Absolvição criminal por atipicidade: (não) vinculação da ação de improbidade
16 de agosto de 2024, 20h54
Recentemente, noticiou-se nesta ConJur que, nos termos do que fora decidido no REsp 1.991.470, as sentenças civis e penais produzirão efeitos sobre a ação de improbidade administrativa quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria, mas não quando for o caso de atipicidade da conduta [1].
No mencionado caso decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, um ex-prefeito respondeu a ação penal pelos mesmos fatos, na qual acabou absolvido por atipicidade da conduta — ou seja, o ato do qual foi acusado não corresponde ao tipo penal definido por lei. Não obstante, ressalte-se que o Juízo Criminal, no caso, concluiu pela não existência de dolo específico do réu.
A defesa, por sua vez, pediu que essa conclusão exercesse influência na seara administrativa, para levar à improcedência da ação por improbidade. As instâncias ordinárias, porém, negaram o pedido. Relator da matéria no STJ, o ministro Herman Benjamin manteve essa conclusão. Conforme noticiado, apontou-se que a jurisprudência do STJ seria no sentido de que a absolvição criminal só influi na área cível se a conclusão foi de que não se comprovou a conduta ou a autoria, sendo esta, inclusive, a previsão da Lei de Improbidade Administrativa, no artigo 21, parágrafo 3º.
Sobre este ponto, inicialmente, cabe ressaltarmos que o artigo 21, parágrafo 4º, da mesma lei, que diz que “a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta lei” está suspenso pelo Supremo Tribunal Federal.
Conforme o relator Alexandre de Moraes, no julgamento da ADI 7.236, votou-se inicialmente por dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 21, parágrafo 4º, de modo que só absolvições em que ficar comprovada a inexistência do fato (artigo 386, I, do Código de Processo Penal) ou que o réu não tenha concorrido para a infração (artigo 386, IV, do CPP) impedem o andamento do processo. Conforme o ministro Alexandre de Moraes, o mesmo não ocorre, no entanto, nas demais hipóteses previstas no CPP, como a absolvição por ausência de provas.
Não obstante, e com a devida vênia, entendemos que, a depender do caso concreto, também se faz possível a comunicação no caso de absolvição criminal por não constituir o fato infração penal (artigo 386, III, do CPP), e sustentamos isto com a ratio decidendi de julgados de ambos os tribunais superiores, conforme demonstrar-se-á.
De fato, pode-se argumentar, e acreditamos que com razão, que o fato de determinada conduta não constituir infração penal não significa dizer, necessariamente, que esta mesma conduta não estaria apta a constituir infração no âmbito do direito administrativo sancionador.
Argumenta-se neste sentido, portanto, que a norma em exame violaria o princípio da proporcionalidade, em sua vertente de proibição de proteção deficiente dos bens jurídicos (Untermass verbot), pois o constituinte veicula imperativo de tutela ao Estado na proteção da moralidade administrativa e do patrimônio público, imposição não observada, em tese, pelo legislador ordinário.

Sob outro vértice, o princípio da vedação ao retrocesso sugere que atingido determinado nível de concretização de direito fundamental não é legítima a intervenção legislativa que recue esse grau de proteção. Antes reservado ao campo dos direitos sociais, o efeito cliquet atualmente é identificado nos vários campos de interesse de tutela estatal, podendo se colher da jurisprudência da Corte Suprema, menções à vedação ao retrocesso ambiental, civil, consumerista, eleitoral, e, em especial, institucional.
Não é possível responsabilizar agente por improbidade
Analisando o mencionado dispositivo, inclusive, Bezerra Filho (2022, p. 651) [2] aduz ser certo que a simples absolvição penal, per se, não afasta ou impede automaticamente que se perquira a responsabilização do agente pelo ato de improbidade administrativa que lhe é imputado, devendo a comunicação das decisões serem analisadas caso a caso, e é justamente aqui que discordamos, respeitosamente, da decisão proferida no REsp 1.991.470, tendo em vista que, no caso retromencionado, o Juízo Criminal concluiu pela não existência do dolo específico do réu, sendo este elemento subjetivo condição de possibilidade para responsabilização por quaisquer dos atos de improbidade administrativa, nos termos do artigo 1º, §2º, da Lei de Improbidade Administrativa.
Ora, conforme Bezerra Filho (2022, p.107), tem-se clara a natureza penal da sanção de improbidade, ao excluir a sua índole de ação civil para ser considera de repressão e de penalidade. Com efeito, aduz Bezerra Filho (2022, p. 107), tratar-se de ação cível com cunho penal diante da veiculação inegável de seus efeitos sancionatórios que são próprios da jurisdição penal em razão da perda ou suspensão de bens jurídicos tutelados pelo direito.
Sobre este ponto, desenvolve Oliveira, inclusive, que a fim de poder julgar as demandas de violações aos direitos processuais a ele direcionadas, o TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) firma um conceito unitário em matéria punitiva dos Estados, a fim de concretizar o conteúdo do que compreendia como matéria penal e poder, assim, decidir sobre as demandas que recebia. O tribunal estabelece um conceito de direito penal em sentido amplo, de modo que o direito administrativo sancionador é entendido, assim, como um autêntico subsistema penal [3].
