeniza a vítima para depois requerer à sua seguradora o “reembolso” do quanto pagou àquela.
Com tal formato, a denunciação parecia atender perfeitamente à visão tradicional que se tinha desse seguro como garantia de restauração patrimonial.
Denunciação da lide em xeque
Esse mecanismo, no entanto, foi se mostrando injusto ao longo do tempo. Primeiro, não condiz com a função que se espera de um seguro de responsabilidade civil. Se o compromisso da garantia é manter indene o patrimônio do segurado, então o seguro precisa ser preventivo para evitar justamente que ele precise desfalcar o seu patrimônio pessoal. O reembolso caminha na contramão desse propósito. Segundo, se a indenização securitária estiver condicionada à prova do desembolso prévio, muitos segurados ficarão sem indenização por não terem recursos suficientes para cumprir a decisão condenatória. As vítimas muito menos.
Esse cenário precisava ser corrigido. Os tribunais passaram a reconhecer dois caminhos voltados a dar mais efetividade ao processo. Um deles foi a ação direta contra a seguradora. O terceiro prejudicado pode avaliar as vantagens e desvantagens entre acionar somente o causador, somente seguradora deste ou ambos em litisconsórcio passivo (STJ, Súmula 529) [8].
Outro caminho, produto desse mesmo esforço de desobstrução dos canais de acesso à Justiça, gerou uma ruptura no regime da denunciação da lide: a execução direta da seguradora. Aqui, a jurisprudência criou um atalho para permitir que a vítima – já vitoriosa na disputa – não ficasse desamparada diante da insolvência do segurado ou seu paradeiro desconhecido. Admitiu-se o cumprimento de sentença contra a companhia de seguros, que já figura no processo como denunciada, sujeitando-a à execução nos limites da garantia [9]. Essa experiência foi absorvida pelo CPC/2015 (artigo 128, § único).

A execução direta facilita a técnica do pagamento direto pela seguradora, uma prática antiga do mercado que sempre funcionou bem nos seguros massificados, especialmente no ramo de automóvel. Os solavancos na denunciação, no entanto, foram além. O Superior Tribunal de Justiça possibilitou a condenação direta do segurador na fase de conhecimento (STJ, Súmula 537) [10], a demonstrar que toda essa evolução jurisprudencial, particularmente construída no seguro de responsabilidade civil, quebrou o formato tradicional da denunciação.
Observe-se: as duas frentes criadas pela atividade pretoriana – ação direta e execução direta – foram soluções processuais voltadas a atender necessidades específicas do direito material, no sentido de satisfazer o escopo de manter indene o patrimônio do segurado e não deixar as vítimas à mercê de sua solvabilidade ou localização. O seguro de responsabilidade civil vem sendo observado como um projetor de efeitos externos para além do seu raio bipolar segurado versus seguradora, prova de uma acentuada função social [11].
Nessa perspectiva, a seguradora passou a ocupar a linha de frente do litígio. De uma posição subalterna, na retaguarda da lide secundária, passou ela a assumir postura mais cooperativa como litisconsorte parceiro do segurado.
Mas o trabalho dos tribunais não parou por aqui. Em 2018, o STJ reconheceu que existem dois interesses justapostos no seguro de responsabilidade civil – do segurado e da vítima –, em linha com o Enunciado 544 do CJF [12], na mesma ocasião em que criticou explicitamente o mecanismo do “reembolso”: “O seguro de responsabilidade civil se transmudou após a edição do Código Civil de 2002, de forma que deixou de ostentar apenas uma obrigação de reembolso de indenizações do segurado para abrigar também uma obrigação de garantia da vítima, prestigiando, assim, a sua função social” [13].
Eis o resumo muito apertado de uma longa história que começou nos anos 90 e continua em movimento.[14] O processo evolutivo do direito material, mercê da experiência construída nos conflitos securitários, mostrou não fazer mais sentido a denunciação como técnica de intervenção da seguradora na relação processual. O tempo provou que aquela mensagem enigmática do § 3º do artigo 787 do CC tem um parentesco muito mais próximo com o chamamento ao processo, sem ignorar, logicamente, suas limitações contratuais e legais.
