A virtude da imparcialidade de um juiz
3 de junho de 2025, 20h14
A virtude é um dos fundamentos essenciais da ética e da filosofia moral. Em diferentes tradições, ela representa a excelência do caráter humano — uma disposição estável de agir com retidão e em busca da justiça. Derivada do latim virtus [1], carrega o sentido de força moral e firmeza de espírito. Para Aristóteles (2021)[2], é um hábito de escolha, construído pela prática e forjado pela razão.
Essa disposição pode ser entendida como a sede da consciência, o sopro vital que anima a conduta humana, a energia ética que impulsiona o agir com retidão. Se os valores — como justiça, liberdade e honestidade — são os fundamentos da consciência moral, a virtude é sua expressão prática. Ser virtuoso é viver os próprios valores com coerência, mesmo sem aplausos ou recompensa.
No campo jurídico, uma qualidade se destaca entre todas: a imparcialidade. Entre as virtudes esperadas de um magistrado, nenhuma é tão essencial quanto a capacidade de decidir com isenção e senso de justiça. Mais do que um requisito técnico, trata-se de um princípio ético e institucional. Não basta parecer neutro — é preciso sê-lo, com a serenidade de quem sabe que sua palavra tem o peso de um veredito.
Essa qualidade ganha relevo porque o juiz exerce autoridade decisória sobre a vida alheia. Seu gesto pode libertar ou aprisionar, proteger ou negar direitos. Por isso, sua conduta deve permanecer acima de qualquer dúvida razoável. Ciente disso, o ordenamento jurídico instituiu mecanismos para proteger a imparcialidade, como os institutos do impedimento e da suspeição. O primeiro presume a parcialidade em situações objetivas; o segundo abrange contextos subjetivos, como laços pessoais, interesses ou atitudes que fragilizem a confiança no julgador.
Nesses casos, o juiz tem o dever de se afastar. A Loman, em seu artigo 35, exige o cumprimento da lei com independência, serenidade e exatidão — não como formalidade, mas como salvaguarda do pacto democrático. Cabe ao próprio magistrado reconhecer qualquer circunstância que comprometa, ou possa comprometer, sua neutralidade, inclusive por motivo de foro íntimo.
Como já destacou a doutrina clássica, não é o tecnicismo que abala a confiança da sociedade, mas a percepção de parcialidade. Longe de serem privilégios pessoais, garantias como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos existem para proteger a independência judicial. Seu propósito é garantir que o juiz decida apenas conforme os fatos e o Direito (Barbi, 1971) [3].
Realidade e percepção
A jurisprudência do STJ é firme ao reconhecer que não se exige prova de má-fé para configurar a suspeição. No REsp 83.732/RJ, o simples recebimento de valores de uma das partes, ainda que para reforma do prédio do fórum, foi suficiente para comprometer a imparcialidade. A legitimidade do julgamento exige não apenas a isenção real, mas também a percepção pública dessa isenção.

Nesse aspecto, está o verdadeiro alicerce da confiança institucional: não basta ser imparcial — é preciso parecer imparcial. A imparcialidade é uma virtude da Justiça e da Razão. É o reflexo do respeito à igualdade entre todos, a materialização da máxima de que “todos são iguais perante a lei” — não apenas como norma, mas como prática cotidiana da jurisdição.
Por isso, não se pode tolerar qualquer forma de vínculo que comprometa essa neutralidade: presentes, afetos, alinhamentos ideológicos ou interesses pessoais. A toga não pode servir de escudo para sentimentos de vaidade, revanche ou poder. O juiz não é ator de paixões – é guardião da legalidade.
Quando se deixa contaminar por simpatias ou aversões, a imparcialidade deixa de ser virtude e torna-se aparência. A decisão se descola do direito e se converte em manifestação de vontade. E isso abre espaço para distorções, seletividades e desigualdades.
A imparcialidade exige vigilância constante. É fácil confundir o que se sente como justo com o que é legalmente devido. Mas o juiz deve julgar com base na Constituição e na legalidade — não em suas convicções íntimas. Os mecanismos de controle, como a suspeição, não atacam a magistratura – ao contrário, são garantias da sua respeitabilidade.
Vivemos um tempo de crescente desconfiança institucional. Espera-se do juiz, mais do que decisões rápidas ou retóricas contundentes, a serenidade que nasce da consciência ética. Espera-se contenção, equilíbrio, escuta e respeito.
A imparcialidade, portanto, é mais do que um requisito funcional: é a virtude que sustenta o poder de julgar. Quando presente, confere legitimidade à jurisdição e fortalece a confiança no sistema de justiça. Quando ausente, compromete o próprio Estado de Direito. Um juiz imparcial julga com base no Direito, mas também com consciência — e é essa combinação que dá sentido à toga e dignidade à sua missão.
É, acima de tudo, a virtude que confere dignidade à toga e sentido ao ato de julgar.
[1] Que significa “força” ou “qualidade”.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Jandira: Principis, 2021. (Recurso eletrônico). Traduzido por Maria Stephania da Costa Flores.
[3] ARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. 1. v., t. II. Rio de Janeiro: Forense, 1971. p. 546-547.
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