Opinião

Indicação das vagas no STF e justificativas da PEC nº 77/2019

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1 de março de 2024, 19h32

O retorno dos trabalhos do Senado em 2024 promete o revolvimento da PEC nº 77/2019, [1] que, dentre outros temas, propõe-se a diversificar a indicação de vagas nos tribunais superiores.

No caso do STF, núcleo de debate político da proposta, três seriam eleitos pelo Senado, três pela Câmara dos Deputados e cinco pelo presidente da República.

A par da legitimidade para mudanças, a justificativa do projeto se ampara em comparações frágeis na seara internacional, eis que refletem cenários jurídicos de todo distintos quando não colidentes com a realidade constitucional brasileira.

O texto de justificativa para tornar plural a indicação de vagas aduz que a tarefa solitária do presidente da República “não se coaduna com a separação de poderes, aproxima-se mais de um sistema imperial”.

Curioso observar, no entanto, que a nomeação nesses termos nasceu justamente nos Estados Unidos, a democracia mais longeva do mundo, sob a perspectiva da separação de poderes. No “Federalist Paper” nº 71, Alexander Hamilton defendia que o poder de nomeação do presidente da República seria contrabalanceado pela rejeição senatorial, no afã de garantir que o Poder Executivo sempre levasse em consideração a opinião da Câmara Alta, enquanto salvaguarda de nepotismos ou ataques à impessoalidade.

Ao contrário do que se passa nos EUA, em que o Senado rejeita com frequência os indicados, essa efeméride não floresceu no Brasil.

Leonardo Sá/Agência Senado

Das 167 nomeações, apenas uma foi rejeitada, de tal modo que a PEC nº 77/2019 pretende aboli-la e adotar a solução conciliadora de que os ministros não passem mais ao crivo de ninguém, tão logo sejam nomeados.

A afronta à separação de poderes é evidente e de todo infirma de inconstitucionalidade a nova redação que pretende revogar o atual parágrafo único do artigo 101 da CF/88.

Deveras, a ordem democrática pressupõe a discordância de vontades e vigilância entre Poderes, pois, se “a redistribuição se faz no sentido de tudo, ou quase tudo, se dar ao Poder Executivo, ou a um corpo, que não é responsável, tem-se a ditadura”, segundo Pontes de Miranda. [2]

Nesse entrave incorre a PEC nº 77/2019 ao excluir qualquer nomeação ao STF da apreciação de um segundo Poder da República. Note-se que não há inconstitucionalidade em diversificar de onde são oriundos os nomes, mas tão-somente na exclusão de segunda apreciação.

Em verdade, somente seria justificável a revogação em comento caso adotada a concepção napoleônica de separação de poderes, que não admitia a ação recíproca de Poderes[3] — esta sim, de feição imperial.

O Estado democrático de direito, porém, exige que o princípio se manifeste enquanto determinação coletiva da democracia e proteção da liberdade individual, que somente pode ser realizada quando existe escrutínio das decisões fundamentais da República, de modo que não basta a separação de tarefas, órgãos e funções. [4]

Disto decorre que o significado e o propósito (“Sinn und Zweck”) da separação de poderes somente podem ser concretizados se, simultaneamente, intensifiquem-se três pontos, na vertente de Ulrich Battis e Andrea Edenharter: legitimem a autoridade estatal por procedimentos jurídicos; racionalizem a ação do Estado meio da alocação de competências funcionais adequadas; e controlem-no por meio da interação entre vários órgãos.[5]

Ora, não há dúvidas de que retirar a nomeação para o STF da apreciação de um segundo poder em nada racionaliza a ação do Estado, mas antes a fragmenta por ausência de controle, o que torna a revogação do parágrafo único do artigo 101 da CF/88 inconstitucional, por ofensa clara ao artigo 60, § 4º, da CF.

Legislativo sobre o Executivo
Frise-se que é possível alterar quem e em qual quantidade será responsável pela nomeação dos ministros do STF. Em nada o constituinte deixou a eleição estanque, mas apenas presumiu, por nossa consolidada afeição ao direito constitucional americano em tema de nomeações, que o processo deveria se fazer à feição hamiltoniana. Mudá-la, contudo, não pode ser feito sem contrapartida.

