Opinião

Soberania dos credores pode evitar falência em descumprimento ao plano de recuperação

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25 de maio de 2024, 11h23

O pedido de recuperação judicial de empresas conhecidas pelo grande público, como Americanas, Oi e 123 Milhas, fez com que esse assunto se tornasse debate entre os juristas e demais interessados na medida. Em resumo, quando uma empresa devedora opta por um processo de recuperação judicial sério e indene de fraudes, objetiva-se o soerguimento econômico desta empresa, diante de uma crise econômico-financeira que não seja substancial a ponto de levar a referida sociedade à quebra ou falência.

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Nesse sentido, a reestruturação de uma sociedade envolve diversos interesses, não somente do devedor, que obtém em seu favor um período de 180 dias de suspensão das ações e execuções contra ele ajuizadas — o chamado “stay period”, abordado no §4º do artigo 6º da Lei nº 11.101/2005 — para poder negociar os seus débitos, mas também dos credores, dos empregados, da própria sociedade e até mesmo do Estado, para quem a preservação da atividade empresarial saudável repercute em fatores como obtenção de recursos por meio da tributação, distribuição de rendas, aumento do índice de empregabilidade e fomento da atividade econômica.

A propósito, sobre a relevância da manutenção da livre iniciativa no contexto constitucional, Eros Grau defende que a interpretação do inciso IV do artigo 1º, da Constituição (CF/88), deve ser no sentido de que como são fundamentos da República o valor social do trabalho e o valor social da livre iniciativa. Isso significa que a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República, como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso. [1]

Com base nesse e em outros dispositivos constitucionais, da Lei nº 11.101/2005, conhecida como “Lei de Recuperação de Empresas e Falência” (LREF), prevê expressamente o “princípio da preservação da empresa”, em seu artigo 47, que, nos dizeres de Sheila Christina Neder Cerezetti [2]:

[…] consubstancia-se na promoção de equilíbrio entre os múltiplos interesses abrangidos pela crise econômico-financeira e não na mera concessão de recuperação judicial em todo e qualquer caso de crise. A lei brasileira em momento algum privilegia a recuperação a qualquer custo, pautando-se pela preferência reorganizativa quando se tratar de empresa viável. A viabilidade, por seu turno, só pode ser definida caso um procedimento inclusivo e equitativo seja assegurado.

Para viabilizar a preservação da empresa, a sociedade devedora deve apresentar um plano de recuperação judicial (PRJ), cujo sistema de formação e aprovação é bifásico, composto por uma primeira fase estritamente negocial, a fim de integrar os anseios do devedor e dos credores, que poderão, conjuntamente, aprovar o PRJ. Com a sua implementação na primeira fase, entende-se a recuperação judicial como um contrato judicial, com característica novativa. Caso a tentativa de negociação seja inexitosa, passa-se à segunda fase, na qual a vontade coletiva dos credores ficará sobreposta à do devedor, sendo cabível a imposição de um PRJ. [3]

Com efeito, ao juiz incumbirá tão somente a verificação dos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial, porquanto a AGC é “soberana” em suas decisões.  Tal soberania é extraída, por exemplo, do artigo 35, I, ‘a)’, da LREF, segundo o qual, dentre as atribuições da AGC, encontra-se os poderes de aprovar, rejeitar ou modificar do PRJ apresentado pelo devedor.

Spacca

Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversas oportunidades [4], tem firmado sua jurisprudência no sentido de ser “competência da Assembleia Geral de Credores examinar a viabilidade econômica da sociedade empresária e deliberar sobre os termos da proposta apresentada, inclusive restringindo interesses dos titulares de cada classe de créditos em prol de objetivo maior, sob pena de tornar inviável a reestruturação da pessoa jurídica em crise, redundando em sua provável falência e prejuízos ainda mais amplos”. (STJ — AgInt no REsp: 1828635 RS 2019/0220265-2, relator: ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 20/09/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2021)

Lado outro, a convolação em falência é a “última opção”, que se destina ao empresário ou à sociedade empresária que, além da crise financeira, está vivendo uma “crise econômica insolúvel, ou seja, o giro de seu negócio não é suficiente para que possa atender a todas as obrigações que estão vencidas ou estão para se vencer, e não está também em condições de reverter tal situação” [5].

Nessa esteira, segundo preveem §1º do artigo 61 c/c art. 73, IV, da LREF, se houver descumprimento de qualquer obrigação assumida pelo devedor nos autos da recuperação judicial, no período de dois anos contados a partir do despacho que concede a recuperação, haverá a convolação em falência.

