Opinião

Tratamento de dados de crianças e adolescentes

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17 de novembro de 2023, 19h24

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) — Lei n° 13.709/18 —, tomando por base as peculiaridades e cuidados específicos no que tange às condições de vulnerabilidade envolvendo crianças e adolescentes, optou por conferir a esses titulares um regramento legal específico a partir de critérios particulares que deverão ser levados em conta no momento do tratamento de tais dados.

Nesse sentido, o artigo 14 da LGPD serve como diretriz mestra para indicar as maneiras pelas quais o tratamento de dados de crianças e adolescentes deverá ser realizado. Contudo, uma discussão que vem permeando a doutrina acerca desse dispositivo é sobre quais bases legais efetivamente seriam aplicáveis sobre o tratamento desses dados.

Ocorre que, para que seja possível a criação de um caminho apto a direcionar tal questão, é necessário que se tenha especial atenção à previsão entabulada no próprio artigo 14, caput [1], o qual prevê que o tratamento de dados de crianças e adolescentes tem de ocorrer em seu melhor interesse.

Ou seja, o dispositivo estabelece o melhor interesse como cláusula geral que servirá de parâmetro interpretativo basilar para guiar a maneira como deverão ser entendidos os contextos em que o tratamento de dados das crianças e adolescentes está ocorrendo.

Nessa toada, destaque-se que o comentário geral 14 do Comitê sobre os Direitos da Criança explicita que o melhor interesse pode ser compreendido como:

Um princípio jurídico fundamentalmente interpretativo, o que significa dizer que se uma disposição jurídica estiver aberta a mais do que uma interpretação, deve ser escolhida a que efetivamente melhor satisfaça o melhor interesse da criança (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2013) [2].

Assim, é dizer que para o exame de quaisquer bases legais aplicáveis ao tratamento de dados desses titulares, será de suma importância o contrabalanceamento com o melhor interesse, inclusive, no momento de averiguação da validade, ou não, do consentimento parental, em pese seja esta a base legal expressamente prevista no §1º do artigo 14 [3] do diploma legal, pois: 

(…) ainda que haja o consentimento parental específico e destacado, seguindo os padrões estabelecidos pela LGPD, se ele eventualmente contrariar o melhor interesse da criança, ele não se sustentará como base legal e a prática do tratamento pode ser considerada abusiva (BIONI; FAVARO; RIELLI, 2020) [4]

Dessa forma, pelo fato de o melhor interesse ser um conceito de caráter eminentemente aberto, o exame do tratamento dos dados de crianças e adolescentes, segundo a adequação a este parâmetro interpretativo, dependerá de análises casuísticas que verifiquem se tal interesse, de fato, foi atendido no caso concreto, ou não.

Esse entendimento, inclusive, fora reiterado pela doutrina, a qual, em sede da IX Jornada de Direito Civil, no ano de 2022, publicou enunciado de nº 684 [5], estabelecendo que o artigo 14 da LGPD “não exclui a aplicação das demais bases legais, se cabíveis, observado o melhor interesse da criança”.

Não bastasse isso, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou, em 24 de maio de 2023, enunciado específico sobre o assunto[6], por meio do qual corroborou com a construção doutrinária. O enunciado publicado foi o seguinte:

O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes poderá ser realizado com base nas hipóteses legais previstas no art. 7º ou no art. 11 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), desde que observado e prevalecente o seu melhor interesse, a ser avaliado no caso concreto, nos termos do art. 14 da Lei.

Nesse contexto, a noção do melhor interesse como cláusula geral que, funcionando como parâmetro interpretativo, norteará as bases legais que poderão ser aplicadas no tratamento dos dados, tanto de crianças como de adolescentes, ganha força como critério capaz de ampliar o olhar dos agentes de tratamento para além do consentimento, e suas respectivas exceções previstas no próprio artigo 14º.

Afinal, os dados pessoais se estabelecem, cada vez mais, como ativos de suma importância para a constituição da personalidade dos indivíduos, sendo sua proteção e privacidade, sempre observando a aplicação das bases legais mais adequadas, direitos fundamentais garantidos constitucionalmente [7], especialmente em relação às crianças e adolescentes pela vulnerabilidade inerente que lhes é própria.

Referências bibliográficas complementares

DE TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini; TEPEDINO, Gustavo. O consentimento na circulação de dados pessoais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 25, n. 03, p. 83, 2020.

FERNANDES, Elora. Crianças e adolescentes na LGPD: Bases legais aplicáveis. Migalhas, 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/335550/criancas-e-adolescentes-na-lgpd–bases-legais-aplicaveis.

_________________; MEDON, Filipe. Proteção de crianças e adolescentes na LGPD: desafios interpretativos. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-RJ, v. 4, n. 2, 2021. 

MULHOLLAND, Caitlin; PALMEIRA, Mariana. As bases legais para tratamento de dados de crianças e adolescentes. In: LATERÇA, Priscilla Silva; FERNANDES, Elora; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BRANCO, Sérgio (Coords.). Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro; Obliq, 2021, p. 315-342. E-book.

TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Tratamento de dados de crianças e adolescentes na LGPD e o sistema de incapacidades do Código Civil. In: LATERÇA, Priscilla Silva; FERNANDES, Elora; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BRANCO, Sérgio (Coords.). Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro; Obliq, 2021, p. 287-315. E-book.


[1] Art. 14. O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente

[2] NAÇÕES UNIDAS. Interesse Superior da Criança- Comentário geral nº 14 do Comitê dos Direitos da Criança sobre o direito da criança a que o seu interesse superior seja tido primacialmente em consideração. Brasil: Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens; Editorial do Ministério da Educação e Ciência, 2013.

[3] Art.14 (…) § 1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.

[4] BIONI, Bruno; FAVARO, Iasmine; RIELLI, Mariana. O tratamento de dados de crianças e adolescentes pode ser legal?. Observatório Privacidade, 2020. Disponível em: O tratamento de dados de crianças e adolescentes pode ser legal? – Observatório – Por Data Privacy (observatorioprivacidade.com.br).

[5] FEDERAL, Conselho da Justiça. Enunciado N°684. IX Jornada de Direito Civil. Disponível em: enunciados-aprovados-2022-vf.pdf (cjf.jus.br).

[6]AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. ENUNCIADO CD/ANPD Nº 1, DE 22 DE MAIO DE 2023. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-divulga-enunciado-sobre-o-tratamento-de-dados-pessoais-de-criancas-e-adolescentes/Enunciado1ANPD.pdf/view .

[7] Art. 5°. (…) LXXIX – é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.

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