Dado que o constituinte originário previu a fiscalização do Legislativo sobre o Executivo nas nomeações ao STF, é evidente que não se pode emendar a constituição com norma que retire a fiscalização enrijecida da separação de poderes original.

No campo das cláusulas pétreas, nenhuma erosão constitucional é permitida, razão pela qual não servem à proteção de dispositivos, mas de princípios neles talhados, o que pressupõe o aprimoramento das instituições. [6]

De igual modo, não se propõem a perpetuar ad aeternum os institutos constitucionais existentes, mas impõem condicionamento das mudanças a preservação, além de seus demais escopos, do núcleo essencial da separação dos poderes, [7] que, de certo, estaria resguardado em menor potência sem a revisão das nomeações ao STF por outro Poder.

Não só. A justificativa da PEC nº 77/2019 peca, também, no campo conceitual por comparar situações de difícil contraste sem maior ponderação. De acordo com suas linhas, seria lúcido justificar a metamorfose elencada para “nos aproximar de modelos já existentes no mundo e traça como modelos os ordenamentos francês, italiano e alemão.

Antes de avançarmos nesse debate, é importante aclarar que não nos filiamos à tradicional perspectiva do direito comparado que sugere observar somente os cânones do norte global enquanto possuidores de virtude para fortalecer instituições, como sugerem K. Zweigert e H. Kötz, no clássico “An Introduction to Compartive Law”. [8]

A bem ver,  torna-se cada vez mais necessário que olhemos para diferentes ordenamentos jurídicos que tenham não necessariamente raiz comum com o nosso, mas que lidem com problemas semelhantes, em especial os do sul global, no fito de identificar caminhos possíveis para melhorar as instituições que confrontem problemas de legitimidade e efetividade face às desigualdades sociais e crises políticas convergentes. [9]

Seria salutar, por conseguinte, que as PECs fossem além das lentes europeia e americana para averiguar se há trilha institucional possível que possa ser enxergada pelo prisma brasileiro.

Modelos de França e Itália
Inobstante esses parênteses, devemos ressaltar que as nomeações ao “Conseil Constitutionnel” não guardam exatidão como modelo a ser seguido pelo Brasil pela pura transposição de que sua composição tem “nove membros não vitalícios, dos quais três são indicados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembleia Nacional e três pelo presidente do Senado”, como ressoa o texto da PEC nº 77/2019.

Isto porque ignora que naquele sistema os ex-presidentes da República podem escolher se sentar no Conselho. Muito embora essa premissa raramente tenha sido utilizada na tradição francesa, escancara que não estamos nos aproximando de qualquer protótipo. [10]

Além disso, encobre-se que desde a Lei Constitucional de 23 de julho de 2008, o Parlamento da França pode vetar os nomes apontados pelo presidente da República ao Conselho Constitucional. Tudo a reforçar que a revogação do parágrafo único do artigo 101 da CF/88 nos afasta da higidez da separação de poderes.

Diante do modelo italiano, a justificativa da PEC nº 77/2019 dispõe que para a “Corte di Cassazione”, os membros dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo podem escolher, cada qual, cinco membros.

Ocorre, porém, que, tal qual o arquétipo francês, não se pensam os métodos de eleição para o Tribunal Supremo sob a perspectiva federalista, de suma importância ao Brasil. Significa afirmar que não se pode esquecer que o STF é órgão que não pode se furtar de suas funções federativas, uma vez que fora criado para solucionar, também, impasses dessa ordem. [11]

Não por outro motivo, o parágrafo único do artigo 101 da CF/88 traz a revisão senatorial de todas as nomeações presidenciais ao STF, como forma de resgatar sua função federativa, discussão que, por óbvio, está ausente nos elencados modelos unitários.

E nem se diga que o projeto possa ter levado esse aspecto em consideração ao afirmar que na Alemanha os membros do Tribunal Constitucional Federal são eleitos por ambas as Casas Parlamentares: “Bundestag, equivalente à Câmara dos Deputados, e Bundesrat, equivalente ao Senado.