Mas e se o PRJ possuir cláusula que faculte aos credores que, diante de descumprimento do PRJ, em vez da imediata decretação da falência, seja possível a designação de nova AGC para deliberação sobre possível extensão de prazo e deliberar sobre eventual descumprimento do PRJ? Será legal?

Para o STJ, a resposta é positiva. No julgamento do REsp 1.830.550-SP, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, por unanimidade, julgado em 23/4/2024, DJe 30/4/2024 [6], a Corte Superior reformou a decisão firmada na instância de origem, que havia entendido que a previsão de nova AGC violaria o estabelecido nos artigos 61, § 1º, e 73, IV, da LREF.

Superação de crise e preservação da empresa

Em síntese, o voto[7] do relator ministro Antonio Carlos Ferreira assentou que tais dispositivos não possuem caráter imperativo, haja vista a necessidade de interpretação da LREF “à luz do propósito da Lei de Recuperação Judicial, que consiste principalmente na superação da crise econômico-financeira e na preservação da empresa, conforme estabelecido em seu artigo 47”.

Em continuidade, o voto do relator foi preciso ao afirmar que, “se os próprios credores, maiores interessados no recebimento do crédito, optam por mais uma tentativa para manter a empresa, essa decisão, firmada em assembleia, coaduna-se com os imperativos que regem a Lei de Recuperação Judicial”.

Com efeito, a inexistência de força cogente quanto à conversão automática da recuperação judicial em falência se coaduna ao atual entendimento Corte Superior, exemplificado pelo julgamento do AgInt no AREsp nº 1.059.178/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 21/6/2021, DJe de 1/7/2021, no qual se concluiu pelo cabimento da instalação de nova AGC, diante de alterações fáticas e da existência de novos elementos para a elaboração de um PRJ possível de ser perfectibilizado. Confira-se trecho da ementa:

[…] 2.1 O juízo acerca da necessidade de instalação de nova assembleia ante a mudança do quadro fático e da existência de novos elementos para elaboração de um plano de recuperação judicial efetivamente viável, aprovado pelos credores, acompanhado pelo Ministério Público, administrador judicial e deferido pelo Juízo recuperacional, está inserido no âmbito da liberdade negocial inerente à natureza jurídica do plano, inexistindo qualquer ilegalidade apta a permitir a intervenção do Poder Judiciário.

Isso posto, o posicionamento da Corte Superior, enquanto intérprete da legislação infraconstitucional, tem ganhado delineamentos mais compatíveis à própria feição do direito privado, em sua vertente do direito das empresas em crise: percebeu-se que é necessário flexibilizar o entendimento conforme a realidade prática, defendendo-se sempre aquele arranjo que mais se mostrar possível de ser executado, ante a natural dinamicidade dos fatos concretos, sobretudo quando se está inserido no campo das atividades empresariais, envolvendo interesses diversos.

Portanto, com supedâneo na livre iniciativa e função social da empresa, almeja-se que não só o STJ, mas também os Tribunais de Justiça pátrios e demais operadores do direito sigam o exemplo de aplicar a legislação visando não só à segurança jurídica e à literalidade da lei, como também à boa aplicação do direito, que é justamente aquela que permite o desenvolvimento econômico e social, e é, desse modo, mais aderente aos pressupostos de nossa Constituição.

 


[1] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007.

[2] In: Paulo Fernando Campos Salles de Toledo; Francisco Satiro (Coord.). Direito das empresas em crise: Problemas e soluções. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 375.

[3] CAMPINHO, Sérgio. Plano de recuperação judicial [recurso eletrônico]: formação, aprovação e revisão – de acordo com a Lei n. 14.112/2020. São Paulo: Expressa, 2021, p. 8.

[4] Veja-se também: REsp 1.660.313/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, j. 15/8/2017, DJe 22/8/2017; STJ – AgInt no REsp: 1931932 SP 2021/0104728-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 25/04/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2022.

[5] BEZERRA FILHO, Manoel Justino; SANTOS, Eronides A. Rodrigues dos. Lei de recuperação de empresas e falência [livro eletrônico]: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. 15. ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 413.

[6] Este precedente foi inserido no Informativo n.º 811, publicado em 14 de maio de 2024.

[7] Veja-se acórdão, disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201902307382&dt_publicacao=30/04/2024 Acesso em 21/05/24.

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