Opinião

Amazônia sangra (de novo): a Zona Franca de Manaus, o STF e a ADI 7.239

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1 de março de 2024, 13h19

O Supremo Tribunal Federal julga nesta semana em Plenário Virtual a ADI 7.239. Discute-se a constitucionalidade do artigo 8º da Lei nº 14.182/2021.

Mencionada lei fulmina de morte a Zona Franca de Manaus. Extingue imunidade tributária que alcança petróleo e combustíveis, líquidos e gasosos, bem como derivados. Mais uma vez, a Amazônia sangra. É um tema de sustentabilidade econômica que está sob o crivo do STF.

O dispositivo questionado no STF alterou o Decreto-Lei nº 288/1967, agredindo, por extensão (e por arrasamento), o artigo 40 do ADCT, a par de menosprezar alterações constitucionais supervenientes, na mesma matéria (artigos 92 e 92-A do ADCT).

Todas essas medidas têm como objetivo a proteção de uma região indiscutivelmente carente, à espera de incentivos. Não há como extingui-los, da forma como se pretende.

A questão levada ao STF na ADI 7.239 pode ser bem entendida em cinco dimensões:

a. há um problema de formalidade normativa;
b. há um problema de recepção e de repristinação;
c. há um problema de legística;
d. há um problema de segurança jurídica e, de modo muito mais impactante;
e. há um problema de ordem econômica, social e ambiental, que afetará, devastadoramente, toda a região.

Decreto de 1967
A Zona Franca de Manaus (atingida diretamente pela lei questionada no Supremo) remonta a um decreto de 1967 que acenava com oportunidades e empregos para a região.

A questão alcança aspectos de segurança nacional, no contexto de uma área que não pode ser concebida como uma mera coleção de árvores. Tem-se um problema de sustentabilidade, que afeta as populações locais, e que também se irradia para inúmeros outros lugares.

Os incentivos fiscais que beneficiam a Zona Franca justificam-se como pilares de um modelo de sustentabilidade, que não pode perder de vista a proteção ao bioma local.

Além disso, Manaus é um polo industrial, que integra a ZF. Há necessidade da manutenção de empregos, de combate à pobreza e da correção de desigualdades, especialmente no plano regional. Nesse último pormenor, a matéria é constitucional.

No pano de fundo da discussão tem-se de risco gravíssimo para o desenvolvimento regional, que será afetado pela revogação dos incentivos fiscais que contemplam a região, e que fazem parte de uma dinâmica negocial firmemente estabelecida.

Em leitura rápida, do ponto de vista da formalidade normativa, pode parecer, em primeira vista, que o que se pretende revogar é mera isenção fiscal. O dilema normativo é mais complexo.

Porém, ainda que assim o fosse — mero problema de revogação de isenções —, há limites que balizam essas medidas. Cuida-se, no caso, de isenção condicionada (ainda que não o seja formalmente), dado que o incentivo é regional, e não necessariamente setorial.

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Isto é, o benefício fiscal é obtido na exata medida em que o destinatário da norma de não incidência estabeleça-se na região.

Os benefícios que se pretendem revogar interessam a quem opere na Zona Franca. Há um alcance subjetivo que não pode ser desprezado. O impacto é imediato.

O artigo 40 do ADCT constitucionalizou o benefício. No caso, a teoria geral do direito tributário vislumbra hipótese de não incidência constitucionalmente qualificada, isto é, tem-se, na prática, uma imunidade.

A revogação de imunidade exige emenda constitucional, e não mera lei ordinária; já não estamos mais vivendo sob o pálio do artigo 178 da Constituição de 1824 (Constituição Política do Império), quando matérias formalmente constitucionais poderiam ser alteradas pelo processo legislativo comum.

Revogação de imunidade fiscal exige rigor no processo legislativo
Os incentivos fiscais da Zona Franca foram constitucionalizados. O legislador constituinte optou por proteger a região mediante a garantia de imunidade.

