Opinião

Princípio dos elementos valorativos do mundo das eleições

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22 de fevereiro de 2024, 19h38

Princípios são fundamentos normativos, alicerces ou premissas estabelecedoras de coerência e integridade ao ordenamento jurídico. Em outras palavras, os princípios mantêm natureza ou qualidade de essencialidade ou ontologia com o direito, em vista de seu caráter normogenético e por serem colunas ou ratio de regras jurídicas (CANOTILHO, 1993, p. 166-167).

Tal ótica não é diferente no direito eleitoral, haja visto que este campo de estudo, embora auxiliado por ditames dos processos civil e penal, abarca princípios específicos do cenário singular das eleições, com o objetivo de garantir a ética e a lisura da democracia, assim como dialogar com os direitos e garantias constitucionais.

Este artigo leva em consideração a finalidade do direito eleitoral para além de um processo formalista, ou seja, uma mera sucessão de atos desvinculada de seu objetivo de intermediar a vontade popular e possibilitar a legitimação do exercício do poder, com eleições livres e justas (TAVARES, 2018, p. 7-8).

Nesse mesmo entendimento, leciona BARROS (2020, p. 61),

Os princípios estruturantes do processo eleitoral democrático dão sentido a todos os demais princípios e regras eleitorais, pois são dotados de uma dimensão jurídica que tem como principal escopo informar, orientar e inspirar o próprio ordenamento jurídico, iluminando a interpretação e a aplicação das regras durante o desenvolvimento de um pleito eleitoral. (BARROS, 2020, p. 61).

Princípio dos elementos valorativos
À vista deste introito, sobressai-se o princípio dos elementos valorativos do mundo das eleições. É válido ressaltar que sempre em interligação com o princípio mencionado estão os valores fundamentais que compõem o direito eleitoral, a exemplo da transparência, das isonomias material e formal e da participação democrática.

Nesse contexto, o artigo 23, da Lei Complementar 64/90 (LC 64/90), expressa o princípio dos elementos valorativos do mundo das eleições:

Art. 23. O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

Com base no dispositivo legal acima, a hermenêutica realizada pelo órgão julgador, diante do caso concreto, possui vasto campo de cognição, sobretudo pela liberdade na consideração de circunstâncias ou fatos não indicados ou alegados pelas partes (“mundo ou cotidiano das eleições” propriamente dito). Ensina BARROS (2020, p. 61) que não subsiste no direito eleitoral o brocardo latino “quod non est in actis non est in mundo” (o que não está nos autos não existe no mundo).

Spacca

O balizador estabelecido pela LC 64/90 para concretização da jurisdição é vago: interesse público de lisura eleitoral, embora busque preservar os princípios constitucionais estampados no artigo 14, caput e §9º, da Constituição 1988 (CRFB/88).

É importante esclarecer que, para parte da doutrina eleitoral, a imparcialidade do juiz não é maculada quando este se vale do princípio dos elementos valorativo do mundo das eleições. Isso porque o órgão julgador não está legitimado a dar provimento ao pleito autoral com base em fatos não narrados na exordial, mas, uma vez alegados na petição inicial, o juiz pode formar sua convicção livremente (BARROS, 2020, p. 62), com vistas à eficácia social do direito (ministro Torquato Jardim, TSE, Recurso nº 9.354, Porto Alegre/RS, Acórdão nº 13.428, Revista de Jurisprudência do TSE, v. 6, nº I, p. 332).

Nesse mesmo sentido, há julgado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE):

11. Segundo o art. 23 da LC 64/90, de constitucionalidade reconhecida pela Suprema Corte, “o Tribunal formará sua convicção pela ivre apreciação dos fatos públicos e notórios (…) (TSE, RO-El nº 060140770 Acórdão CURITIBA – PR, Relator(a): Min. Benedito Gonçalves. Julgamento: 16/05/2023 Publicação: 02/06/2023); TSE REspEl nº 61576  Acórdão  UNIÃO DA VITÓRIA – PR, Relator(a): Min. Benedito Gonçalves. Julgamento: 23/06/2022 Publicação: 02/08/2022); TSE RO-El nº 060400451  Acórdão  CURITIBA – PR, Relator(a): Min. Luis Felipe Salomão. Julgamento: 19/10/2021 Publicação: 13/12/2021).

Em arremate: 3. Não viola o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa o fato de o julgador formar sua convicção pela livre apreciação de fatos públicos e notórios, de indícios e presunções e da prova produzida, atentando para fatos
e circunstâncias, ainda que não alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral, a teor dos arts. 7º, parágrafo único, e 23 da LC 64/90. (TSE.AC nº 18947  Acórdão  PORTO VELHO – RO – Relator(a): Min. João Otávio De Noronha. Julgamento: 30/09/2015 Publicação: 24/11/2015).