Por este motivo, e à luz de um pensamento principiológico que sirva de anteparo racional ao direito sancionador, aduz Nobre Júnior (2000, p. 130) [4] que não é despiciendo sustentar que as garantias constitucionais implícitas, inerentes ao Estado democrático de direito (artigo 5, §2, CF), conduzem à aplicação, o quanto possível, dos postulados penais às faltas administrativas, sendo alguns deles: a) legalidade; b) tipicidade; c) culpabilidade; d) proporcionalidade; e) retroatividade da norma favorável; f) non bis in idem; g) non reformatio in pejus.
Dessa maneira, arremata Bezerra Filho (2022, p. 108) que se mostra induvidosa que as sanções por ato de improbidade são de natureza penal pela definição constitucional das penas que exigem individualização para suas aplicações, vez que estão inseridas no rol da Constituição por sua própria descrição, de modo que o direito administrativo sancionador se embasa nos mesmos princípios instrumentais de controle do poder punitivo estatal, em situação idêntica aos regramentos do direito penal.

Eduardo Campos (1965-2014)
Ato contínuo, na Rcl 57.215, julgada em 10/08/23, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, trancou a ação de improbidade administrativa em andamento contra o espólio de Eduardo Campos (PSB), candidato à Presidência da República em 2014, falecido em um acidente aéreo em Santos (SP) durante a campanha. Em 2012, a 2ª Turma do STF rejeitou a denúncia contra um dos acusados, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).
Na ocasião, o Supremo assentou inicialmente que não havia justa causa para a persecução penal. A decisão, definitiva e exauriente, teve seus efeitos estendidos para o campo do direito administrativo sancionador, levando ao trancamento da ação por improbidade da qual também era alvo o senador.
Na ocasião, o STF entendeu que, se não haviam elementos mínimos à instauração da ação penal, seria inviável a continuidade de ação de improbidade em relação ao mesmo contexto. Ao analisar o pedido, o ministro Gilmar Mendes entendeu que se a premissa fática envolve o mesmo contexto objeto da ação de improbidade, autorizando inferir a equivalência, simetria e dependência dos indicadores de realidade, motivo pelo qual a compreensão adotada anteriormente para o coinvestigado deve ser estendida, havendo equivalência da causa de pedir mediata, envolvendo o liame material, o que exige resposta jurisdicional idêntica.
Ausência de justa causa
Neste mesmo sentido, mas fazendo o caminho inverso, no RHC 173.448, julgado em 7 de março de 2023, o colendo Superior Tribunal de Justiça entendeu por trancar uma ação penal, em virtude de ausência de justa causa, face à absolvição do acusado na ação de improbidade administrativa correlata, justamente pela ausência de elemento subjetivo.
No caso, restara demonstrado na ação de improbidade correlata que o Ministério Público não teria se desincumbido de seu ônus probatório, ao não comprovar que determinada pessoa, na qualidade de terceiro (artigo 3º da lei 8.429/92), teria agido dolosamente para induzir ou concorrer para a prática do ato de improbidade administrativa ou dele se beneficiado diretamente.
Dessa forma, como a ação penal recaiu sobre o mesmo fato, a mencionada decisão do STJ entendeu pela ausência de justa causa, argumentando que a inexistência de dolo na esfera civil não pode ser ignorada na esfera penal, uma vez que a tipicidade discutida no âmbito penal não admite a modalidade culposa.
No caso, a decisão da Corte Cidadã entendeu não ser possível que o dolo da conduta do acusado sobre os mesmos fatos discutidos na ação de improbidade administrativa, que reconhecidamente não fora demonstrado, revele-se depois no Juízo Penal, porquanto se trata do mesmo fato. Por consequência lógica, entendemos que a premissa inversa também deve ser verdadeira.
Ademais, é imperioso observar que o RHC 173.448, corretamente, não vinculou a ação penal à ação de improbidade; apenas utilizou-a para a análise probatória da justa causa da ação penal, uma vez que versavam sobre os mesmos fatos.
Portanto, reconhecida a ausência de elemento subjetivo em ação de improbidade correlata sobre os mesmos fatos, e sendo este elemento subjetivo um dos elementos do tipo, a consequência óbvia é que deixa de existir uma das condições da ação penal, e vice-versa.
Faz-se, pois, necessário um diálogo entre as espécies do direito sancionador, de modo que a jurisprudência deve caminhar no sentido de manter a coerência, integridade e moralidade interna do Direito, conforme já defendemos em artigos anteriores [5] [6].
Assim, a partir das alterações promovidas pela Lei 14.230/21, desde que a premissa fática envolva o mesmo contexto fático, ou seja, equivalência, simetria e dependência dos indicadores de realidade, o que parece ser o caso do REsp 1.991.470 ora mencionado, à luz do que fora sustentado, parece-nos que deveria ser aceita a comunicação e influência à seara administrativa, ainda que estivesse a tratar, no caso, de absolvição criminal por não constituir o fato infração penal (artigo 386, III, do CPP).
[1] https://www.conjur.com.br/2024-jul-23/absolvicao-criminal-por-atipicidade-nao-vincula-acao-de-improbidade-diz-stj/
[2] BEZERRA FILHO, Aluizio. Processo de Improbidade Administrativa. Salvador: Juspodivum, 2022.
[3] OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 190
[4] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Sanções administrativas e princípios de direito penal. Revista de Direito Administrativo, v. 219, p. 127-151, 2000
[5] https://www.conjur.com.br/2022-mai-15/opiniao-reflexos-lia-direito-penal/
[6] https://www.conjur.com.br/2023-mai-1/rodrigues-jr-araujo-integridade-direito-sancionador/
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