Opinião

Ainda é preciso reserva de vagas para profissionais qualificadas?

Autor

  • Daniela Garcia Giacobbo

    é advogada e consultora jurídica professora convidada em três cursos de pós graduação — MBAs sobre energia (FGV Energia e Universidade Católica de Petrópolis) com a disciplina Licenciamento Ambiental para o SEB e o Setor de Energia é membro da Comissão de Energia Infraestrutura e Saneamento da OAB-RS e da Comissão de Energia e Transição Energética do IAB. Coautora de 12 livros sobre energia e meio ambiente. Participa de entidades representativas dos setores ambiental e de energia. Foi assessora jurídica no TRF-4 e assessora da Presidência do Ibama.

8 de março de 2024, 9h17

A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) abriu consulta pública para regulamentar o Decreto 11.835/23, que altera, entre outras coisas, as atribuições e a composição do Conselho Administrativo e da Diretoria Administrativa da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE,) considerando as regras que estabelecem, às indicações, requisitos de qualificação ao cargo, definidos em convenção.

Pela proposta da Aneel, em nome da “igualdade de oportunidades no setor elétrico” [1], pelo menos duas das oito vagas seriam destinadas às mulheres no conselho administrativo e uma das seis da diretoria da CCEE, entidade criada para operar o mercado comercial [2].

Para o conselho administrativo, com a função de planejamento estratégico e de definir o orçamento anual, não seria necessária experiência ou atuação prévia na área de energia elétrica; no caso da diretoria, sim.

À Aneel compete “regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal” [3]. A agência reguladora não estabelece políticas de governo, as quais são fruto da legislação geral e setorial [4] e ações afirmativas a essas devem observar.

Nessa nova governança, não se cogita de indicações que não exijam certas habilidades e que não sejam técnicas, pois a CCEE é um órgão técnico, mas o que se questiona, aqui, é a reserva de vagas a profissionais qualificadas. Atualmente, ainda é necessário?

Pesquisa da Agência Internacional de Energia (Irena) apontou que, apesar de serem metade da população mundial (no Censo 2022, as mulheres são 51,5% da população brasileira), as mulheres representam um quarto da força de trabalho total de energia e um terço do setor de energias renováveis [5].

Reprodução

O aumento da participação de mulheres na força de trabalho se faz com políticas públicas de incentivo, que não se restringem à legislação sobre cotas, mas por programas de educação, treinamento, cursos e estágios, lembrando-se que a licença maternidade foi importante para a diversidade e inclusão.

No mundo corporativo, iniciativas meritórias para diminuir a desigualdade de oportunidades, como a da AES Brasil e Senai-RN [6], que qualificaram as primeiras mulheres especialistas em manutenção e operação de parques eólicos, são importantes à aptidão ao processo de seleção.

Também a capacitação feita pelo Senai Bahia resultou em um parque eólico 100% operado por mulheres [7]. Valem palestras e mentorias para capacitar, assim como movimentos para incentivar e dar maior visibilidade ao potencial profissional feminino [8].

Embora ainda representemos a menor parte na alta gestão dos setores de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia [9] a qualificação feminina pode ser demonstrada pelo grande número de executivas que presidem algumas das principais entidades representativas do setor: Abrage, Abrapch, ABEEólica, ABiogás, Abihv, Sindienergia-RS, além das que estão à frente de instituições de ensino, diretorias, comissões e de outras entidades civis.

É inegável a importância dessas líderes, com trajetórias de reconhecida competência e eleitas pelos seus pares, quando se trata de influenciar o planejamento e o funcionamento do setor (inclusive ao proporem políticas públicas e setoriais sobre regras de acesso, que podem estimular a iniciativa privada em suas decisões), servindo de modelo a encorajar outras mulheres.

