Opinião

Estado de coisas inconstitucional ambiental brasileiro é realidade que ainda persiste

Autor

  • Laone Lago

    é pós-doutorando doutor mestre e especialista em Ciências Jurídicas e Sociais; prêmios Rui Barbosa Unesco Francisco Rezek Conpedi e de pós-graduação stricto sensu; professor advogado e consultor jurídico no âmbito do Direito Público.

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16 de março de 2024, 7h15

O Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento de ações envolvendo o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ambiental no Brasil. A chamada “pauta verde” ou — mais especificamente — “pauta das inconstitucionalidades em matéria ambiental” envolve assuntos que tratam desde a proteção da Amazônia até o enfrentamento das mudanças climáticas.

Após pedido de vista, o ministro André Mendonça acompanhou substancialmente a relatora, ministra Cármen Lúcia, oportunidade em que reconheceu a inconstitucionalidade. No entanto, votou para que o governo federal, em conjunto com os demais Poderes Legislativo e Judiciário, estados e municípios, assuma um “compromisso significativo” [1] referente ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica, ao passo que a ministra relatora reajustou o seu voto para reafirmar a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, mesmo reconhecendo que há processo em curso de reconstitucionalização quanto ao desmatamento ilegal na Amazônia pelo Estado brasileiro [2].

Este artigo sustentará que o quadro ambiental brasileiro é tanto naturalmente complexo quanto essencialmente dramático, o que significa dizer que ainda se está diante de uma afronta massiva, generalizada e sistemática ao meio ambiente, mesmo que alguns esforços estejam sendo realizados pela gestão atual do governo federal  [3].

O cenário ambiental brasileiro é historicamente desafiador, fruto de ciclos pautados por avanços e guiados por retrocessos. Não é por outra razão que diversas são as demandas que cada vez mais batem às portas do Supremo Tribunal Federal, tendo como pretensão o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental.

O fenômeno do estado de coisas inconstitucional foi incorporado nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF nº 347 [4], tendo em vista violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais envolvendo o sistema penitenciário e carcerário nacional, decorrente de falhas estruturais e da falência de políticas públicas, cuja modificação dependeria de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária.

É nesse âmbito que o Poder Judiciário — como agente de viabilização do diálogo constitucional — pode (ou poderá) ser demandado a reestabelecer os esforços, posturas e ações de respeito aos diretos fundamentais, superando os bloqueios políticos e/ou institucionais, especialmente em matéria ambiental.

O estado de coisas inconstitucional ambiental foi reconhecido pela primeira vez no voto de mérito exarado pela ministra Cármen Lúcia, relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF 760[5], diante dos fatos e fundamentos caracterizadores de afronta massiva, generalizada e sistemática ao meio ambiente.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Consta no seu dispositivo o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional quanto ao desmatamento da Floresta Amazônica e de omissão do Estado brasileiro em relação à função protetiva do meio ambiente ecologicamente equilibrado”, bem como determinação para que a União e os órgãos e entidades federais formulem e apresentem em até 60 dias um plano de execução efetiva e satisfatória relacionado ao Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, conforme “cronogramas, metas, objetivos, prazos, projeção de resultados com datas e indicadores esperados, incluídos os de monitoramento e outras informações necessárias para garantir a máxima efetividade do processo e a eficiente execução de políticas públicas” [6].

Dever constitucional

Antes da referenciada decisão de mérito — e nessa mesma linha —, a proteção ambiental como um dever constitucional, não uma opção política, foi objeto de entendimento exarado pelo ministro Luís Roberto Barroso, também no âmbito do STF.

Na oportunidade, convocou-se audiência pública para apurar os fatos relevantes e a produção de um relato oficial acerca da situação ambiental brasileira, medida prudente e necessária diante do quadro descrito na petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão — ADO 60, convertida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF 708, pois, “se confirmado, revela[ria] a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, [o] qual exige providências de natureza estrutural” [7].

Pelo menos duas são as conclusões que saltaram aos olhos do ministro relator, quais sejam: a existência de indícios claros e evidentes de um estado de coisas inconstitucional ambiental brasileiro, assim como o entendimento de que o dever constitucional se impõe em matéria ambiental, inexistindo espaço para opções políticas.

Mesmo tendo inicialmente — e de forma monocrática — sinalizado haver indícios claros e evidentes envolvendo um possível estado de coisas inconstitucional ambiental, em sede de mérito — entendimento que foi seguido pela maioria —, o ministro relator não reconheceu de forma expressa a presença do fenômeno estruturante colombiano nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF 708.

Muito pelo contrário, referido instrumento aparece apenas e unicamente em duas oportunidades ao longo do acórdão, quais sejam, primeira, em transcrição de parte do parecer oferecido pela Advocacia Geral da União, e, segunda, em passagem da lavra do ministro para justamente refutar os argumentos defensivos oferecidos pela advocacia pública [8].

