Opinião

Tema 1.113/STJ: o que o conceito de valor venal tem a dizer sobre tributação?

Autor

  • Éderson Garin Porto

    é advogado mestre e doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do Mestrado Profissional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e da Escola Superior da Advocacia da OAB-RS.

18 de março de 2024, 16h13

O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Recurso Especial n° 1.937.821 no regime de recursos repetitivos, fixou tese que pretendia resolver polêmica envolvendo a base de cálculo do Imposto de Transmissão “intervivos” de bem imóvel (ITBI).

O tributo que incide sobre a transação de imóvel por ato oneroso tem como base de cálculo o chamado “valor venal”, assim definida no artigo 38 Código Tributário Nacional. Toda a discussão poderia ser resumida, portanto, em estabelecer o que é afinal “valor venal”?

Antes de responder a pergunta, propõe-se ampliar o escopo da reflexão aqui proposta, elaborando o questionamento nos seguintes termos: “Qual a correta medida da tributação?”.

A pergunta pode parecer singela, mas não é. Por trás do questionamento há sério e intenso debate filosófico sobre a noção de Justiça Tributária. Apenas para tomar como referência recente estudo elaborado por Eduardo Jobim em sua tese de doutoramento [1], diversas teorias se sucederam na tentativa de explicar e justificar a tributação.

Importância da capacidade contributiva

Desde a ideia de que a tributação deveria estar associada ao benefício percebido pelo contribuinte em decorrência dos serviços públicos oferecidos pelo Estado (Teoria do Benefício [2]), passando pela Teoria do Sacrifício [3], que centrava a análise no critério subjetivo de mensuração do sacrifício a ser suportado pelo contribuinte, e chegando à noção de capacidade contribuitiva [4][5], pode-se notar o intenso debate sobre a melhor abordagem para a ideia de Justiça Tributária.

Independentemente da posição filosófica a ser adotada, não se pode questionar que a Constituição brasileira de 1988 elegeu um critério de Justiça Tributária, insculpindo-o no artigo 145, § 1°[6].

A doutrina pátria chama-o de princípio da capacidade contributiva. Significa dizer que a tributação deve observar a noção de suportabilidade da carga tributária, fazendo com que a incidência da tributação guarde uma relação com a capacidade econômica do contribuinte.

Essa capacidade econômica deve guardar relação com a riqueza disponível, não podendo alcançar, por exemplo, valores que não revelam capacidade contributiva, como foi assentado no julgamento da tributação da pensão alimentícia pelo Supremo Tribunal Federal [7].

Pode-se dizer que há um teto para a tributação, que é a riqueza verdadeiramente ostentada pelo contribuinte, podendo-lhe ser exigido uma fração desta riqueza. Tem-se aqui um critério constitucional de apuração do tributo, impondo aos entes tributantes que observem o montante real de riqueza titulada pelo contribuinte, não sendo possível admitir que a tributação recaia sobre uma base irreal ou ficta, como restou assentado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema em Repercussão Geral n° 201 [8].

Discutiu-se durante muito tempo a aplicação do princípio da capacidade contributiva nos tributos sobre o patrimônio, não se podendo desconhecer que vigora o enunciado da Súmula n° 656, que veda a aplicação de alíquotas progressivas para o ITBI [9]. Na visão histórica da corte, sendo o ITBI um imposto de natureza real, não se poderia aplicar o critério da progressividade [10].

Spacca

Muito embora a discussão aqui não envolva a progressividade, o que já afastaria a discussão sobre os precedentes invocados, não se pode perder de vista que a corte revisou a orientação relativamente ao Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), passando a entender que o princípio da capacidade contributiva não está restrito aos tributos ditos pessoais e sua manifestação através da progressividade é aplicável ao imposto sobre heranças e doação [11].

Se a capacidade contributiva pode ser interpretada de forma menos favorável aos contribuintes a partir da tributação progressiva, parece evidente que a capacidade contributiva possa ser invocada para limitar o montante a ser tributado sobre o verdadeiro signo presuntivo de riqueza e não a riqueza ficta ou inexistente. Por um postulado de coerência interpretativa [12], a capacidade contributiva deve valer em ambas as situações.