E o fez com prazo determinado: por vinte e cinco anos, como disposto originariamente no artigo 40 do ADCT. O prazo foi significativamente aumentado. Não se pode desconsiderar essa opção do legislador.

Em 2003 (Emenda 42, que resultou no artigo 92 do ADCT) o prazo foi alargado para mais dez anos. Em 2014 (Emenda 83, que resultou no artigo 92 do ADCT), o prazo foi novamente ampliado para mais cinquenta anos.

A regra de imunização persiste, assim, até 2073. Essa perspectiva escancara a inconstitucionalidade do artigo 8º da Lei n. 14.182/2021.

A norma revogada (artigo 37 do Decreto-Lei n. 288/1967, na redação originária) afastava a incidência das normas do decreto ao que então estava estabelecido nas leis de regência. O decreto usou a locução “legislação atual”.

A nova redação do artigo 37 do Decreto-Lei (tal como se lê no artigo 8º da Lei n. 14.183/2021, questionado no STF) suprimiu a expressão “legislação atual” e, ao mesmo tempo, acrescentou “petróleo”, à regra originária, que somente se referia a lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos.

O resultado desse desastroso esforço normativo é duplo. Quanto à supressão da locução “legislação atual” repristina-se uma norma não isentiva. E, quanto à introdução do substantivo “petróleo” ampliou-se uma norma não isentiva. Desastre maior não poderia ter ocorrido.

O artigo 8º da Lei n. 14.182/2021 vai na contramão de tendência do STF, que vem prestigiando a segurança jurídica.

Tem-se, na verdade, a vingar a norma questionada, a institucionalização da odiosa cláusula “venire contra factum proprium”. O Estado acenou com incentivos. Os prorrogou por duas vezes, a última delas pelo expressivo prazo de meio século.

Há expectativas de setores econômicos e profissionais que foram alimentadas com aceno estatal, por meio dos arts. 40, 92 e 92-A do ADCT. Há investimentos substanciais que foram realizados com base nessa estrutura normativa, que a lei questionada no STF simplesmente fez tábula rasa.

A revogação de incentivos constitucionalizados é gravíssimo exemplo de política fiscal que despreza a palavra dada pelo Estado. Os historiadores do futuro talvez colham nesse caso um farto material para comprovar que o investidor não podia mesmo confiar nas instituições.

Como se não bastasse, o artigo 8º da Lei n. 14.182/2021 realiza outra proeza: transforma um incentivo regional e um incentivo setorial. Não há política pública que se sustente nessa impropriedade conceitual.

O dispositivo questionado fora vetado pelo governo anterior. No entanto, o veto foi derrubado no contexto da ADPF 893, por um problema de ordem formal: o veto presidencial fora lançado após o prazo de quinze dias. Esse aspecto revela que não havia consenso na medida.

O resultado (mantido o artigo 8º da Lei n. 14.182/2021) é o agravamento de várias crises, hoje setoriais, e que atingem a produção de bens de informática, eletrônicos, automóveis, de bens termoplásticos, de bens metalúrgicos e de também de produtos químicos.

Sabe-se, além disso, que a cadeia produtiva associada ao petróleo não afeta negativamente o bioma amazônico; pelo contrário, é mecanismo de indução de produção de bens oriundos da Zona Franca, fixando a presença humana de modo sustentável.

Negar essa relação entre o bem-estar e o modelo econômico é ranço de um tempo ingênuo e desprovido de fundamentação científica. É uma medida negacionista que afeta vidas e esperanças.

Mais do que um problema jurídico (que é um falso problema; afinal, não se revoga benefício fiscal constitucionalizado com lei ordinária) o STF enfrenta uma ameaça à espinha dorsal de um projeto nacional, presentemente intimidado, entre outros, por uma vulnerável política fiscal arrecadatória, marcada por uma duvidosa ética da convicção.

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