 O Tribunal Regional Eleitoral do Piauí (TRE-PI) já aplicou o princípio dos elementos valorativos do mundo das eleições em suas decisões, de maneira a sopesá-lo com outros subsídios materiais constantes nos autos, com o fito de formar standard probatório adequado ao caso sub judice. Veja-se:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. ELEIÇÕES 2016. CANDIDATO A VEREADOR. APROVAÇÃO DAS CONTAS SEM RESSALVAS. RECURSO DESPROVIDO. 1 – A adoção do princípio dos elementos valorativos do mundo das eleições deve ser conjugada com os elementos materiais existentes no processo. 2 – Contas aprovadas sem ressalvas. 3 – Recurso desprovido. (PRESTAÇÃO DE CONTAS Nº 166-31.2016.6.18.0044 – CLASSE 25. ORIGEM: RIBEIRO GONÇALVES-PI (44ª ZONA ELEITORAL)).

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. ELEIÇÕES 2016. CANDIDATO A VEREADOR. PRINCÍPIO DOS ELEMENTOS VALORATIVOS DO MUNDO DAS ELEIÇÕES. AUSÊNCIA DE RECIBO ELEITORAL. FALHA FORMAL. APROVAÇÃO DAS CONTAS COM RESSALVAS. RECURSO DESPROVIDO. 1 – A adoção do princípio dos elementos valorativos do mundo das eleições deve ser conjugada com os elementos materiais existentes no processo. Assim, em não se verificando ter o candidato agido de má-fé, tendo, inclusive, declarado devidamente as receitas e despesas, não há que se impor a desaprovação das contas, sobretudo quando constatado que a única irregularidade persistente em nada afetou-lhes a lisura, quando analisadas em sua integralidade. 2 – Contas aprovadas com ressalvas. 3 – Recurso desprovido.

O Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1082 (ADI 1082), julgou constitucional o artigo 23, da LC 64/90. Veja-se o magistério do ministro Marco Aurélio:

“A possibilidade de o juiz formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária, e fatos publicamente conhecidos ou das regras de experiência não afronta o devido processo legal, porquanto as premissas da decisão devem ser estampadas no pronunciamento, o qual está sujeito aos recursos inerentes à legislação processual (…) Considerada a existência de relação direta entre o exercício da atividade probatória e a qualidade da tutela jurisdicional, a finalidade de produção de provas de ofício pelo magistrado é possibilitar a elucidação de fatos imprescindíveis para a formação da convicção necessária ao julgamento do mérito. É claro que se recomendam temperamentos na aplicação da regra. A atenuação do princípio dispositivo no direito processual moderno não serve a tornar o magistrado o protagonista da instrução processual. A iniciativa probatória estatal, se levada a extremos, cria, inegavelmente, fatores propícios à parcialidade, pois transforma o juiz em assistente de um litigante em detrimento do outro. As partes continuam a ter a função precípua de propor os elementos indispensáveis à instrução do processo, mesmo porque não se extinguem as normas atinentes à isonomia e ao ônus da prova.”

Críticas
Por outro lado, há críticas veementes à aplicação do artigo 23, da LC 64/90 — ótica pela qual o autor deste artigo concorda. Isso porque o dispositivo em questão carrega termos nitidamente imprecisos, como “interesse público de lisura eleitoral”. Essa questão manifesta insegurança jurídica ao deixar ao subjetivismo do órgão julgador o preenchimento do conceito de interesse público e, com efeito, sua densidade e concretude.

Além disso, o aval dado ao órgão julgador para decidir com base em “circunstâncias ou fatos não indicados ou alegados pelas parte” é gravíssimo, já que submetido à fragilidade da racionalidade humana, aos interesses e desejos de quem julga, violando frontalmente a isonomia entre candidatos e partidos políticos, assim como a uniformização da jurisprudência eleitoral. Literalmente, “cada cabeça, uma sentença”. “Cada coração, um sentimento”.

Não é sustentável que no devido processo legal e, principalmente, no processo democrático eleitoral, o juiz decida, de ofício, com base em presunções, sob pena de favorecer o ativismo judicial e de violar o artigo 371, do Código de Processo Civil. Para contrabalancear tal lógica, a Justiça Eleitoral editou a Resolução TSE nº 23.478/2016, que, em seu artigo 3º, afirma:

Art. 3º Aplicam-se aos processos eleitorais o contido nos arts. 9º e 10 do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).

Com efeito, valoriza-se o contraditório e a ampla defesa de maneira a preservar a integridade do processo, assim como a cadeia de custódia probatória. E, não menos importante, visa-se reduzir manifestações totalmente subjetivas do órgão julgador.

 

Referências
BARROS, Francisco Dirceu. Manual de Prática Eleitoral. 5 ed. – Leme, SP: JH Mizuno, 2020.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993

TAVARES, André Ramos. Princípios constitucionais do processo eleitoral. Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político – REDESP, São Paulo, n. 3, p. [1-36], jul./dez. 2018.

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