Tema STJ 1.293: bom para quem? A odisseia de Cronos continua...
3 de junho de 2025, 8h00
No dia 16 de maio, participei do I Seminário da Apet, realizado em Recife. A convite da Aconcarf, integrei uma das mesas, na qual, a conselheira Anna Dolores Barros de Oliveira Sá Malta e eu discorremos sobre a prescrição intercorrente em matéria aduaneira. Como era de se esperar, o tema suscitou muitas dúvidas e controvérsias.
No dia 27 do mesmo mês, o portal Jota publicou uma matéria sobre a prescrição intercorrente e as medidas adotadas no Carf [1], que trouxe entendimentos do presidente do órgão, Carlos Higino, e do presidente da 3ª Seção, Regis Holanda.
A atualidade e importância desse tema têm também se refletido em artigos técnicos e reportagens na imprensa. Entre esses textos, destaco o do colega Rosaldo Trevisan, “Tema STJ 1.293 — bom para quem?” [2], cuja análise aqui se procura dar continuidade, avaliando o cenário atual e antecipando os imbróglios que ainda teremos que enfrentar [3].
Decisão do STJ
Propõe-se iniciar a reflexão com a retomada da tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, dividida em três partes. A primeira estabelece:
1. Incide a prescrição intercorrente prevista no artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, permanece paralisado por mais de três anos.
Nesse ponto, afirma-se que a prescrição intercorrente é aplicável às infrações aduaneiras classificadas como de natureza não tributária. Surge, porém, a dúvida fundamental: o que exatamente seriam essas infrações aduaneiras consideradas não tributárias?

Há diversas penalidades que recaem sobre condutas que violam o controle aduaneiro, a fiscalização e a arrecadação de tributos, ou ainda ambas as esferas de maneira simultânea. A pena de perdimento, por exemplo, pode ser imposta tanto em casos de importação de mercadoria com característica essencial adulterada — por exemplo um produto rotulado como azeite extravirgem que, de fato, não o seja — quanto em situações de pagamento doloso a menor de tributos, ou ainda na entrada no país de mercadoria com falsa declaração de conteúdo (conforme o artigo 689, incisos VIII, XI e XII, do Regulamento Aduaneiro).
Essa classificação das penalidades, que inevitavelmente teremos de enfrentar, ainda carece de fundamentos sólidos. Até o momento, o que se observa são apenas opiniões pontuais — muitas delas oriundas de advogados diretamente envolvidos em casos concretos — que, longe de oferecer critérios técnicos e consistentes, apenas aprofundam a confusão entre o que se pretende chamar de infração aduaneira “não tributária” e aquelas relacionadas à fiscalização e à arrecadação tributária.
A segunda parte determina que:
2. A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) quando a norma infringida tem como objetivo principal o controle do trânsito internacional de mercadorias ou a regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, colabore para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.
Esse trecho causa grande preocupação entre especialistas em Direito Aduaneiro, por enquadrar as infrações aduaneiras como matéria de Direito Administrativo não tributário, desconsiderando toda a evolução teórica e institucional do Direito Aduaneiro no Brasil.
Quando a Lei nº 9.873 foi editada, em 1999, a doutrina aduaneira ainda era incipiente, e predominava o entendimento de que o Direito Aduaneiro integrava o Direito Tributário. À época — e nas décadas seguintes — havia consenso de que as regras da referida lei sobre prescrição intercorrente não se aplicavam às obrigações tributárias nem às aduaneiras.
Por sua vez, é um grande retrocesso que, em um e momento em que o Direito Aduaneiro brasileiro alcança maturidade teórica e reconhecimento institucional, suas infrações passem a ser tratadas como mera matéria de Direito Administrativo não tributário, para aplicação de uma lei editada há vinte e seis anos.
Aliás, os próprios tributaristas também devem ficar atentos: apesar de o Direito Tributário ser reconhecido como ramo autônomo desde a Constituição de 1934, pode se depreender da decisão em pauta que este ramo jurídico, da mesma forma que o Direito Aduaneiro, integraria o Direito Administrativo, como “Direito Administrativo Tributário”.
Ademais, cabe retomar o problema anterior: como inferir que normas como as que preveem a penalidade de perdimento têm por objetivo principal o controle do trânsito internacional de mercadorias ou a regularidade do serviço aduaneiro, contribuindo apenas reflexamente para a tributação? Outro exemplo de difícil enquadramento é a multa de 50% do imposto de importação nos casos de extravio da mercadoria (prevista no artigo 702, III, “c” do Regulamento Aduaneiro). Essa infração compromete o controle aduaneiro ou a fiscalização tributária? Evidentemente, ambos. Como classificá-la quando a mercadoria extraviada possui alta carga tributária? Ou quando é imune ou isenta? E ainda, quando se trata de mercadoria proibida, contaminada ou que ofereça risco à saúde e à segurança dos consumidores?
