Diário de Classe

Receita para se comer queijo (parte 1)

Autor

  • Bianca Roso

    é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos na linha de pesquisa: Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos bolsista Capes/Proex mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM com bolsa Capes pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão: Phronesis: Jurisdição e Humanidades e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

23 de março de 2024, 8h00

[…] A Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: “Não quero faca nem queijo; quero é fome”. O comer não começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo. Se não tenho fome, é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo… […] Os cozinheiros bem que podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que a Babette e a Tita realizaram suas feitiçarias… […] Babette e Tita, feiticeiras, sabiam que os banquetes não se iniciam com a comida que se serve. Eles se iniciam com a fome. A verdadeira cozinheira é aquela que sabe a arte de produzir fome… […] A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao aluno, provocar a fome… Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele acabará por fazer uma maquineta de roubar queijos. Toda tese acadêmica deveria ser isso: uma maquineta de roubar o objeto que se deseja… [1]

Se você chegou até aqui, já deve ter percebido que esta coluna, na verdade, não é uma receita para se comer queijo. Ora, são tempos difíceis para as pesquisadoras (es) e professoras (es). Portanto, hoje em dia, precisamos de, no mínimo, criatividade para sermos ouvidos e lidos.

Ironias à parte, o trecho acima, extraído de Ao Professor, com Carinho, escrito por Rubem Alves, assemelha-se muito à vida acadêmica e ao ofício da pesquisa. As diferentes trajetórias da vida acadêmica e do ofício da pesquisa envolvem perspectivas de contribuição para um mundo melhor, mas também apresentam desafios, perrengues e, sobretudo, angústias, nesse intervalo entre a fome e o objeto que se deseja. O professor argentino Luis Alberto Warat acreditava na função transformadora da angústia. Ele dizia que a tarefa do professor era provocar angústia nos alunos, a qual chamava de “angústia epistemológica”.

A angústia é um fenômeno moderno. O psicanalista austríaco Sigmund Freud [2] entendeu bem isso e buscou explicar o papel da angústia. Em sua teoria revisada sobre ela, a angústia torna-se a reação adaptativa do organismo ao meio em que vive. Seguindo essa intenção, ele verifica que a angústia não é enfatizada enquanto reação patológica, mas enquanto reação adaptativa do organismo humano, cuja condição é uma falta inata na capacidade de dominar adequadamente os estímulos internos e externos.

Mas qual o papel da angústia epistemológica para construção de uma maquineta de roubar o objeto que se deseja?

Nosso orientador, o professor Lenio Streck, ensinou que somente o contato com o conhecimento crítico e reflexivo pode promover o rompimento com as “cartografias pré-modernas”. Essas cartografias que asseguram as nossas certezas, memória, mitos e heróis. E isso pode angustiar o jurista que, inscrito nesse imaginário, encontra elementos divergentes, os quais cedo ou tarde terá de enfrentar.

Perguntas antes das respostas

No ofício da pesquisa não é diferente. Nos deparamos com uma série de conceitos, elementos e perspectivas que necessitam de enfrentamento. Não conhecemos e dominamos tudo. O conhecimento não é algo dado e estático, mas uma estrutura em movimento. Perguntas antes das respostas, eis a grande questão dentro dessa configuração.

Sua construção não é tarefa fácil, ela exige de nós comprometimento e muita coragem. Isso porque quem faz pós-graduação é um trabalhador da pesquisa que tem como produto o conhecimento produzido. Afora as interseccionalidades de gênero, raça e classe social, cada uma de nós sabe as dificuldades deste ofício, mas também as delícias do seu caminhar.

O seu enfrentamento exige intermediação para a transformação da realidade que nos causa angústia. Isso porque esse produto afetará a sociedade e a nossa relação com o mundo da vida. Democracia, direitos sociais, cidadania ocorrem como uma conquista intermediada [3]. Mas perceber isso pressupõe uma utilização livre e crítica da literacia [4].

A liberdade de pensamento e de expressão e a reflexão crítica são as duas condições que toda sociedade, todo governo, todo sistema educativo deve garantir e estimular. Sem liberdade e sem espírito crítico não há renovação nem aprofundamento da literacia. E quando liberdade e espírito crítico são ameaçados, para defendê-los é necessário que a comunidade científica se mantenha firme, inalterável e irreverente, custe o que custar.

Engajamento permanente

Darcy Ribeiro, em seu texto Universidade Necessária, acentua o papel obrigatoriamente político das instituições em que estudantes e professores deveriam ter uma liberdade ilimitada de pensamento. Ele ressalta que as ideias, as utopias, devem nos fazer mover em prol da transformação “radical” da realidade, particularmente, das universidades frente ao conformismo com a modernização reflexa.

A ciência precisa de liberdade para ser criativa e progredir. A luta pela autonomia da ciência e das suas instituições, face à opressão e à repressão, é um imperativo urgente que deve nos unir. O ofício da pesquisa também é esse.

Manter o permanente engajamento na produção do conhecimento novo para transformação da realidade. Navegar e sair em busca da ilha desconhecida. Reconhecer que há sempre novas ilhas a serem conhecidas e há sempre algo de desconhecido nas ilhas já conhecidas.

De fato, essa é uma travessia complexa, mas também recompensadora. Na medida em que defende a liberdade de escolha e de pensamento, realiza-se no respeito pela verdade e pela equidade. Neste texto, buscamos defender este ofício e alertar sobre a sua responsabilidade, principalmente em contextos ameaçadores. Afinal, não são fáceis os tempos que vivemos. Portanto, os pesquisadores deverão encarar reflexivamente as imposições da facticidade, contudo, é o caminho que realmente importa, como refere Heidegger (Wege – nicht Werke – caminhos e não obras).


[1] ALVES, Rubem. Ao professor, com carinho. São Paulo: Paidós, 2021.

[2] FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras Completas, v. 20. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p.107-201.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito – Hermenêutica. 1.ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

[4] MORAIS, José; KOLINSKY, Régine. Literacia científica: leitura e produção de textos científicos. Educar em Revista, p. 143-162, 2016.

 

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, bolsista Capes/Proex, mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa Capes, pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão Phronesis: Jurisdição e Humanidades e do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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