Opinião

Os três papéis fundamentais da União

Autores

  • Adilson de Paulo de Almeida Júnior

    é bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) membro pesquisador do Grupo de Estudos em Meio Ambiente e Direito (Gemadi) e do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos Comunicação e Mídia e membro das comissões de Direito Público e de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – 5ª Subseção de Volta Redonda (RJ).

  • Ana Alice De Carli

    é professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação "lato sensu" em Residência Jurídica na UFF/VR doutora e mestre em Direito Público e Evolução Social especialista em Direito Público pesquisadora e professora do programa "stricto sensu" em Bioética Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFF/UFRJ/Fiocruz) e do mestrado em Tecnologia Ambiental (UFF/VR).

22 de março de 2024, 21h15

A Constituição de 1988 não é intuitiva no tocante aos papéis institucionais da União, mas isso não significa dizer que eles não estejam albergados nos artigos do seu texto. Nesse contexto, este breve ensaio acadêmico objetiva esclarecer, sob a perspectiva didática, quais seriam essas funções institucionais deste ente federal brasileiro.

Como é cediço, o Brasil adotou a forma de Estado federal com a proclamação da República, em 1889, sendo posteriormente prevista na primeira Constituição Republicana de 1891. A Federação brasileira nasceu a partir de um movimento centrífugo, ou seja, o regime anterior, que era de Estado unitário, resolveu pulverizar o poder político entre os estados-membros.

Mais tarde, com a Constituição de 1988, a pulverização de poder político foi ampliado com a elevação dos municípios ao patamar de entes federados.

Nesse contexto insere-se a relevância da União para desempenhar três papéis fundamentais da Federação, quais sejam: 1) ente político; 2) ente coordenadora da Federação, 3) presentante do Brasil no exterior.

A princípio, o termo “União” poderia ensejar uma interpretação que, pela lógica designativa, apreenderia seu significado como a associação dos outros entes federativos autônomos. Entretanto, tal conceito não é correto, uma vez que se refere ao da própria República Federativa do Brasil.

Esta, sim, com fulcro no artigo 1º da Constituição Federal, é “formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal”. Desse modo, percebe-se que o sistema político está dividido em três esferas: União, estados e municípios, além do Distrito Federal, cada qual considerado um ente político da República, sendo esta a primeira forma de se vislumbrar a União.

Competências específicas da União

Como ente político, a União apresenta apenas autonomia, eis que se insere, no Direito Constitucional, ladeando os demais membros da Federação, conforme artigo 18 da Magna Carta de 1988: “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” [1].

Assim, possuindo autonomia político-administrativa, semelhantemente aos outros entes federativos, a União não goza de poder hierárquico sobre eles. Isso significa, de modo mais pragmático, que ela não é superior a um pequeno município do sul-fluminense, por exemplo (o que remete ao próprio sistema de repartição constitucional de competências).

Nessa lógica de estrutura de organização político-administrativa da República, a União possui competências específicas em matérias de interesse nacional, por exemplo, para emitir moeda (CF, artigo 21, VII); manter o serviço postal e o correio aéreo nacional (CF, artigo 21, X); legislar sobre comércio exterior e interestadual (CF. artigo 22, VIII); legislar sobre Direito Processual, disciplinar o Sistema Financeiro Nacional e para editar normas gerais de Direito Financeiro (CF, artigo 22, I e VII; artigo 24, I e artigo 192). Em caso de usurpação dessas competências, poderá ser ensejada a abertura de sindicância de controle de constitucionalidade.

À guisa de ilustração, veja-se o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.701/ES, julgada em 2023, na qual, questionando-se dispositivo da Lei nº 8.386/2006 do estado do Espírito Santo, fixou-se a tese de que “é inconstitucional, por vício de competência, lei estadual que discipline a transferência, ao Poder Judiciário, dos rendimentos decorrentes da aplicação financeira de depósitos judiciais” [2]:

“Ação direta de inconstitucionalidade […] contra a Lei nº 8.386/2006, do mesmo Estado, que institui sistema de gerenciamento de depósitos judiciais e destina ao Poder Judiciário parcela dos resultados financeiros obtidos com a aplicação desses valores. […] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) se consolidou no sentido de que leis estaduais que autorizam a transferência e o uso, pelo Estado, de recursos financeiros correspondentes a depósitos judiciais e extrajudiciais incorrem em vício de inconstitucionalidade formal, por usurpação da competência da União para legislar sobre direito processual, para disciplinar o Sistema Financeiro Nacional e para editar normas gerais de direito financeiro” (arts. 22, I e VII, 192 e 24, I, da CF).

