Opinião

Retenção de IR na fonte pelos estados e municípios e imunidade das estatais

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24 de março de 2024, 13h17

Com o julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 1.130, pelo Supremo Tribunal Federal, foi pacificado o entendimento de que “pertence ao Município, aos Estados e ao Distrito Federal a titularidade das receitas arrecadadas a título de imposto de renda retido na fonte incidente sobre valores pagos por eles, suas autarquias e fundações a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para a prestação de bens ou serviços, conforme disposto nos arts. 158, I, e 157, I, da Constituição Federal”.

A partir disso, diversos municípios, firmando-se nas recomendações de suas confederações e associações, passaram a se dedicar a uma intensa atividade de revisão de suas rotinas administrativas com a notificação de seus contratados sobre a aplicação imediata do entendimento do STF, levando ao desconto e retenção dos valores que seriam repassados em função dos contratos celebrados.

Esse movimento se intensificou especialmente com a edição da Instrução Normativa RFB nº 2.145, de 26 de junho de 2023, que modificou Instrução Normativa RFB nº 1.234, de 11 de janeiro de 2012 com o objetivo de instrumentalizar a aplicação do referido julgado.

Imunidade tributária das estatais

A questão possui diversas nuances, que já foram exaustivamente debatidas, mas surge ainda um novo ponto que merece atenção, ainda que bem específico, mas que demanda alguns apontamentos específicos sobre a aplicação desses julgados e dos normativos da Receita Federal sobre os contratos que são firmados pela empresas estatais que gozam de imunidade.

O pano de fundo da questão aqui tratada diz respeito ao julgamento pelo STF do Tema nº 1.130 de Repercussão Geral, para que essa decisão seja colocada em diálogo direto com o que foi decidido no Tema nº 1.140, do Supremo, que versa sobre a imunidade tributária das empresas estatais, especialmente as que prestam serviços públicos, para que se estabeleçam os recortes necessários na aplicação do Tema nº 1.130, viabilizando a sua interpretação completa.

Noutras palavras, o destino a que se chega é um só: o da impossibilidade de retenção do Imposto de Renda em decorrência dos instrumentos jurídicos firmados entre as empresas públicas e os estados e municípios.

Nesta oportunidade serão apresentados os argumentos que permitem tal conclusão, que é fundada em dois motivos principais: o primeiro, que alcança até uma questão operacional, é a configuração de hipótese expressa em que não haverá retenção nos termos do artigo 4º, XV, da Instrução Normativa RFB nº 1.234, de 11 de janeiro de 2012, com as modificações feitas pela Instrução Normativa RFB nº 2145, de 26 de junho de 2023; o segundo decorre das modificações ocorridas quando da promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que cuidou da reforma tributária, que joga luz sobre os fundamentos e razões que estão por detrás do entendimento aqui retratado.

Imposto de Renda – titularidade dos recursos retidos – imunidade tributária – aplicação dos temas nº 1.130 e 1.140, do STF – configuração de hipótese de não retenção – IN RFB nº 1.234, de 2012

A retenção de Imposto de Renda pelos municípios dos valores pagos a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para a prestação de bens ou serviços, e sua titularidade, foi objeto de julgamento recente pelo STF, ao apreciar do Tema nº 1.130, de Repercussão Geral. Para tratar da problemática aqui vertida é necessário que se interprete a decisão em cotejo com outra manifestação da corte, quando do julgamento do Tema nº 1.140, de Repercussão Geral, sendo fundamental a transcrição de ambos para seu completo entendimento:

Tema 1.130 – Titularidade das receitas arrecadadas a título de imposto de renda retido na fonte incidente sobre valores pagos pelos Municípios, suas autarquias e fundações a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para a prestação de bens ou serviços.

Tese: Pertence ao Município, aos Estados e ao Distrito Federal a titularidade das receitas arrecadadas a título de imposto de renda retido na fonte incidente sobre valores pagos por eles, suas autarquias e fundações a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para a prestação de bens ou serviços, conforme disposto nos arts. 158, I, e 157, I, da Constituição Federal.