A Lei de Seguros
Feito esse resgate histórico, podemos agora visitar a Lei nº 15.040/2024, a nova Lei de Seguros (LS), que deve entrar em vigor no dia 11.12.2025 [15]. O seguro de responsabilidade civil ganhou uma seção própria para regular aspectos de direito material e processual, afirmando que ele “garante o interesse do segurado contra os efeitos da imputação de responsabilidade e do seu reconhecimento, assim como o dos terceiros prejudicados à indenização” (LS, artigo 98).
A lei está dando à vítima do sinistro, o terceiro prejudicado, um prestígio a mais como objeto e sujeito do sistema de proteção securitária. Objeto, porque tutela o seu interesse pelo recebimento da indenização; sujeito, porque lhe confere o direito de requerer essa indenização diretamente da seguradora contratada pelo causador do dano, em litisconsórcio passivo com ele (LS, artigo 102). Entretanto, a ação direta é apenas um caminho à disposição do terceiro, que pode avaliar não ser vantagem trazer a seguradora ao polo passivo da demanda. Nesse caso, a decisão estratégica de convocá-la ou não passa para o segurado no seguinte cenário:
“Art. 101. Quando a pretensão do prejudicado for exercida exclusivamente contra o segurado, este será obrigado a cientificar a seguradora, tão logo seja citado para responder à demanda, e a disponibilizar os elementos necessários para o conhecimento do processo.
Parágrafo único. O segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária.”
A cabeça do dispositivo estabelece uma obrigação ao segurado de avisar sua seguradora no plano extrajudicial para fins de regulação do sinistro, ou seja, acompanhar o processo, apurar os fatos, analisar as coberturas e liquidar os valores, se for o caso. Já o parágrafo único confere ao réu a faculdade de convocá-la ao ambiente processual.
Com a visão de quem participou do grupo que redigiu esse dispositivo no Projeto de Lei da Câmara nº 29/2017, podemos afirmar que se trata de chamamento ao processo e não de denunciação da lide. Essa convocação é adicional às hipóteses previstas no CPC pela circunstância de não haver solidariedade entre segurado e seguradora, um lembrete pedagógico para evitar o exagero da Súmula 537 do STJ, sem previsão legal, ao menos fora das relações de consumo [16].
Na prática, é importante saber que tal reposicionamento não altera em nada o leque de defesas que a companhia de seguros poderá esgrimir contra o terceiro (LS, artigo 104). Ela pode alegar questões prévias de ordem pública ligadas aos pressupostos de admissibilidade do julgamento de mérito (condições para o exercício da ação e desenvolvimento válido do processo), prescrição da pretensão do terceiro contra o segurado, prescrição da pretensão do segurado contra a seguradora, excludentes de responsabilidade civil como culpa exclusiva da vítima, inexistência de nexo causal com o sinistro, ausência de culpa do agente, fato de terceiro estranho, caso fortuito, força maior etc.
Além disso, a companhia pode suscitar matérias do contrato de seguro como restrições e exclusões de cobertura, limites indenizatórios, franquias, inexistência de garantia por não contratação do seguro, não renovação do contrato ou não prorrogação de sua vigência. A lei faculta opor aos terceiros as faltas do segurado anteriores ao sinistro (LS, artigo 103), como inadimplência no prêmio, reticência, falsidade ou fraude na declaração inicial do risco, causação dolosa do sinistro, agravamento do risco etc. Por outro lado, discussão haverá sobre determinados fatos posteriores, como o descumprimento pelo segurado de sua obrigação de avisar prontamente a seguradora, tomar as medidas adequadas de salvamento e contenção, informar tudo quanto sabe a respeito do evento (LS, artigo 66, I, II e III) e preservar intactos o local do sinistro e seus elementos (LS, artigo 68).