Perceba-se, portanto que, enquanto ente político, a União distingue-se conceitualmente do Estado federal, ou seja, é uma unidade federativa (CF, artigo 18), mas não uma unidade federada. Noutros dizeres, enquanto que o Estado federal, denominado República Federativa do Brasil, “é o todo, ou seja, o complexo constituído da União, estados, Distrito Federal e municípios, dotado de personalidade jurídica de Direito Público internacional”, a União trata-se de “pessoa jurídica de Direito Público interno, autônoma em relação às unidades federadas”, conforme elucida José Afonso da Silva [3].

Competências tributárias

Além das competências exemplificadas acima, vale pontuar que a União possui competência tributária exclusiva, nos termos do artigo 153 da Constituição Federal, além daquela residual (CF, artigo 154, I). Por meio desta última, pode ela instituir “impostos não cumulativos e que não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios discriminados na Constituição” [4], mediante lei complementar.

Dessarte, a União também dispõe de competências tributárias concorrente (voltada à instituição de taxas e contribuições de melhoria) e extraordinária (nos casos de guerra externa ou de sua imanência), com fulcro nos artigos 145, II e III; e 154, II, da CF, respectivamente.

Coordenação e edição de normas gerais

O segundo “papel” da União é o de ente coordenadora da Federação, sendo a ela destinada aquelas atividades legiferantes de coordenação, desempenhadas no âmbito federativo. Para compreendê-lo, é mister rememorar a sistemática alusiva à repartição da competência legislativa concorrente, as quais compreendem as competências não cumulativas, incumbida à União a edição de normas gerais (CF, artigo 24, §1º).

Visualiza-se, pois, uma repartição vertical de competências, com a distribuição de uma mesma matéria entre os entes federativos, competindo a cada qual legislar nos respectivos graus (ou limites) constitucionalmente estabelecidos, isto é: de modo geral (principiológico) ou específico (pormenorizador).

A normas gerais cuja feitura compete à União, enquanto diretrizes nacionalmente aplicáveis, devem ser observadas pelos estados e pelo Distrito Federal quando da produção de normas específicas, sob o escopo do exercício da competência suplementar que lhes é constitucionalmente assegurada (CF, arigo 24, §2º).

É exatamente nisso que consiste a função coordenadora, no plano federativo, realizada pela União – eis que, ao editar normais gerais, vincula os Estados-membros à observância de suas orientações, consistentes em uma principiologia diretiva e nacionalmente referencial.

Spacca

Nessa esteira, um exemplo de relevante menção refere-se à edição da Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal), pela União, no exercício da competência legislativa concorrente em matéria ambiental (CF. artigo 24, VI).

Essa lei, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa, estabelece “normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal” [5], entre outras, que necessitam observância dos estados-membros para a elaboração de suas normas específicas.

O estado do Tocantins, no entanto, permitiu a instalação de edificações com fim meramente recreativo em área de preservação permanente, contrariando a legislação federal. Como consequência, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.988/TO, a Procuradoria-Geral da República impugnou a norma estadual tocantinense.

Constatando-se, após, a desarmonia entre as hipóteses previstas pelo regramento nacional para supressão de vegetação em APPs e o dispositivo da lei estadual objeto de impugnação, foi declarada a sua inconstitucionalidade. Esta, formalmente, em virtude de a referida norma permitir “a edificação particular com finalidade unicamente recreativa em áreas de preservação permanente – APP; apesar da existência de legislação federal regente da matéria (Código Florestal) em sentido contrário” [6]:

“O dispositivo estadual impugnado distancia-se, portanto, das hipóteses previstas no regramento nacional, uma vez que, ao prever a contrastante possibilidade de intervenção humana em APP para construção de casas destinadas ao lazer, deixou o legislador estadual de reproduzir o teor restritivo adotado pela legislação pátria, acarretando desarmonia entre as excepcionais hipóteses previstas pelo regramento nacional para supressão de vegetação em APPs e o conteúdo da norma sob apreciação.”

Pelo exemplo em questão, depreende-se que a inconstitucionalidade ocorreu pelo desrespeito às regras previstas na Magna Carta, quanto à observância das competências constitucionais. No caso, o legislador tocantinense teria extrapolado os limites da competência suplementar ao conferir às áreas de preservação permanente (APPs) proteção deficitária em relação àquela dada pelo regramento nacional.