Fixação de cotas parece ser um recurso ainda usado para minimizar a desigualdade na competição
– Subsídios também o são

No setor elétrico brasileiro, incentivos e tratamentos diferenciados, com alocação de recursos em fontes novas e segmentos em formação, há muito são praticados e podem não funcionar a longo prazo. Como o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), criado para a expansão emergencial da oferta [10] (que também criou a CDE, hoje vigente a Lei 14.120/21 [11]), as regras de isenção e de desconto nas tarifas de uso dos sistemas elétricos de transmissão e de distribuição, então estipuladas por resoluções da Aneel, que alavancaram a fonte que hoje mais cresce (hoje vigente a Lei 14.300/22 [12]), e as de acesso facilitado ao mercado livre ainda agitam o setor.

A realocação de subsídios para novas fontes e tecnologias tem sido proposta como forma de atração de investimentos a destravar mercados entrantes para o sucesso de uma economia de baixo carbono. Nessa realocação e nos tratamentos diferenciados, há que considerar os custos. As políticas de subsídios, isenções e tratamentos tributários diferenciados alteram os preços relativos da economia e, no caso do setor elétrico, acabam por onerar o consumidor cativo, na sua conta de luz, como no caso da CDE.

Pesquisa do Instituto Millenium e Enterprise Surveys [13] mostrou as consequências na economia das políticas públicas de subsídios, isenções e desonerações, ou seja, de tratamentos diferenciados, concluindo que micropolíticas mudam artificialmente as regras do mercado, pois direcionam recursos para setores e empresas contemplados pelos subsídios, em detrimento dos não contemplados, “viciando” a economia a se comportar de modo pouco produtivo, além de impactar negativamente pela renúncia fiscal, que afeta a capacidade de crescimento macroeconômico a longo prazo.

Cotas, como subsídios, precisam ter prazo de validade, pena de, a pretexto de incentivarem um segmento incipiente, também criarem desigualdades ou desarranjos no setor, a longo prazo. Igualdade de oportunidades, com qualificação, mas sempre em consonância com as regras da livre competição.

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[1] Regulamentação da nova governança da CCEE vai à consulta pública – CanalEnergia

[2] A CCEE é uma sociedade civil, de direito privado, sem fins lucrativos, criada em 2004: Governança – CCEE

[3] Lei nº 9.427/1996, disponível em: L9427consol (planalto.gov.br)

[4] “O poder normativo das agências está restrito à expedição de normas administrativas vinculadas à legislação setorial […] Relativamente ao mérito, as decisões das agências reguladoras deveriam ser insindicáveis, desde que devidamente motivadas, nos termos da Lei do Processo Administrativo, Lei nº 9.784/1999 […]” (Giacobbo, Daniela. A ação regulatória estatal, via Aneel, e o incentivo à transição e à segurança energéticain Segurança e Transição Energética, Tomo II; Rio De Janeiro: Synergia, 2023, pp. 7-8

[5] A presença da mulher no setor de energia • Abrapch

[6] AES Brasil e SENAI formam primeiras mulheres especialistas no RN em manutenção e operação de eólicas | AES Brasil

[7] Bahia tem primeiro parque eólico 100% operado por mulheres (correio24horas.com.br)

[8] Movimentos como “Sim, Elas Existem”, “Mulheres de Energia”, “Rede Brasileira de Mulheres na Energia Solar”, “Mulheres do Biogás”, “Women In Energy (WIN) Brazil”, “Women and Power: Leadership in a New World”, entre outros

[9] A presença da mulher no setor de energia • Abrapch

[10] L10438 (planalto.gov.br)

[11] L14120 (planalto.gov.br)

[12] L14300 (planalto.gov.br)

[13] https://institutomillenium.org.br/wp-content/uploads/2023/05/millenium-paper-a-necessaria-avaliacao-de-impacto-das-politicas-publicas.pdf

Autores

  • é advogada e consultora jurídica, mestre em Direito da Regulação (FGV Direito Rio), professora convidada de MBAs da FGV Energia e da UCP/Ipetec, é membro das Comissões de Energia da OAB-RS e do IAB.

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