Cláusula contratual em que o empregado se compromete a não adoecer
28 de fevereiro de 2025, 10h23
Recentemente, viralizou na internet um suposto contrato de trabalho com uma cláusula segundo a qual o trabalhador se comprometia a não adoecer, sob pena de sanções disciplinares, incluindo a rescisão contratual. Tal situação gerou grande repercussão e levantou questionamentos sobre os limites da autonomia contratual e a proteção da saúde do trabalhador.
A cláusula, aparentemente prevista em um contrato de trabalho, estabelecia o seguinte:
“O colaborador compromete-se a não adoecer, devendo agir com diligência na preservação de sua saúde e bem-estar, de modo a garantir a continuidade ininterrupta de suas atividades laborais. Qualquer indisposição deverá ser prontamente resolvida sem impacto à produtividade da empresa.
O descumprimento desta cláusula poderá ensejar medidas disciplinares, incluindo a rescisão contratual, conforme a necessidade e conveniência da organização” [1].
Segundo reportagem da Folha de S.Paulo [2], a cláusula não é verdadeira e teria sido criada pelo ChatGPT ao reescrever um contrato de trabalho.
Princípio da proteção
A alucinação da inteligência artificial [3], cômica por um lado, revela uma total violação ao princípio de proteção do Direito do Trabalho. A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, garante aos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros direitos, a proteção da saúde, higiene e segurança no trabalho. A CLT, por sua vez, prevê as hipóteses em que o empregado pode faltar ao trabalho sem prejuízo do salário, incluindo o afastamento por doença (artigo 473).
Decisão interessante e que remete à hipotética cláusula criada pelo ChatGPT é a da norma convencional que limitou a validade de atestados médicos ou odontológicos a determinado número de dias de afastamento do empregado:
“CLÁUSULA TRIGÉSIMA PRIMEIRA – ABONO DE FALTAS
Serão abonadas e justificadas, inclusive para efeito de férias, as faltas ao serviço decorrentes de: (…) 3 – Atestado Médico – Para efeito do art. 32 da Consolidação das Leis da Previdência Social – CLPS, as empresas aceitarão Atestado Médico subscritos por Médicos ou Dentistas das Entidades Profissionais acordantes ou de Entidades que também mantenham Convênio nos termos do item Convênio e de Instituições da rede Hospitalar de Belém, quando o afastamento do empregado por motivo de doença for no máximo de 3 (três) dias exceto aquelas empresas que possuem Serviço Médico ou Odontológico próprio ou Contratados, nas quais prevalecerão as suas normas internas.
Parágrafo Único – Os atestados médicos antes mencionados somente poderão ser fornecidos a associados do sindicato profissional” [4].

A referida cláusula convencional foi declarada nula, pois não se pode limitar o prazo para a validade de um atestado médico, uma vez que a fixação do prazo decorre de avaliação exclusiva do profissional de saúde.
Por mais que seja absurdo exigir que o empregado não fique doente e mais ainda, puni-lo nesta hipótese, constata-se, na prática, a persistência de certas condutas abusivas por parte de empregadores.
Tais situações manifestam-se, por exemplo, na imposição de cobranças excessivas aos empregados que retornam de licenças médicas ou na criação de situações vexatórias em razão das faltas justificadas.
A anotação das faltas decorrentes de doença na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) do empregado já foi objeto de análise pelo Tribunal Superior do Trabalho, que a considerou apta a configurar dano moral, consubstanciando, portanto, ilícito passível de reparação.
“AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. REGISTROS DE ATESTADOS MÉDICOS NA CTPS. Demonstrada a violação do art. 29º, § 4º, da CLT, nos termos exigidos no artigo 896 da CLT, provê-se o agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. RECURSO DE REVISTA SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. REGISTROS DE ATESTADOS MÉDICOS NA CTPS. REQUISTOS DO ART. 896, § 1º-A, DA CLT ATENDIDOS. Cinge-se a controvérsia à configuração de dano moral a ensejar o direito à indenização em decorrência da anotação de atestados médicos na CTPS, com a finalidade de justificar licenças e faltas do empregado. Além de não haver ordem legal exigindo a anotação na CTPS dos atestados médicos apresentados para justificar licenças e faltas ao emprego, essa conduta ultrapassa os limites do poder diretivo do empregador, mormente porque esse tipo de registro tem impacto negativo quanto à imagem do empregado nas contratações futuras, diante da possibilidade de o trabalhador ser considerado menos saudável ou não assíduo do que os demais candidatos à vaga no emprego, assim a partir de fatos pretéritos relacionados à saúde do trabalhador. Nessas condições, o trabalhador tem como abalada a sua higidez física, mental e emocional, direito fundamental concernente à vida privada e à intimidade, que abrange a garantia à boa saúde, porquanto não há como ignorar o prejuízo moral a ensejar a responsabilidade civil do empregador decorrente da possibilidade de se adotar critério discriminatório no processo de contratação de empregado, uma vez que tal lançamento passa a constar no documento profissional de apresentação obrigatória na admissão no emprego. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST – RR: 00010467220135200006, Relator.: Augusto Cesar Leite De Carvalho, Data de Julgamento: 14/06/2023, 6ª Turma, Data de Publicação: 16/06/2023)
Assim, podemos concluir que é totalmente desarrazoada a exigência de que o empregado se comprometa a não adoecer, sendo fundamental, em contrapartida, que os empregadores promovam um ambiente de trabalho saudável e seguro, investindo em programas de prevenção de doenças e de promoção da saúde.
[1]https://www.instagram.com/reel/DGRgNusJj70/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==
[2] Trabalho: contrato pode ter cláusula contra doença? – 27/02/2025 – Mercado – Folha
[3] Alucinação é o fenômeno no qual a inteligência artificial cita fatos inexistentes ou imprecisos para dar uma resposta sobre um determinado assunto.
[4] TST – RO: 00002462220185080000, Relator.: Ives Gandra Martins Filho, Data de Julgamento: 10/12/2018, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: 19/12/2018
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