Opinião

Projeto de Lei 3/2024: atropelando o sistema de insolvência

Autor

  • Mayara Roth Isfer Osna

    é mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) associada da Advocacia Felippe e Isfer diretora acadêmica do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial.

26 de março de 2024, 11h14

As últimas semanas foram intensas e repletas de emoções para os profissionais que atuam no âmbito do Direito da Insolvência. O motivo — já bastante divulgado na mídia — é a tramitação, em regime de urgência, do PL 3/2024, o qual altera radicalmente a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005).

Não foram poucas as manifestações contrárias de associações, de comissões, de entidades, de institutos e de profissionais especializados na matéria. Apesar disso, a tramitação do PL segue aceleradíssima, com apresentação de parecer para os deputados no último dia 21 e votação agendada já para esta terça-feira (26/3).

Até o momento, contudo, não foi possível encontrar argumentos que efetivamente justifiquem essa velocidade — a qual tem atropelado, inequivocamente, importantes debates acadêmicos e práticos. Respeitosamente, o que se tem visto no ambiente legislativo são discussões sem dados empíricos e com relativismos constantes — fruto, naturalmente, da suposta urgência.

Enfim, a aceleração da discussão tem prejudicado a ampliação dos debates de forma materialmente democrática e as razões dessa urgência jamais foram efetivamente esclarecidas.

Velocidade estarrecedora e interesses pontuais

Fato é que, há pouquíssimos anos, no final de 2020, houve uma ampla reestruturação do regime de insolvência em âmbito nacional. Ainda estamos sentindo o peso das modificações; a jurisprudência sequer iniciou sua consolidação decorrente da alteração legislativa, não se podendo falar em certezas quanto à forma de aplicação dos institutos ou em segurança jurídica. E agora, de forma absolutamente surpreendente, os operadores do sistema são novamente colocados em um lugar de dúvida, de obscuridade e de insegurança.

Conforme recentemente apontado pelo doutor Pedro Bortolini, juiz de Direito e especialista no tema, a velocidade das alterações legislativas no que se refere à Lei 11.101/2005 é estarrecedora. Segundo assevera, comparando o regime atual ao anterior, “em 60 anos, o DL 7.661/1945 sofreu alteração de pouco mais de 10%, enquanto a Lei 11.101/2005, em um terço desse tempo, foi alterada sete vezes mais”.

É de se questionar, todavia, se de fato tivemos alterações na ordem econômica e na dinâmica negocial que justifiquem tantas mudanças — ou se, em verdade, elas são fruto de interesses pontuais, nem sempre justificáveis do ponto de vista teórico.

Remuneração dos administradores e gestor fiduciário

De todo modo, seja por conta do peso da questão, seja para tentar justificar o (data venia) injustificável, o calor da emoção foi grandemente sentido no discurso da relatora do projeto, deputada Dani Cunha, a qual lançou farpas para todos os lados, em um discurso afiadíssimo contra os administradores judiciais — uma das figuras que sofre grandes alterações com o PL.

Spacca

Em determinado momento, chegou a pontuar “me pergunto se um administrador judicial consegue pôr sua cabeça no travesseiro sabendo que sua remuneração impediu um processo de ser concluído e impediu centenas, milhares, de trabalhadores de liquidarem suas posições e receber o que lhes é de direito”.

Esse ataque generalizado, porém, não parece ser corroborado pela ampla maioria dos processos concursais, nos quais — por falta de recursos — os administradores sequer são remunerados.

Ainda, afirmações na linha de que, atualmente, o arbitramento dos honorários é absolutamente discricionário ao juízo contrariam nossa própria legislação, a qual prevê uma clara limitação: “em qualquer hipótese, o total pago ao administrador judicial não excederá 5% (cinco por cento) do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial ou do valor de venda dos bens na falência.” (§1º, do artigo 124, LREF).

Por outro lado, a alternativa trazida pelo PL — gestor fiduciário — não resolve o suposto problema relativo à remuneração, vez que não há qualquer limitação atinente a tal ponto prevista para esse profissional. Pelo contrário: delega-se essa atividade aos maiores credores, cujo interesse, conforme sabido, nem sempre coincide com a função social da empresa e a manutenção da sua atividade.

Não há clareza, então, em como essa alteração beneficiará a transparência e a lisura do sistema.

Oposição ao plano de falência

Outro ponto relevante é a exigência de percentual mínimo para a oposição ao plano de falência, prevista no §1º, do artigo 82-D — conforme modificativo. Ora, não há dúvidas de que tal exigência fere direitos essenciais dos credores mais vulneráveis, que ficarão impedidos de questionar a forma de alienação dos ativos da massa, os eventuais deságios concedidos e a própria medida de satisfação de seu crédito.

Na mesma linha, o inciso II, do §3º, artigo 82-D, nos termos do PL, dispõe que “as classes de credores para as quais não haja expectativa de nenhum pagamento, não terão direito de voto (…)”. Entretanto, não é difícil imaginar hipótese — absolutamente corriqueira, vale destacar — em que ativos da massa sejam encontrados somente meses depois da decretação da quebra.

Vê-se, portanto, que a expectativa de recebimento no processo falimentar é absolutamente volátil, podendo ser significativamente alterada em um curto espaço de tempo. Ainda, fato é que a supressão de direito de voto implica grave violação ao princípio da par conditio creditorum, pedra de toque do sistema de insolvência brasileiro.

Esses pontos, ressalta-se, são apenas alguns breves exemplos do teor problemático do PL. Mais que isso, eles evidenciam o equívoco e o perigo inerente à (injustificada) urgência atribuída à sua tramitação. Não há dúvidas acerca da magnitude das alterações propostas, as quais desafiam e exigem estudo aprofundado, debate sério e argumentos sólidos.

Autores

  • é sócia da Advocacia Felippe e Isfer, mestre em Direito Empresarial pela USP, graduada em Ciências Contábeis pela Fipecafi e em Direito pela UFPR, diretora acadêmica do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR) e do Instituto de Direito Recuperacional (Idre) e conselheira do Instituto Professor Assis Gonçalves.

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