Enfim, uma hipótese de chamamento ao processo com amplo módulo de defesa, retratando melhor a verdadeira posição ocupada pelo prestador de garantia nesse tipo de relação jurídica. Mudanças de paradigma exigem mudança de chave mental. Não dá para raciocinar um novo microssistema apenas com as caixinhas da disciplina geral do processo. É o contrário. As ferramentas processuais precisam acompanhar os rumos do direito material, um esforço que Cândido Rangel Dinamarco, no espírito da instrumentalidade, chama de revisitação dos institutos tradicionais na busca de soluções novas para velhos problemas [17].
[1] OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Contrato de seguro – alguns tópicos. In: NETTO, Domingos Franciulli; MENDES, Gilmar Ferreira & FILHO, Ives Gandra da Silva Martins (Coord.). O novo Código Civil – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. São Paulo: LTr, 2003, p. 745.
[2] DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil – Das Várias Espécies de Contrato. Do Seguro – Arts. 757 a 802. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. XI, t. I, p. 568.
[3] GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Código Civil Comentado – Doutrina e jurisprudência. In: PELUSO, Min. Cezar (Coord.). Barueri: Manole, 2007, p. 659.
[4] THEODORO JR., Humberto. O Novo Código Civil e as Regras Heterotópicas de Natureza Processual. In: DIDIER JR., Fredie & MAZZEI, Rodrigo (Coord.). Reflexos do novo Código Civil no direito processual. 2. ed., Salvador: JusPodivm, 2007, p. 147; THEODORO JR., Humberto. O seguro de responsabilidade civil – Disciplina material e processual. Revista de Direito Privado. Nº 46, 2011, p. 299.
[5] FARIA, Juliana Cordeiro de. O Código Civil de 2002 e o novo paradigma do contrato de seguro de responsabilidade civil: a viabilidade do direito de ação da vítima contra a seguradora. IV Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. Contrato de Seguro: Uma Lei para todos. São Paulo: IBDS, 2006, p. 391.
[6] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Anotações sobre três novas (e discutíveis) hipóteses de intervenção de terceiros previstas no Código Civil de 2002. In: DIDIER JR., Fredie & MAZZEI, Rodrigo (Org.). Processo e direito material. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 128.
[7] Desenvolvemos essa posição: MELO, Gustavo de Medeiros. Ação direta do terceiro prejudicado no seguro de responsabilidade civil – Uma análise do sistema jurídico brasileiro. In: DIDIER JR., Fredie et alii (Coord.). O terceiro no processo civil brasileiro e assuntos correlatos: Estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010, p. 284; MELO, Gustavo de Medeiros. A ação direta do terceiro prejudicado no seguro de responsabilidade civil: uma análise do sistema jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil. São Paulo: MP, 2008, p. 131.
[8] STJ, Súmula 529. No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano.
[9] STJ, 4ª T., REsp 97.590-RS, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 15.10.1996.
[10] STJ, Súmula 537. Em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice.
[11] Com mais profundidade nos aspectos materiais e processuais: MELO, Gustavo de Medeiros. Ação direta da vítima no seguro de responsabilidade civil. São Paulo: Contracorrente, 2016, p. 59.
[12] Enunciado 544 do CJF. O seguro de responsabilidade civil facultativo garante dois interesses, o do segurado contra os efeitos patrimoniais da imputação de responsabilidade e o da vítima à indenização, ambos destinatários da garantia, com pretensão própria e independente contra a seguradora.
[13] STJ, 3ª T., REsp 1.738.247-SC, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 27.11.2018.
[14] Com mais detalhes desse processo evolutivo: MELO, Gustavo de Medeiros. Panorama atual da ação direta da vítima no Brasil. In: PRADO, Camila Affonso et alii (Coord.). Seguros e Responsabilidade Civil. São Paulo: Foco, 2024, p. 579.
[15] Se for aplicado o mesmo critério que norteou a entrada em vigor do CPC/2015, segundo o § 1º do art. 8º da LC nº 95/1998 (STJ, Enunciado Administrativo nº 1).
[16] O PL nº 8.046/2010 propunha uma quarta hipótese de chamamento ao processo a ser prevista no CPC/2015: “daqueles que, por lei ou contrato, são também corresponsáveis perante o autor”. A proposta, porém, não vingou, rejeição lamentada pela doutrina: SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 156.
[17] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 276.
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