Estabelecidas as premissas, é possível afirmar que a tributação na ordem jurídica vigente não pode se desviar do princípio da capacidade contributiva que, na perspectiva aqui adotada, sinaliza para o legislador e, notadamente, para a administração tributária que a incidência da tributação deve respeitar a realidade, a riqueza verdadeira e não aquela almejada eventualmente pelo ente tributante. Pensar de forma diversa resultaria no mesmo que retirar a eficácia de todas as limitações ao poder de tributar, permitindo que o ente tributante crie bases de cálculo fictícias e tribute riquezas inexistentes.

De que adiantaria, por exemplo, discutir longamente sobre o conceito de receita se coubesse ao Fisco estabelecer, ainda que por lei, que a receita mensal equivale algum múltiplo de Ebitda [13] de uma determinada pessoa jurídica? Muito embora o mercado financeiro utilize tal indicativo para projetar resultado futuro e perspectiva de rentabilidade, a tributação passaria a incidir sobre um dado irreal, fictício.

Valor venal e o entendimento do STJ

No caso da base de cálculo do ITBI, o Tema n° 1.113 do STJ cuidava de analisar o alcance da expressão “valor venal” para atribuição da base de cálculo do referido imposto. É clássica a noção de que “valor venal é aquele que o bem alcançaria se fosse posto à venda, em condições normais. Em princípio, é o preço praticado na compra e venda” [14].

Se, por exemplo, o proprietário oferta seu imóvel por R$ 100 mil e, de outro lado, há um comprador interessado em adquirir o imóvel pelo valor da oferta e tais condições restam plasmadas na escritura pública de compra e venda, qual seria o valor venal? Segundo a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, o valor da escritura pública é, em tese, o valor venal.

Vale reproduzir o enunciado do Tema 1.113 do STJ:

“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.

Reação dos municípios

Parecia estar resolvida a questão. Correto? Não! Muitos municípios manifestaram irresignação com o precedente firmado. Tomo como representativo das irresignações o artigo jurídico confeccionado por Ricardo Almeida Ribeiro da Silva. Na sequência de três artigos, o autor busca infirmar a tese fixada pelo STJ. Na visão do autor, há uma distinção entre imposto sobre o patrimônio e aquele incidente sobre o consumo.

Adiante, afirma que o ITBI é um tributo que recai sobre o patrimônio e não sobre o consumo, o que limitaria a aplicação da tese firmada apenas para as hipóteses de aquisição em hasta pública. Nas demais situações, o “preço” pago pelo adquirente não corresponde ao “valor venal” porque se assim fosse, o ITBI passaria ser considerado um tributo sobre o consumo de imóvel.

Com a devida vênia, a distinção criada jamais existiu na doutrina e não se colhe um único autor que assim sustente. O autor elabora uma planilha comparando ordenamento jurídicos distintos e demonstrando que em alguns países incide o IVA sobre operações imobiliárias. Qual a relevância para o desate da controvérsia no Brasil? Ao que parece, não há qualquer sentido da comparação.

Ao se fazer um escorço histórico, o pesquisador sempre identificará o ITBI ou seus antepassados como um tributo incidente sobre o patrimônio [15]. Então qual a serventia da distinção criada? Poder-se-ia cogitar que na tributação sobre o patrimônio se pudesse tributar uma riqueza fictícia e na tributação sobre o consumo essa vantagem não fosse admissível?

Novamente, a distinção não se sustenta à luz do princípio da capacidade contributiva. Outrossim, prossegue o articulista, dizendo que a prova de que ITBI e ITCD são exemplos de tributos sobre o patrimônio e que o “valor venal” não corresponde ao preço de venda, invocando os fatos geradores do ITCD que são “morte” e “doação”, daí se concluindo que “valor venal” não pode ser sinônimo de preço de venda.

Novamente, impõe-se repetir que tanto no ITBI, quanto no caso do ITCD, a tributação somente poderá incidir sobre a efetiva riqueza titulada pelo contribuinte (seja adquirente do imóvel, seja o doador, seja o herdeiro).