Ainda que nessa linha de raciocínio, o dispositivo do acórdão reconheceu que os recursos destinados à mitigação das mudanças climáticas envolvendo o Fundo Clima estavam sendo inconstitucionalmente bloqueados, determinando-se que a União “se abstenha de se omitir”, devendo manter a regularidade dos repasses e não mais realizar qualquer espécie de contingenciamento envolvendo referida verba [9].

Spacca

A existência de um cenário potencialmente inconstitucional envolvendo o meio ambiente, capaz de impulsionar o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional ambiental no Brasil também esteve presente nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão — ADO 59, oportunidade em que se discutiu flagrante omissão por parte do governo federal ao contingenciar o repasse de bilhões de reais ao Fundo Amazônia.

Omissão do Poder Executivo

Mesmo que no acórdão exarado pela relatora, a ministra Rosa Weber, seja possível identificar algumas passagens e referências expressas e diretas ao estado de coisas inconstitucional ambiental, a ministra não o reconheceu de forma contundente, limitando-se em registrar que a “omissão inconstitucional do Poder Executivo [federal] no que diz respeito ao funcionamento da política pública do Fundo Amazônia traz consequências em diversas atividades e operações do seu funcionamento”, determinando-se que a União, no prazo de 60 dias, “tome providências administrativas necessárias para a reativação do Fundo Amazônia, dentro e nos limites das suas competências” constitucionais e infraconstitucionais [10].

O movimento atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, o qual pretende fazer com que o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro acolha e reconheça a existência do estado de coisas inconstitucional ambiental no Brasil, é louvável, quiçá, necessário, ainda que demande tanto cautela quanto reflexão ampliada e aprofundada.

Dizendo de outra forma, o estado de coisas inconstitucional, fenômeno originalmente pensado, moldado e implementado pela Corte Constitucional colombiana, necessita ser conhecido e ponderado, especialmente sua decisão paradigma, a Sentença T-025/04 [11], perpassando pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF 347, primeira medida em âmbito nacional que reconheceu o quadro carcerário brasileiro como cruel e indigno, verdadeira afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana [12], cenário que se pretende ver ampliado para alcançar a temática ambiental — pelo menos é nesse sentido que se pode perceber —, estando nessa linha a proposta e o elemento central das reflexões contidas no presente trabalho.

Pode-se deduzir das ações abaixo identificadas, uma estrutura expressa e sistematizada que sinaliza no sentido e na direção de uma omissão ou mesmo de uma coordenada afronta direta à temática ambiental. Potencializa-se, com isso, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ambiental, permitindo-se que o Supremo adote medidas estruturantes envolvendo políticas públicas, forçando e orientando o diálogo entres os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a participação da sociedade e — muito particularmente — que ações específicas e concretas restem efetivamente pensadas, implementadas, revisadas e corrigidas de forma reiterada e contínua, estabelecendo-se um virtuoso processo de interação e respeito dos humanos para com os não humanos, reconectando essa histórica e necessária interação. Nesse sentido, vejamos as mais diversas ações — em curso ou já julgadas — e os seus temas, todos envolvendo a temática ambiental:

 

Dramático quadro ambiental no Brasil – Eciab no STF:
Ação: Relator(a): Pretensão: Debate ambiental:
ADPF 760 Cármen Lúcia Obstar o desmatamento na Amazônia. Reconhecer o estado de coisas inconstitucional quanto ao desmatamento da Floresta Amazônica.
ADO 54 Omissão do Estado em sua função protetiva. Existência de um estado de coisas inconstitucional na gestão ambiental.
ADO 59 Rosa Weber Desobstruir o Fundo Amazônia. Providências administrativas necessárias para a reativação do Fundo Amazônia.
ADPF 708 Roberto Barroso Desobstruir o Fundo Clima. Reparação com urgência da conduta omissiva inconstitucional da União relativa ao Fundo Clima.
ADO 60 (convertida)
ADPF 743 André Mendonça Obstar ações e omissões de afronta reiterada aos Biomas Amazônia e Pantanal. Pedido expresso na inicial para que se reconheça o estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental.
ADPF 746 Incêndios nos biomas Pantanal e Amazônia. Afastando-se o Poder Público de sua obrigação constitucional, põe em risco a atual e as futuras gerações.
ADPF 747