A terceira parte da tese, longe de esclarecer, apenas aprofunda as dificuldades interpretativas:
3. Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.
A passagem desperta sérias inquietações. Conforme a clássica definição de Direito Tributário de Paulo de Barros Carvalho, esse ramo do
Direito corresponde ao “conjunto de normas jurídicas que regulam a arrecadação do tributo, os direitos e obrigações do fisco e dos contribuintes, e as relações jurídicas decorrentes dessa arrecadação” [4].
Contudo, como se sabe, nem todas as normas tributárias se destinam de forma direta e imediata à arrecadação ou fiscalização dos tributos incidentes sobre um negócio jurídico. Pelo contrário, existem diversas obrigações tributárias chamadas “acessórias” que não se enquadram nessa definição restrita, como, por exemplo: a emissão de nota fiscal, inclusive por entidades isentas ou imunes; o cadastro fiscal, inclusive para pessoas ou entes não contribuintes; a comunicação de eventos cadastrais, como mudança de razão social ou endereço; e a prestação de informações — a título ilustrativo, algumas legislações fiscais exigem que se informe na nota fiscal direitos do consumidor.
Com efeito, conforme o entendimento do STJ, nem sempre as obrigações denominadas acessórias estão relacionadas a tributos. Haveria as “obrigações acessórias autônomas”. Deixando de lado a contradição intrínseca da expressão, o STJ entendeu que, mesmo na ausência de obrigação tributária principal, o contribuinte ainda pode ser responsabilizado e punido pelo descumprimento de deveres formais, como o de realizar o cadastro fiscal, comunicar mudança de endereço, emitir notas fiscais, escriturar livros contábeis e entregar declarações [5].
Se, no âmbito tributário, deveres instrumentais de fazer ou de prestar informações sem conexão direta com a fiscalização e arrecadação de tributos são reconhecidos pacificamente como deveres que geram multas cuja natureza jurídica é tributária, por que o dever de informar à Secretaria Especial da Receita Federal sobre a chegada de mercadorias e veículos estrangeiros não ostentaria também a mesma natureza? E o dever de preencher corretamente a declaração de importação? Sem dúvida, a tentativa de divisão proposta na decisão do STJ entre Direito Tributário e Direito Aduaneiro não se coaduna com os conceitos e institutos do próprio Direito Aduaneiro, além de visivelmente contrariar a lógica consolidada na interpretação do Direito Tributário.
Contexto da decisão do STJ
Conforme observado pelo colega Rosaldo Trevisan [6], havia poucos precedentes sobre a prescrição intercorrente em matéria aduaneira e quase todos relativos à mesma multa, prevista no artigo 107 do Decreto-Lei 37/1966, com a redação dada pela Lei 10.833/2003, a multa aplicada pela falta de prestação de informações pelo transportador, em exportações. Portanto, como ele pontuou, a grande maioria dos precedentes se relacionava a uma multa na exportação, relativa ao embarque de mercadorias, situação não relacionada à exigência de tributo.
Além disso, vale mencionar que estamos tratando de uma lei do final dos anos 1990, que passou décadas sem que houvesse grande dilema em sua não aplicação à matéria aduaneira. No Carf, havia a Súmula nº 111, de 2018, afastando aplicação da prescrição intercorrente, mas, muito antes dela, há quase trinta anos, o entendimento era pacífico pela não aplicação da prescrição ao Direito Tributário e aduaneiro. No STJ, o posicionamento pela não aplicação da prescrição intercorrente era tão sedimentado, que o tema sequer era levado para o plenário. Assim, as multas por infrações aduaneiras, tributárias ou não, que seguiam o rito do processo administrativo fiscal e o seguiam integralmente, inclusive quanto à aplicação da prescrição intercorrente.
O que trouxe esse tema ao debate foi a mudança na regra do voto de qualidade no Carf, promovida pelo artigo 28 da Lei nº 13.988, de 2020, editada no governo Bolsonaro. Essa Lei estabeleceu o voto de qualidade favorável ao contribuinte em casos de empate de votos nas Turmas do Carf, revertendo a regra anterior que favorecia o Fisco. Contudo, entendeu-se, com base na interpretação de que o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, introduzido pelo artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, que o voto de qualidade favorável ao contribuinte era restrito aos casos de determinação e exigência de crédito tributário, não abrangendo penalidades decorrentes de infrações aduaneiras. Nesse contexto, acendeu-se a discussão sobre a separação entre infrações aduaneiras tributárias e não tributárias, para se chegar então à questão da prescrição intercorrente. Posteriormente, o artigo 17 da Lei nº 14.689, de 2023, revogou o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, restabelecendo o voto de qualidade a favor do Fisco.
Foi nesse ponto que talvez o deus Poseidon tenha se sentido ultrajado, iniciando-se a peregrinação de Ulisses, ou melhor, no nosso caso, o problema parece ter sido com o tempo, que tudo devora e transforma, e o deus que teria se zangado, depois de décadas adormecido, seria Cronos.