Valor venal e valor de mercado

Na busca por restringir a tese claramente fixada pelo STJ, os municípios almejam afastar a tributação sobre o “valor venal” expressado na escritura pública para fazer valer o “valor venal” que imaginam correto. Na visão dos município, o “valor venal” seria aquele praticado pelo mercado (média de valores praticado em condições análogas), excluindo do “mercado” o negócio jurídico controvertido em questão.

Num exercício de presunção, assume-se que o proprietário tenha vendido seu patrimônio por um valor inferior àquele usualmente praticado e que, portanto, facultaria ao fisco exigir que a tributação incidisse sobre o valor mais alto. Pode-se imaginar que alguém em sã consciência possa vender seu imóvel por valor menor quanto poderia ter recebido mais?

É evidente que o preço praticado pelas partes, em tese (como ressalva a tese do STJ), é o “valor venal”. Se o vendedor colocou à venda seu imóvel e não conseguiu proposta mais vantajosa, parece evidente que aquele bem foi vendido pelo “valor de mercado”.

O caso evidencia que os municípios parecem desconsiderar ou não desejam reconhecer que existe um elemento importante na equação de apuração do chamado “valor de mercado” que é o elemento “liquidez”.

É possível que o valor usualmente praticado para um determinado imóvel seja equivalente a R$ 100 mil, porém se naquele dado momento não houver nenhum comprador interessado em pagar R$ 100 mil, qual a conclusão possível?

Dado o baixo índice de liquidez deste hipotético ativo, a transação somente será realizada se o vendedor aceitar reduzir sua pretensão [16]. Qual a sugestão do órgão fazendário? Esperar a melhor oportunidade, quando o índice de liquidez do ativo fosse mais alto e se pudesse convergir o valor do negócio com o etéreo “valor de mercado”? É lícito exigir tal conduta? De outra banda, se o mercado não estiver pagando o “valor de mercado” sonhado pelo município, deveria o contribuinte suportar ainda assim a carga tributária no patamar imaginado pelo ente fazendário?

Nesta hipótese absurda, ter-se-ia um duplo prejuízo suportado exclusivamente pelos indivíduos. O vendedor teria recebido valor menor do que o “valor de mercado”, o comprador estaria suportando um imposto sobre uma riqueza que não adquiriu, mas o município estaria recolhendo tributo sobre uma realidade que não mais existe.

Não se desconhece a prática utilizada por alguns contribuintes que podem eventualmente simular um valor distorcido com o único propósito de reduzir o recolhimento do ITBI. Não parece que esta realidade tenha escapado do STJ que, ao fixar a tese no Tema n° 1.113, expressamente ressalvou a prerrogativa do município de instaurar um procedimento administrativo para apurar eventual divergência nos termos do artigo 148 do Código Tributário Nacional. Se esta for a preocupação dos municípios, é possível tranquilizá-los, pois esta prerrogativa vigora desde 1966 [17] e restou assegurada com o julgamento do recurso repetitivo.

RE 1.412.419

Aparentemente, os municípios desejam reverter a tese firmada através da alegação de inconstitucionalidade da orientação. Sobre o futuro do Recurso Extraordinário nº 1.412.419, distribuído à relatoria da ministra Cármen Lúcia, no STF, não se acredita que a corte tenha a competência para reinterpretar o artigo 38 do Código Tributário Nacional [18] e se assim o fizer, não se cogita interpretação que autorize os entes tributantes a exigir imposto sobre venda de imóvel por valor diferente daquele atribuído à venda do imóvel.

É evidente que estão excetuadas situações de fraude, simulação ou conluio que devem ser combatidas pelos meios previstos em lei. Sobre a restrição de aplicação da tese às hipóteses de arrematação em hasta pública, ainda que sejam louváveis os argumentos processuais invocados, não se pode desconhecer que o enunciado aprovado pelo STJ visa resolver a discussão em torno da base de cálculo do ITBI em caráter geral, não se extraindo das teses qualquer restrição. Pensar de forma diferente resultaria em diminuir o instituto e colocar palavras na boca da Corte que não foram ditas.