Tema 1.140 – Abrangência da imunidade tributária recíproca, prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição Federal, quando presente a prestação de serviço público essencial por sociedade de economia mista, ainda que mediante cobrança de tarifa dos usuários.

Tese: As empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição Federal, independentemente de cobrança de tarifa como contraprestação do serviço.

Em função do julgamento do Tema nº 1.130, a Receita Federal editou a Instrução Normativa RFB nº 2.145, de 26 de junho de 2023, com a finalidade de adaptar a Instrução Normativa RFB nº 1.234, de 11 de janeiro de 2012 e regulamentar a referida situação, promovendo a inclusão do seguinte dispositivo:

“Art. 2º-A. Os órgãos da administração pública direta dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, inclusive suas autarquias e fundações, ficam obrigados a efetuar a retenção, na fonte, do imposto sobre a renda incidente sobre os pagamentos que efetuarem a pessoas jurídicas pelo fornecimento de bens ou prestação de serviços em geral, inclusive obras de construção civil.   (Incluído(a) pelo(a) Instrução Normativa RFB nº 2145, de 26 de junho de 2023) […]”

Até este ponto, trata-se apenas de instrumentalização do conteúdo do que foi decidido pelo STF, que possui força vinculante para a administração pública. Porém, o dispositivo não se encontra isolado no ato normativo, sendo imperiosa a sua aplicação em cotejo com os demais artigos, especialmente o que trata das hipóteses em que não haverá retenção:

“Art. 4º. Não serão retidos os valores correspondentes ao IR e às contribuições de que trata esta Instrução Normativa, nos pagamentos efetuados a:

XV – órgãos da administração direta, autarquias e fundações do Governo Federal, Estadual ou Municipal, observado, no que se refere às autarquias e fundações, os termos dos §§ 2º e 3º do art. 150 da Constituição Federal;”

O dispositivo em questão retrata, exatamente, a hipótese de imunidade recíproca entre os entes federativos e possui íntima relação com a regra constitucional que regula o exercício do poder de tributação pelos Entes federativos, sendo não apenas reprodução do texto da Constituição da República, mas também portador das interpretações que lhe foram dadas pelo Supremo Tribunal Federal a das conclusões a seu respeito. Eis o seu teor:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

VI – instituir impostos sobre: (Vide Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

  1. a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
  • §2º A vedação do inciso VI, “a”, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo poder público e à empresa pública prestadora de serviço postal, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

  • §3º – As vedações do inciso VI, “a”, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.”

 

Ocorre que, exatamente em cima destes dispositivos, o STF se debruçou para poder concluir, na esteira do que foi consignado no Tema nº 1.140, reiterando diversos precedentes [1], que “As empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição Federal, independentemente de cobrança de tarifa como contraprestação do serviço”.

Divulgação

Ora, não se pode admitir que a interpretação acima realizada, de efeito vinculante para a administração pública de todas as esferas federativas, admita recorte em relação à sua aplicação a partir de uma instrução normativa de um órgão administrativo, norma de estatura infralegal e que não pode suplantar sequer a lei que regulamente, quanto mais sobrepor o texto da Constituição. A melhor exegese ao caso, com garantia de certeza a seu respeito, é a compatibilização das decisões da corte máxima do país com a aplicação da disciplina administrativa vertida nos seus atos normativos internos.

Permite-se, portanto, a seguinte conclusão: ainda que sejam de titularidade dos Municípios os valores que devem ser retidos na fonte, incidente sobre valores pagos por eles, suas autarquias e fundações a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para a prestação de bens ou serviços (Tema 1.130), tal situação não se verifica em relação às empresas públicas prestadoras de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, porquanto está é beneficiária da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, VI, ‘a’ (Tema 1.140), sendo enquadrada, portanto, na hipótese de não retenção prevista no art. 4º, XV, da IN RFB nº 1.234/2012.