Situação atual no Carf e perspectivas
Em resposta à decisão do STJ no Tema 1.293, publicada em março de 2025, o Carf tem dado prioridade à movimentação dos processos aduaneiros que se aproximam do prazo de três anos sem movimentação decisória.
Importante anotar que a preocupação com os processos aduaneiros no Carf é anterior e pode ser verificada no ato de criação das turmas especializadas aduaneiras, por meio da Portaria Carf nº 43, de 14 de abril de 2023.
Não houve ainda trânsito em julgado da decisão do STJ, pois a PFN apresentou embargos de declaração, buscando a modulação dos efeitos da decisão e o reconhecimento de que o prazo prescricional só deve começar a contar após o prazo de 360 dias previstos na Lei 11.457/2007 para análise de manifestações dos contribuintes em processos administrativos.
Segundo informações divulgadas pelo Carf [7], há 3.405 processos aduaneiros que completarão três anos até julho. Nesse contexto, em conformidade com o artigo 100 do Ricarf, o Carf optou por proceder à distribuição e inclusão desses processos em pauta para que possam ser sobrestados e assim evitar que o poder punitivo da Fazenda Pública se perca pela prescrição intercorrente.
Ademais, cerca de 1% dos processos do Carf envolve infrações aduaneiras e estão paralisados neste órgão há mais de três anos; por sua vez, ainda estão sendo levantados os processos no Carf sujeitos a prescrição intercorrente durante o trâmite na DRJ, o que pode alcançar o mesmo montante.
Em um primeiro momento, não está ocorrendo aprofundamento na classificação das infrações como aduaneiras tributárias ou não tributárias no Carf. Havendo infração aduaneira, os processos paralisados há mais de três anos estão sendo sobrestados, e aqueles que não atingem esse tempo, priorizados.
Por outro lado, há expectativa de que, caso o STJ mantenha a decisão sem modulação, a PFN possa recorrer ao Supremo Tribunal Federal, o que implicaria em retomada da discussão e ainda mais tempo de incerteza.
De toda sorte, a mudança de um entendimento jurisprudencial bastante consolidado sobre um tema intrinsicamente ligado à segurança jurídica trouxe muita instabilidade e está gerando e vai gerar muita controvérsia, especialmente se persistir a necessidade dessa classificação binária estanque das infrações aduaneiras.
No mundo ideal, haveria total respeito a Cronos, todos os processos seriam julgados no interregno de três anos, ou melhor, dentro no prazo de 360 dias, mas infelizmente essa ainda não é a realidade. Diante do enorme quantitativo de lides em matéria tributária e aduaneira no Brasil, número que tende a aumentar com a reforma tributária, não se dispõe de pessoal e de outros recursos para resolução com a agilidade almejada.
Cumpre lembrar que importantes medidas foram adotadas no Carf, como uso da tecnologia, especialização no julgamento, reorganização das turmas, utilização de plenário virtual e de reuniões à distância, as quais têm contribuído sobremaneira para melhora, mas ainda há um caminho com desafios a trilhar.
Assim, dentre as matérias aduaneiras e tributárias que seguem o mesmo rito do processo administrativo fiscal, as “infrações aduaneiras não tributárias”, em razão de somente estas estarem sujeitas à prescrição intercorrente, terão que ser privilegiadas, em detrimento de importantes matérias tributárias que podem envolver vultosos recursos.
Por outro lado, como aspecto positivo, há expectativa de que, com a especialização, com a melhora dos procedimentos e com o uso da tecnologia, o interregno temporal até o julgamento administrativo fiscal continue em processo de aprimoramento e — para satisfação de Cronos e alívio de Penélope — consiga-se chegar às decisões em tempo adequado tanto na matéria tributária quanto aduaneira.
[1] “Por risco de prescrição, Carf dará prioridade a casos parados há quase três anos”, de autoria de Jota (Disponível aqui).
[3] Sem a pretensão de ser taxativa, indico alguns desses textos: “Aplicabilidade da prescrição intercorrente às infrações aduaneiras”, de autoria de Fernando Pieri Leonardo e Pedro Mineiro (Disponível aqui); “Prescrição intercorrente e Aduana: ‘Back to the future’ (parte 2)”, de autoria de Rosaldo Trevisan (Disponível aqui); e “Prescrição intercorrente e Aduana: ‘Back to the future’ (parte 1)”, de autoria de Rosaldo Trevisan (Disponível aqui).
[4] Curso de Direito Tributário. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 43.
[5] REsp 866.851/RJ. Rel. min. Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 12 ago. 2008.
[6] Tema STJ 1.293 — bom para quem?”, de autoria de Rosaldo Trevisan (Disponível aqui).
[7] “Por risco de prescrição, Carf dará prioridade a casos parados há quase três anos”, de autoria de Jota (Disponível aqui).
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