 

 


[1] JOBIM, Eduardo. A Justiça Tributária na Constituição. São Paulo: Jus Podivm, 2023, p. 202.

[2] LINDSAY, Ira K. Beneficts theories of tax fairness. In: Studies in the history of tax law. Peter Harris e Domin de Cogan (org.). Oxford: Hart, 2019, p. 96.

[3] HEAD, John. Fariness in Taxation. Exploring the Principles. Toronto: University of Toronto Press, 1993, p. 10.

[4] É possível encontrar desenvolvimento da ideia desde a história antiga, quando na obra de Herodoto é identificada noção sobre a capacidade contributiva no Egito (HERODOTUS, Herodous. The Hsitories Book: Eurepe, London: SMK Books, 2018), passando pelo desenvolvimento de São Tomas de Aquino.

[5] BECHO, Renato L. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. E-book. ISBN 9788502619678. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502619678/. Acesso em: 05 mar. 2024. O Autor refere: ““Esse princípio não é novo. Pelo contrário, a doutrina aponta sua elevada idade. Assim, Carlos Palao Taboada (1978, p. 126) indica que, provavelmente, desde que se criaram os impostos, em algum momento remoto da história, percebeu-se que estes deveriam ser recolhidos de acordo com a riqueza daqueles que deveriam pagá-los. A filosofia medieval deu maior precisão a essa ideia, creditando-se a S. Tomás de Aqui- no a determinação de que cada um deveria pagar secundum facultatem, ou secundum equalitatem proportionis”.

[6] A Emenda Constitucional n° 132/2023 (Reforma Tributária do Consumo) inseriu a expressão “Justiça Tributária” como princípio orientador do Sistema Tributário (art. 145, § 3°), porém o dispositivo não informa o seu conteúdo.

[7] ADI 5422, Rel: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 06-06-2022.

[8] RE 593849, Rel: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19-10-2016.

[9] “É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI com base no valor venal do imóvel” (Súmula n.º 656).

[10] RE 259.339.

[11] Tema n° 21, STF. RE 562045, Rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 06-02-2013.

[12] DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Oxford: Bloomsburry Publishing: 1998, p. 225.105; MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1978, p. 153.

[13] EBITDA é a sigla em inglês para Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization, ou em português, Lucro Antes dos Juros, Impostos, Depreciação e Amortização (LAJIDA).

[14] MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. V I. São Paulo: Atlas, 2003, p. 406. No mesmo sentido, HARADA, Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática. São Paulo: Atlas, 2010, p. 144. COSTA, Regina H. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553623309. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553623309/. Acesso em: 05 mar. 2024.

[15] CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555599992. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555599992/. Acesso em: 05 mar. 2024. O Professor Caliendo recorda que: “O ITBI tem como antecedente histórico o Alvará 03 datado de 1809, conhecido como o Imposto da Sisa. A primeira inclusão deste tributo no texto constitucional ocorreu na Constituição de 1891, em que competia aos Estados a tributação sobre a sobre transmissão de propriedade. Nesse período, tanto o imposto sobre a transmissão causa mortis quanto o imposto sobre a transmissão inter vivos estavam unificados em um único tipo tributário. (…)”.

[16] HICKS J. R. Liquidity: in: The Economic Journal, Londres: MacMillan and Co. Limited, Vol. LXXII, n.º 288, dezembro de 1962, p. 787 a 799. Segundo Hicks, pode-se definir o grau de liquidez de um ativo somente em termos de certeza do seu valor esperado, de forma que um aumento na preferência pela liquidez seria expresso por um aumento no grau de certeza com relação ao valor esperado. A liquidez, neste caso, não seria assim uma quantidade monetária, mas um índice de risco maior ou menor.

[17] A orientação do STJ é bastante antiga, podendo-se citar o REsp n. 261.166/SP, relator Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 12/9/2000, DJ de 6/11/2000, p. 192.

[18] Na apreciação o juízo de admissibilidade do Recurso Extraordinário, o Superior Tribunal de Justiça assinalou que a alegada violação à Constituição seria reflexa, o que contraria o entendimento do Tema 660, STF. No mesmo sentido: Súmula 636, STF: Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.

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