Reforma tributária – ampliação das hipóteses de imunidade recíproca – positivação de entendimento jurisprudencial consolidado – extensão às empresas públicas

Mereceu destaque o §2º, do artigo 150, da CF, sublinhado acima, não somente por ser decorrente de redação dada pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023, mas porque, ao prever expressamente a sua extensão à empresa pública prestadora de serviço postal, significa a positivação do entendimento há muito já consolidado na jurisprudência nacional a respeito dessa questão, que merece algumas linhas a seu respeito.

No Parecer Final da PEC 45/2019 na CCJ (Parecer SF Nº 88, DE 2023), de autoria do senador Eduardo Braga, e que resultou na promulgação da reforma tributária através da EC nº 132/2023, restou consignado o seguinte a respeito da mudança constitucional:

As Emendas de nº 688 e 784, do Senador Efraim Filho, preveem que os entes da Federação não poderão cobrar impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços dos Correios. Também submetem os Correios a regime específico de tributação. Entendemos que, por se tratar de empresa pública que presta serviço público, não faz sentido a cobrança de impostos pelos entes da Federação, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Por isso acatamos esta parte da emenda. Quanto ao regime específico de tributação, decidimos não acatar por entender não ser necessário.

 

Há trecho didático nas razões de justificação das Emendas de nº 688 e 784, do senador Efraim Filho, que merecem transcrição pela sua clareza ao tratar sobre a matéria:

Posteriormente, o debate sobre a possibilidade de extensão dos privilégios fiscais às empresas públicas – em especial no tocante à imunidade – foi submetido ao Judiciário tendo o STF reconhecido a distinção entre as empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas que exploram atividades econômicas. Em síntese, nos diversos julgados do STF sobre o tema, prevaleceu o entendimento de que as empresas públicas prestadoras de serviço público se diferenciam daquelas que funcionam como instrumento de participação do Estado na economia, pois estas são consideradas entidades estatais que exploram atividade econômica regida pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, conforme se depreende do julgamento no RE 407.099-5/RS. Por outro lado, assemelhando-se à natureza jurídica de autarquia, as empresas públicas que prestam serviço público gozam do benefício da imunidade tributária recíproca.

 

Embora, com a devida vênia, tenha-se perdido a oportunidade de enfrentar o tema e pacificar, de forma expressa, o entendimento de que a referida imunidade tributária é aplicável a todas as empresas públicas prestadoras de serviço público, as razões acima declinadas já são suficientes para denotar qual o sentido pretendido pela referida norma constitucional.

Nesse sentido, por semelhança de finalidades e objetos sociais, de igual modo se aplica a referida imunidade em especial às demais empresas públicas, com capital social exclusivamente público, prestadoras de serviço público, que não atuem em regime concorrencial e que não distribuem lucros ou resultados a seus sócios ou administradores, sendo revertidos inteiramente em favor da própria atividade desempenhada.

Traçadas estas premissas, é possível então concluir, com segurança jurídica, que o caso vertente enquadra-se nas hipóteses do artigo 4º, inciso XV, da IN RFB nº 1.234/2012, na medida em que este dispositivo prevê que não haverá retenção na hipótese configuradora de imunidade recíproca. A própria Receita Federal já decidiu nesse sentido [2].

Conclusão

Assim, em análise e interpretação dos precedentes aqui apresentados, ainda que sejam de titularidade dos municípios e estados os valores que devem ser retidos na fonte, incidente sobre valores pagos por eles, suas autarquias e fundações a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para a prestação de bens ou serviços (Tema 1.130), tal situação não se verifica em relação às empresas públicas prestadoras de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, porquanto está é beneficiária da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, VI, ‘a’ (Tema 1.140), sendo hipótese enquadrada, portanto, na hipótese de não retenção prevista no artigo 4º, XV, da IN RFB nº 1.234/2012.

 


[1] ACO 3.410/SE; RExt 627.051/PE, Tema 402; RExt 773.992 BA, Tema 644; ACO 3.469/DF.

[2] Conforme Solução de Consulta Cosit Nº 301, 1 dezembro2023 e Solução de Consulta DISIT/SRRF08 Nº 8031, de 5 de dezembro de 2016

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