ADPF 748

ADPF 749

Rosa Weber Reconhecer que há um estado de anomia e descontrole regulatório. Estado de coisas (tanto na dimensão normativa quanto fática) inaugurado pela revogação das Resoluções nºs 284/2001, 302/2002 e 303/2002 do CONAMA.
ADPF 756 Roberto Barroso Objetiva que o Poder Público apresente plano de vacinação. Reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ambiental, face afronta à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana do cidadão amazonense e manauara.
ADI 7107 André Mendonça Garimpo na Amazônia. Sinaliza-se para a regularização de atividades de garimpo desenvolvidas às margens da lei.
ADPF 857 André Mendonça Incêndios no bioma Pantanal. Reiterada ausência de investimentos para prevenção e controle de incêndios.
ADPF 981 Gilmar Mendes Política Nacional de Educação Ambiental. Desestruturação e desmantelamento dos órgãos e políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da Educação Ambiental.
ADPF 592 Luiz Fux Conciliação ambiental e conversão de multas em serviços. Postergação indeterminada dos prazos de defesa e pagamento de multas.
ADPF 755 Estado de coisas que conflita com os preceitos constitucionais.
Fonte: O Autor (2024)

 

Portanto, o reconhecimento do fenômeno colombiano das decisões estruturais, dotadas de pretensão estruturante, denominado estado de coisas inconstitucionais, parece ter alcançado a temática ambiental brasileira, conforme quadro de violações massiva, generalizada e sistemática.

Referido movimento almeja um Poder Judiciário tanto atento quanto atuante, não só para proteger os direitos fundamentais, sim — e principalmente — para lhes conferir aplicabilidade e efetividade, sob o ângulo de um constitucionalismo contemporâneo dialógico.

Não é por outra razão que o cenário ambiental brasileiro exposto demanda provimento jurisdicional de índole constitucional, obviamente propositivo, a ser exercido pelo STF, visando à promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Trata-se de oportunidade concreta que bate às portas do órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, demandando-lhe olhar acolhedor e vigilante para romper com os bloqueios institucionais, desde que o faça — insista-se nesse ponto — pretendendo fortalecer o debate, potencializar o diálogo, oferecendo medidas propositivas que garantam o devido e necessário espaço de vez e voz historicamente reivindicado — e, muitas das vezes negligenciado — pela temática ambiental no Brasil de ontem, de hoje e de sempre.

Diante de tudo o que exposto, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ambiental deve prevalecer em detrimento do compromisso significativo, tendo em vista que enquanto este espera uma postura responsável (já constitucionalizada), àquele viabiliza medidas concretas de efetivação do texto constitucional.

 


[1] “(…) a Corte Constitucional sul-africana, ainda que tenha variado ao longo do tempo a sua abordagem quanto aos direitos socioeconômicos, possui um perfil claro quanto aos limites de intervenção no âmbito das políticas públicas. Sempre esteve mais confortável promovendo a eficácia desses direitos de forma dialógica, apontando a inconstitucionalidade de atuações do Poder Público sem, todavia, determinar unilateralmente o conteúdo das políticas públicas que devem ser realizadas”. SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes; LIMA, George Marmelstein. Compromisso Significativo: contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 8, n. 3, p. 771-806, set./dez. 2021, p. 786-7. DOI: <10.5380/rinc.v8i3.74743>. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/74743>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 760. Relatora: ministra Cármen Lúcia; voto-vista: ministro André Mendonça, 29 fev. 2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6049993>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[3] “(…) o fenômeno colombiano das decisões estruturais (ou estruturantes) denominado estado de coisas inconstitucional objetiva reverter cenários de violação massiva, generalizada e sistemática à direitos fundamentais, conforme entendimento originariamente definido e delimitado pela Corte Constitucional da Colômbia”. LAGO, Laone. Estado de coisas inconstitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2023, p. 290.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347. Relator: ministro Marco Aurélio. Redator do acórdão: ministro Luís Roberto Barroso. 4 out. 2023. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15363748036&ext=.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[5] Ainda que se utilize mais da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 760, recorde-se que o voto da ministra relatora Cármen Lúcia também apreciou e decidiu de forma conjunta a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 54. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 54. Relatora: ministra Cármen Lúcia, 31 abr. 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5757017>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 760. Relatora: ministra Cármen Lúcia, 31 abr. 2022. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/VOTOADPF760.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 708. Relator: ministro Roberto Barroso, 30 ago. 2020. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO60Decisa771oaudie770nciapu769blica.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 708. Relator: ministro Roberto Barroso, 4 set. 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353796271&ext=.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 708. Relator: ministro Roberto Barroso, 4 set. 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353796271&ext=.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 59. Relatora: ministra Rosa Weber, 3 nov. 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360101699&ext=.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[11] COLÔMBIA. Corte Constitucional da Colômbia. Sentença T-025/04. Magistrado proponente doutor Manuel José Cepeda Espinosa. Disponível em: <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm>. Acesso em: 4 mar. 2024.

[12] Artigo 1º, III, da CRFB/88.

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  • é pós-doutorando, doutor, mestre e especialista em Ciências Jurídicas e Sociais; prêmios Rui Barbosa, Unesco, Francisco Rezek, Conpedi e de pós-graduação stricto sensu; professor, advogado e consultor jurídico no âmbito do Direito Público.

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