Por esse motivo, note-se que — mesmo sendo predominantemente principiológicas e genéricas — as normais gerais cuja edição compete à União devem lograr observância pelos Estados-membros que, em seu processo legislativo, visam a conferir-lhes especificidade em atendimento ao interesse regional.

Por fim, interessante notar que, ao agir como coordenadora perante os demais entes políticos, a União se coloca como sentinela do federalismo cooperativo, eis que este “vê na necessidade de uniformização de certos interesses um ponto básico da colaboração”, na consagrada lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior [7].

Noutros dizeres, ao editar normas gerais, a União possibilita uma atuação conjunta (e mais uniforme) dos estados-membros, aspecto necessário à luz da efetividade que se espera resultar da cooperação exercida entre os entes federativos, na ambiência do vigente Texto Constitucional.

Representação internacional

Com terceiro papel da União, a ela cabe a missão institucional de (re)presentar o Brasil no contexto das relações internacionais. Ou seja, no plano internacional, a União consagra-se como longa manus do Brasil no exterior. Nesse ponto, é imprescindível especial atenção ao fato de que a União não é pessoa jurídica de direito público internacional, pois que tal natureza é a do Estado brasileiro (e somente dele).

Isso significa que — embora pessoa jurídica de direito público interno — ela tem o poder-dever de representar a República Federativa do Brasil no exterior, sendo, por conseguinte, doutrinariamente classificada como “ente global”. É justamente nessa perspectiva que se vislumbra sua outra função essencial na realidade jurídico-fática delineada pela Constituição de 1988: a de fazer “as vezes” do Estado brasileiro perante outros, no âmbito do exercício da soberania.

Desse modo, a União possui competência para atuar “em nome da Federação (e.g. manter relações com Estados estrangeiros; declarar guerra ou celebrar paz)” [8], sendo esta uma competência exclusiva, em matéria de soberania – haja vista que os demais entes federativos não dispõem de atuação nessa seara.

Mas, como dito, não deixa de ser um componente da Federação e, ipso facto, “menor” que a República Federativa do Brasil, com ela não se confundindo. Por esse motivo, nos dizeres de Bulos [9], é incorreto o termo “União federal”, pois que este enseja “o equívoco de que ela é o próprio Estado federal”, sendo — na verdade — senão um ente federativo autônomo.

 


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  Acesso em: 19 fev. 2024.

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; […]. Brasília, 25 maio 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 18 fev. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 6701 / ES. Relator: Min. Roberto Barroso, 22 de fevereiro de 2023. DJe. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur475382/false. Acesso em: 18 fev. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.988/TO. Relator: Min. Alexandre de Moraes, 19 de setembro de 2018. DJe. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15338785977&ext=.pdf. Acesso em: 18 fev. 2024.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente: Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 90, p. 245-251, 1 jan. 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67296/69906. Acesso em: 18 fev. 2024.

NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: JusPODIVM. 2024.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2014.

 


[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  Acesso em: 19 fev. 2024.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 6701 / ES. Relator: Min. Roberto Barroso, 22 de fevereiro de 2023. DJe. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur475382/false. Acesso em: 18 fev. 2024.

[3]SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2014. p. 497.

[4]NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: JusPODIVM. 2024. p. 635.

 

[5]BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; […]. Brasília, 25 maio 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 18 fev. 2024.

[6]BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.988/TO. Relator: Min. Alexandre de Moraes, 19 de setembro de 2018. DJe. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15338785977&ext=.pdf. Acesso em: 18 fev. 2024.

[7]FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente: Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 90, p. 245-251, 1 jan. 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67296/69906. Acesso em: 18 fev. 2024. p. 249.

[8]NOVELINO, Marcelo (2024), op. cit., p. 651.

[9]BULOS, Uadi Lammêgo (2015), op. cit., p. 928.

Autores

  • é bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro pesquisador do Grupo de Estudos em Meio Ambiente e Direito (Gemadi) e do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Comunicação e Mídia e membro das comissões de Direito Público e de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – 5ª Subseção de Volta Redonda (RJ).

  • é professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação "lato sensu" em Residência Jurídica na UFF/VR, doutora e mestre em Direito Público e Evolução Social, especialista em Direito Público, pesquisadora e professora do programa "stricto sensu" em Bioética, Ética Aplicada, e Saúde Coletiva (UFF/UFRJ/Fiocruz) e do mestrado em Tecnologia Ambiental (UFF/VR).

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