O “Bundestag” é composto por representantes sujeitos à autoridade dos governos estaduais, com mandato imperativo, cuja bancada somente confere votos por unanimidade, i.e., por “Land”. [12]

Ademais, não é gerado por duração pré-estabelecida, visto que se compõe de sessões regulares, nas quais a composição de seus membros se altera a cada eleição estadual que não ocorre em caráter síncrono no território alemão.

O translúcido, ainda que breve, confronto com a realidade nacional permite perceber que a comparação dos métodos de indicação requer muito mais rigor do que a justificativa da PEC nº 77/2019 parece querer transparecer em termos simples.

Nesse diapasão, fulcral que as discussões vindouras sobre a PEC nº 77/2019 em tema de nomeações ao STF tenham em mente dois aspectos centrais, muito além da batalha se suas alterações são benéficas ou não ao Brasil: a uma, que redunda em franca inconstitucionalidade a revogação do parágrafo único do artigo 101 da CF/88 nos moldes propostos, sem qualquer contrapartida que dê vazão à fiscalização inerente à separação de poderes encastelada no artigo 60, § 4º, da CF; e, a duas, que não se mostram suficientes as comparações com modelos escolhidos sem parâmetro e densificação capazes de elucidar as cidadãos por qual razão a transição se mostra benéfica ao país.

 


[1] Cf. JULIÃO, Fabrício. Marcelo Castro vai apresentar PECs para acabar com reeleição. Poder 360. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/congresso/marcelo-castro-vai-apresentar-pecs-para-acabar-com-a-reeleicao/>. Acesso em 26 fev. 2024.

[2] Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Independência e Harmonia dos Poderes. Revista de Direito Público, v. 20, p. 9-24, abr./jun. 1972, p. 11-12.

[3] Cf. PINTO, Bilac. Separação de poderes, delegação legislativa e exercício de funções jurisdicionais por órgãos da administração (Parecer). Revista de Direito Administrativo, v. 6, p. 243-274, out. 1946, p. 246.

[4] Cf. MÖLLERS, Christoph. Dogmática de la Organización de Poderes en la Ley Fundamental de Bonn. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, p. 71-115, 2009, 111-114.

[5] Cf. BATTIS, Ulrich; EDENHARTER. Einführung in das Verfassungsrecht. 7. ed. rev. Berlin: De Gruyter, 2022, p. 218.

[6] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 183 e 188.

[7] Cf. KLOEPFER, Michael. Handbuch der Vefassungsorgane im Grundgesetz. Berlim: Duncker & Humblot, 2022, p. 65.

[8] Cf. ZEIGER, Konrad; KÖTZ, Hein. An Introduction to Comparative Law. 3. ed. Trad. ing. De Tony Weir. 3. ed. Oxford: Clarendon, 1998, p. 33-32.

[9] A propósito, ver DAVIS, Kevin E.; PARGENDLER, Mariana. Heterodoxia jurídica no sul global: desigualdade e direito contratual comparado. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, v. 1, n. 1, p. 267-298, 2021.

[10] Cf. JAN, Pascal. PLUEN, Olivier. Les anciens présidents de la République, membres de droit du Conseil constitutionnel : un anachronisme bien vivant. Petites affiches, n. 239, p. 27-38, 2016, p. 30. A última vez que um Presidente da República escolheu se sentar no “Conseil Constitutionnel” foi entre 2012 e 2013, na figura de Nicolas Sarkozy. Outro ex-presidente vivo que poderia assumir seria François Hollande, por exemplo, jurou que nunca faria parte.

[11] Cf. BARBOSA, Rui. O Supremo Tribunal Federal na Constituição brasileira (1914). In: Pensamento e ação de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 161-165.

[12] Nas palavras de Rainer-Olaf Schultze, “os constituintes não visaram a autonomia dos estados nem a competição entre estados como a melhor solução, mas sim, a influência dos estados” (Cf. Tendências da evolução do Federalismo alemão: dez teses, in: HOLFMEISTER, Wilhelm; CARNEIRO, José Mário Brasiliense (Orgs.). Federalismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 15).

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